DescargaLinda Osiris González Cárdenas.
Universidad Federal do Paraná, Paraná, Brasil.
lindagonc93@gmail.com

Maria Aparecida Webber.
Universidad Federal do Paraná, Paraná, Brasil / Universidad de Integración Latinoamericana, Paraná, Brasil.
webber.cidamaria@hotmail.com

Recibido: 31/10/2017 – Aceptado: 20/11/2017.

 

Resumo: O presente trabalho propõe discutir a dinâmica própria de mobilidade humana existente na chamada Tríplice Fronteira, área limítrofe entre Argentina, Brasil e Paraguai, pontualmente entre as cidades de Puerto Iguazú, Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, respectivamente, que comporta uma forte presença da população Guarani que precede qualquer limitação moderna de fronteiras e formação dos Estados Nação. Os Guarani se mobilizam constantemente, por questões religiosas, práticas, entre outras, que nesta vê-se limitada ante a marcação de fronteiras burocráticas que lhes são impostas, gerando assim a fragmentação de seus territórios e a interrupção de suas práticas. Considerando este cenário, buscamos também questionar resistências por parte da população local em reconhecer e respeitar os Guarani da região, principalmente ao serem criminalizados pela mobilidade que exercem, vistos muitas vezes como uma ameaça à segurança nacional. Tornam-se então estrangeiros dentro de seu próprio espaço, em razão da não-identificação cultural/política com o país onde residem. Partiremos, assim, da premissa de que as fronteiras vão além do nacional, passando por questões identitárias, linguísticas e culturais, buscando refletir sobre práticas de violência que iniciam e são legitimadas pela exclusão praticada pelos Estados relacionados, os quais sistematicamente suprimem as diferenças culturais no interior do território nacional.

Palavras-chave: Tríplice Fronteira, Guarani, Mobilidade, Estados Nação, Populações Indígenas.

 

Abstract: The present paper is intended to discuss the own dynamic of human mobility existent in the called Triple Border, neighboring area among Argentina, Brazil and  Paraguay, specifically among the cities Puerto Iguazú, Foz do Iguaçu and Ciudad del Este, respectively, that accommodates such a strong presence of Guarani population, which precedes modern demarcation of borders and State Nation establishment. The Guarani mobilize constantly for religious or practical matters, among others. This mobilization is limited by the imposed bureaucratic border demarcation, generating the fragmentation of their territories and the interruption of their practices. Taking this scenario into account, we also intend to question resistances from the locals in recognizing and respecting the local Guarani, mainly while they are criminalized for their mobility, being regularly seen as a threat to national security. They become “outsiders” into their own space, due to the cultural and political non-identification with the country they reside. Assuming that the borders are beyond the national, passing through identity, cultural and linguistic matters we intend to reason about the violence practices that are initiated and legitimated by the exclusion imposed by the related States, the ones that systematically suppress the cultural differences in the interior of the national territory.

Key-words: Triple Border, Guarani, Mobility, State Nation, Indian Populations.

 

Introdução

As regiões de fronteira dos modernos Estados nacionais se tornaram espaços privilegiados para detectar dinâmicas específicas que se desenvolvem nestes locais, não só por significar um limite territorial explícito, onde dimensões econômicas e políticas são reforçadas, mas também porque esse espaço proporciona relações sociais particulares entre as populações que habitam suas distintas margens. Desta forma, as regiões de fronteira não representam apenas um limite político e territorial como também um espaço liminar((O termo liminar seria mencionado pela primeira vez por Arnold Van Gennep (2011). Contudo, seria com Victor Turner (1974) que este conceito seria aprofundado principalmente para analisar a composição dos rituais, significando para este autor um espaço onde é possível questionar as estruturas sociais e suas normativas. No caso das fronteiras nacionais, o liminar representa uma espécie de suspensão de tudo aquilo que o Estado-Nação designa como caraterístico, seja uma identidade nacional, língua oficial, normatividade, etc.)) de identidade e cultura nacional onde o “outro” não-nacional é percebido. Ao mesmo tempo, nestes espaços fronteiriços existem outras formas de demarcação que se sobrepõem e, ao mesmo tempo, entram em conflito com a ideia de fronteira política limitada à relação com o Estado nacional, tais como as fronteiras sociais, culturais, linguísticas e simbólicas. Assim, “o outro” não se encontraria apenas definido territorialmente por uma fronteira nacional, mas pela confluência de outras diferenças de ordem cultural que o definem.

Considerando isto, pretendemos no presente trabalho discorrer pela noção de fronteira em seus múltiplos sentidos para pensar como este conceito não se limita apenas à sua relação com o Estado, mais também acompanha a circulação de pessoas, objetos e imaginários não restringidos por uma categorização territorial. Este aspecto polissêmico da fronteira procurará ser apresentado a partir da relação entre povos indígenas, cujos territórios foram divididos, e os Estados nacionais como artífices dessa fragmentação. A partir desta separação, as populações indígenas –principalmente fronteiriças – se tornaram estrangeiras dentro do próprio espaço nacional, já que não se identificam nem cultural, nem politicamente com o país ao qual foram compulsoriamente relacionados.

