DescargarNatália de Santanna Guerellus.
Departamento de Estudos Lusófonos, Université Jean-Moulin, Lyon, Francia.
nataliaguerellus@gmail.com

 

No dia 06 de abril de 2020, quando a crise sanitária causada pela pandemia do COVID-19 atingia seu ápice na Europa e caminhava a passos largos na América, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterrez, fez um pronunciamento urgente nas redes sociais. Guterrez alertava publicamente os Estados-membro da ONU sobre a importância de incluir em suas políticas públicas de enfrentamento da doença, medidas específicas contra as violências de gênero.

“A violência não se limita ao campo de batalha. Para muitas mulheres e meninas, a ameaça é ainda maior lá onde elas deveriam se sentir mais protegidas. Em suas próprias casas”, diz o secretário. Sem citar fontes, afirma que, em alguns países, as denúncias de violência no ambiente doméstico dobraram durante o período de confinamento. E este era apenas o começo da crise. Dados referentes a esta violência e ao feminicídio nos diversos países que ainda enfrentam a pandemia do COVID-19 deve, no futuro, surpreender até os mais pessimistas.

A chamada para o dossiê “Feminicídio, o massacre cotidiano na Iberoamérica” foi, portanto, lançada ainda em 2019, abrangendo então uma temática fundamental para o campo social ibero-americano. Naquele momento, no entanto, não se poderia prever a urgência com que o assunto seria tratado a nível mundial em 2020.

Mas as discussões em torno da temática não são novas e constituem um dos pontos fundamentais dos estudos que articulam violência, gênero e política há décadas nas ciências humanas e sociais. Desde pelo menos os anos 1970, quando a ONU inaugurou a celebração da “Década da Mulher”, denúncias ligadas à violência doméstica já apareciam a nível global, exigindo medidas efetivas da parte dos Estados. Diana Russell o Jill Radford em seus trabalhos, já utilizavam então o termo femicide, em inglês, transformado pela antropóloga mexicana Marcela Lagarde, em feminicídio, vocábulo hoje utilizado na América Latina.

As denúncias a nível global revelam, então, o caráter político específico destas violências. De modo estrutural, grande parte desta especificidade está ligada ao sistema patriarcal moderno que criou uma verdadeira política sexual. O histórico desta política se configura à medida em que o capitalismo se desenvolve a nível global e, para isso, precisa assegurar imaginários de gênero que possibilitem o seu funcionamento, eliminando outras formas de pensamento, cosmogonias, epistemologias de sociedades tradicionais e povos originários. A violência de gênero se instaura, então, numa sociedade onde o ser feminino, em gradações ligadas às suas diversas interseccionalidades, é frequentemente tido como ignorante, frágil, incapaz, subserviente, e sobretudo, como propriedade do outro. Ele é, ainda, o lugar onde aquele que se sente superior, descarrega todas as suas frustrações e ódios para, em seguida, voltar a assegurar seu lugar de domínio.

Reações a esta configuração nos aparecem hoje na formulação de iniciativas também globais de prevenção e de punição a casos individuais e coletivos de violência contra as mulheres e feminicídios, como foi o caso da Lei Maria da Penha, no Brasil (Lei 11.340/2006), utilizada atualmente como parâmetro para a formulação de políticas públicas em toda a América Latina. Ora, violências de gênero exigem políticas públicas específicas voltadas para a sua eliminação, mas também epistemologias específicas que nos ajudem a compreender e lutar contra o fenômeno, além de redes de solidariedade específicas, lá onde o Estado não é capaz ou não quer agir. Quanto às epistemologias, é preciso salientar que o pensamento latino-americano de tradição indígena e afro-americana tem se destacado na crítica ao universalismo ocidental, guiando muitas das discussões do feminismo decolonial.

O rico dossiê que a Revista-red do Iberoamérica social traz a público neste momento apresenta importantes elaborações teóricas e jurídicas, além de análises históricas e de casos concretos de resistência às violências contra as mulheres e de denúncia do feminicídio. Trata-se, portanto, de textos fundamentais e urgentes no contexto atual, europeu e americano.

Em “Femicidio y Epistemicidio: algunas consideraciones desde Abya-Yala Mujeres y ciencia”, Mariano Acciardi parte da literatura decolonial elaborada na América Latina, -especialmente pelos estudos chicanos, sobre a importância de se questionar categorias como gênero e feminismo funcionando dentro de uma perspectiva universalista que acaba por corroborar com o discurso científico dominante e com o sistema capitalista. Os saberes produzidos a partir do processo de colonização constituem igualmente peça fundamental no genocídio e, mais especificamente, no feminicídio que se operou nas Américas desde o século XVI. Donde a importância de se valorizarem os saberes ancestrais, as cosmogonias outras, e de denunciar, junto ao feminicídio de populações originárias, o epistemicídio. Acciardi aponta igualmente para a necessidade de se trazer à tona a experiência dos feminismos populares, dos coletivos feministas e das redes de solidariedade femininas e LGBTQ+ para pensarmos em formas práticas de resistência à violência.