Nesta linha, nosso interesse principal é contribuir à discussão em torno à complexa relação entre povos indígenas e Estados-Nação, entendendo haver uma forte discrepância entre formas de conceber território e territorialidade, assim como a superposição de categorias identitárias vinculadas à nacionalidade e etnicidade. Tal reflexão, e outras apresentadas ao longo do texto, surgiram a partir do desenvolvimento das pesquisas de campo das autoras, no caso da primeira, vinculado à relação entre as populações Guarani que habitam na Tríplice Fronteira e turismo internacional instaurado em volta das Cataratas do Iguaçu, e da segunda, à Migração Estudantil Brasileira para cursar Medicina no Paraguai, especificamente nas cidades de Presidente Franco e Ciudad del Este. Apesar destes trabalhos de campo estarem submetidos a diferentes olhares teóricos, a localização espacial é compartilhada entre as autoras, a Tríplice Fronteira (Montenegro & Béliveau, 2010) entre Argentina, Brasil e Paraguai, conhecida como uma unidade em si e notavelmente marcada pela presença direta ou indireta das populações Guarani, conferida no cotidiano das observações. Neste ponto, gostaríamos de esclarecer que não é nosso interesse discutir teórica e conceitualmente as categorias acionadas no texto, tais como Nação, Estado, Fronteira, Território, Mobilidade, entre outras. Buscamos prioritariamente dar relevância às informações evidenciadas etnograficamente nos nossos respetivos trabalhos de campo, principalmente o relacionado às populações Guarani, os acontecimentos históricos trágicos que geraram mudanças nos seus aspectos culturais e territoriais, assim como os símbolos, palavras e caraterizações provenientes da cultura Guarani que circula pelas cidades de Puerto Iguazú (AR), Foz do Iguaçu (BR) e Ciudad del Este (PY).

Num primeiro momento, apresentaremos brevemente a Tríplice Fronteira trabalhada, ressaltando o discurso existente sobre a diversidade natural e cultural/nacional, principalmente fazendo alusão à suposta irmandade existente entre todos aqueles que fazem presença na região. Contudo, esse discurso oficial que promulga uma diversidade se limita diante da presença de populações indígenas, pontualmente dos Guarani. Posteriormente, apresentaremos informações básicas sobre as populações Guarani que habitam na Tríplice Fronteira, assim como as situações históricas que geraram grandes impactos no seu modo de vida e que condicionam as relações que atualmente estabelecem com outros atores presentes na região, como a população local, os turistas em torno das Cataratas do Iguaçu, assim como os próprios Estados e as instituições que os representam. Destacaremos como a presença Guarani –ou um imaginário sobre ela- se articula com a dinâmica social, econômica e política da região, assim como as ações que diariamente as comunidades Guarani empreendem como uma forma de lidar com o fato de representar um “outro não-nacional”. Após esta breve contextualização, ressaltaremos a mobilidade como uma especificidade do povo Guarani, que consegue desafiar toda pretensão de categorizá-los apenas a uma identidade nacional. Finalmente, procuraremos relacionar a situação apresentada sobre as populações Guarani na Tríplice Fronteira com outras discussões que também ressaltam a tensa relação entre indígenas –ainda fronteiriços- e Estados, ressaltando as particularidades destas populações e as suas lógicas que antecedem a própria estipulação dos Estados como instituição inquebrantável da modernidade, relacionadas com uma mobilidade que transcende as fronteiras territoriais, identitárias e simbólicas por ele impostas.

“Nascemos de muitas mães, mas aqui só tem irmãos”((Esta frase é, de modo geral, conhecida por fazer parte da música La Perla do grupo porto-riquenho Calle 13. Contudo, para aqueles que passam pela Tríplice Fronteira, especificamente na passarela da Ponte da Amizade que conecta Foz do Iguaçu e Ciudad del Este sobre o rio Paraná, é possível enxergar um mural feito pela Ação Poética Tríplice Fronteira onde foi escrita esta frase nas três línguas dominantes da região: espanhol, guarani e português.)): contextualizando a Tríplice Fronteira

Na confluência dos rios Iguaçu e Paraná, acompanhados pelas Cataratas do Iguaçu como uma das novas sete maravilhas do mundo natural, e, de maneira ampla, rodeada por uma riquíssima biodiversidade de flora e fauna, se encontra a tríplice fronteira mais movimentada da América do Sul, onde convergem as cidades de Puerto Iguazú (Argentina), Foz do Iguaçu (Brasil) e Ciudad del Este (Paraguai), ao mesmo tempo caraterizada por possuir fortes fluxos econômicos, de pessoas, objetos e imaginários específicos.