“El feminicidio en España: Entre el rechazo conceptual y las resistencias político-jurídicas”, escrito por Elena Laporta Hernández e Tania Sordo Ruz, parte igualmente de discussões teóricas e do desenvolvimento histórico da categoria “feminicídio” no ocidente, do ponto de vista jurídico e político, chegando ao caso específico da Espanha, que só começa a articular a reflexão acadêmica em torno do termo no século XXI. As autoras demonstram a resistência política, notadamente da parte da direita e extrema-direita, a adotar o termo como categoria necessária às políticas públicas, vinculando-o a um fenômeno que pareceria ocorrer somente nos países ditos do Sul. As autoras demonstram que, apesar de esforços constantes por parte dos movimentos feministas, de grupos comunais, ativistas nas diversas regiões espanholas, e mesmo no Parlamento Europeu, há uma certa resistência a encarar as violências contra as mulheres como violências com características específicas e resultado de estruturas ligadas ao sistema patriarcal ocidental.

Elena Apilánez Piniella, em “La revolución se cocina a fuego lento: una revisitación de la noción de revolución a la luz del pensamiento feminista de la Segunda Ola”, se atém às feministas socialistas e radicais da chamada “Segunda Onda” feminista, das décadas de 60 a 80, para trazer à tona o marco teórico feminista que se estabeleceu em torno da categoria “revolução”. Para isto, a autora traz uma reflexão sobre o conjunto da produção estadunidense, servindo de importante instrumento de análise da tradição feminista que permite hoje a elaboração de alternativas originais à revolução, que sejam inclusivas e que levem verdadeiramente à mudança da ordem política, social, econômica e cultural no ocidente.

Recuperando várias histórias através de fotografias, Carina Elizabeth Gómez evidencia as memórias da dor gerada nas famílias de vítimas de feminicídio em seu artigo “Retratos de Memorias: Análisis de fotografías documentales de familiares de víctimas de femicidio (Jujuy-Argentina)”. O estudo, que se concentra no norte da Argentina, usa esse poderoso meio como fonte documental para estudar a colateralidade dos danos e as consequências coletivas que o feminicídio e a violência patriarcal causam no cotidiano das vítimas. A proposta metodológica transcende as próprias fontes, a partir das quais seu interesse etnográfico é projetado, para questionar os campos do conhecimento em que está enquadrado, fazendo confluir a antropologia com estudos de gênero e de memória.

Com uma proposta mais geral, Luciana Yael Wechselblatt em «El derecho de las mujeres a participar de la vida pública: Avances desde la perspectiva del derecho internacional de los derechos humanos» questiona o alcance universal dos direitos humanos. Coloca em questão, mais especificamente, sua aplicação ao direito internacional, a capacidade de ser verdadeiramente um sistema universal de proteção e promoção de direitos. A análise foca na participação na vida pública das mulheres, nos diferentes avanços históricos e como essas contribuições podem potencialmente ajudar a alcançar níveis mais altos de participação no futuro.

Por fim, temos a proposta analítico-artística de Gabriela Coronado Téllez em nossa seção de miscelânea, especialmente dedicada a trabalhos mais heterodoxos sobre o tema do dossiê. A proposta, chamada «No estamos Todas: ilustrando memorias» visa denunciar feminicídio e transfeminicídio a partir de ilustrações criadas coletivamente nas redes sociais. Para isso, ela analisa o trabalho do projeto ativista feminista chamado “No Estamos Todas”, explorando suas empáticas mensagens sobre a vida, a individualização e valorização das vítimas.

“Feminicídio, o massacre cotidiano na Iberoamérica” é, portanto, um dossiê completo, que traz contribuições sob uma perspectiva transnacional, enriquecida desde o ponto de vista teórico e epistemológico até o ponto de vista prático, através da apresentação de movimentos de resistência e denúncia e de redes de solidariedade composta entre as vítimas e para as vítimas de violência de gênero e do feminicídio. A revista Iberoamérica Social cumpre, assim, mais uma vez, com a sua missão de promover a troca, a reflexão e a informação sobre o campo dos estudos sociais no contexto ibero-americano de modo vanguardista e socialmente responsável.

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