Para Rabossi (2011), em comparação aos demais espaços de trijunção da América Latina((Tais como Cerro Zapaleri entre Argentina, Chile e Bolívia; Monte Roraima, entre Venezuela, Guiana e Brasil (Rabossi, 2011).)), a chamada Tríplice Fronteira

[…] é a que tem as maiores cidades, que são articuladas mais precocemente – começando no final da década de 1950 com a fundação da última cidade que compôs a ocupação dos três lados, Puerto Presidente Stroessner (mais tarde, Ciudad del Este). Em várias publicações da região é possível observar de que modo pessoas distintas começam a se referir àquele espaço como algo que pode ser englobado em um conceito […]. (p. 40)

Ainda para o autor, ela “é uma região interconectada, caracterizada pela diversidade cultural” (p.41). Já segundo Montenegro e Béliveau (2010)

Para sus habitantes, Foz do Iguaçu es una ciudad abierta a las influencias externas, hospitalaria para los inmigrantes y para los turistas, em la que los distintos grupos étnicos y religiosos viven em paz. Esta imagen coincide com la que propone el discurso oficial, que destaca, paralelamente, la diversidad como um valor: la riqueza de Foz es su diversidad, étnica, religiosa y cultural. (p. 139)

O discurso oficial, como mostra por exemplo o site web da prefeitura de Foz do Iguaçu, ressalta a cidade como caraterizada pela sua diversidade cultural, contando com aproximadamente 80 nacionalidades, sendo numerosamente mais representativas as procedentes do Líbano, China, Paraguai e Argentina. Inclusive, a própria fundação da cidade de Foz do Iguaçu, que se efetuou em 1914, é marcada pela presença de estrangeiros, considerando que naquela época a população estava composta por 324 habitantes dos quais só nove eram brasileiros, e os outros na sua maioria paraguaios e argentinos (Ferreira Curry, 2010, p.121). Essa pluralidade pode, pois, ser pensada tanto em termos nacionais, ou seja, pessoas de outras nacionalidades que atualmente residem nestas três cidades, como étnicos relacionado à realidade Guarani, pouco mencionada no imaginário regional.

Além de ser considerada uma fronteira multicultural, vale a pena destacar que existe um outro imaginário sobre esta região (e sobre as fronteiras nacionais de forma generalizada como espaços liminares, sem regras e fiscalização) em relação às práticas ilegais e terroristas que ali acontecem, como o tráfico de drogas, armas, mercadorias não declaradas ou falsificadas, tráfico de pessoas, presença de grupos criminais, e inclusive grupos terroristas que representam uma ameaça à segurança dos Estados nacionais. Especificamente por causa da forte presença de comunidades árabes na região, e por atentados terroristas acontecidos em Buenos Aires no ano de 2001 atribuído a estas populações, a Tríplice Fronteira passou a ser um local relevante de controle dentro da agenda de segurança contra o terrorismo dos Estados Unidos (Amaral, 2008).

Atualmente, esta Tríplice Fronteira se destaca como a que possui maior quantidade populacional na América do Sul, assim como a mais desenvolvida em termos econômicos e de infraestrutura (Kleinschmitt, Azevedo & Cardin 2013, p.13). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE a população estimada da cidade de Foz do Iguaçu para o ano de 2016 foi de 263,915 pessoas((Estes dados se encontram disponíveis para consulta online nesta plataforma: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/foz-do-iguacu/panorama)). Os últimos dados do censo argentino realizado pelo Instituto Nacional de Estadística y Censos – INDEC no ano de 2010 indicaram que a cidade de Puerto Iguazú possuía 82,227 pessoas no total((Como é relatado nos informes do censo de 2010, disponíveis aqui: http://www.indec.gob.ar/censos_provinciales.asp?id_tema_1=2&id_tema_2=41&id_tema_3=135&p=54&d=063&t=0&s=0&c=2010)). Já no censo paraguaio disponibilizado em meio digital, datado do ano 2002 e feito pela Dirección General de Estadísticas, Encuestas y Censos – DGEEC havia 222,274 pessoas morando em Ciudad del Este, sem considerar a forte movimentação de pessoas entre cidades do departamento de Alto Paraná, Paraguai. Desta forma, a população que atualmente reside na Tríplice Fronteira, contando apenas estas três cidades, é de aproximadamente 568,416 pessoas, considerando possíveis alterações no decorrer dos anos de origem desses dados.

Os discursos oficiais manifestados através da mídia, educação e figuras políticas, assim como as narrativas da população local, construíram um imaginário que fala sobre a diversidade biológica, social e cultural da Tríplice Fronteira como uma riqueza que precisa ser exaltada para os visitantes. Em várias propagandas turísticas plasmadas em cartazes, panfletos, vídeos, músicas, e inclusive murais dentro das cidades, fica claro a vontade de gerar um espírito de irmandade entre as distintas nacionalidades ali presentes, chamando a atenção para o acolhimento que é dado ao estrangeiro. Contudo, dentro daquele discurso institucionalizado que menciona a diversidade cultural como caraterística da população da região, os Guarani não são sequer mencionados como comunidades indígenas atuais que de igual forma compõem esse mosaico regional – “tri-nacional”.

Apesar de na Tríplice Fronteira serem usados símbolos, palavras e caraterizações provenientes da cultura Guarani, evidenciados em nomes de ruas, bairros, rios, restaurantes, hotéis, artesanato, lendas, comidas e empresas públicas e privadas, os Guarani são considerados apenas como reminiscências do passado, tendo assim sua presença ignorada. Essa população habita um campo de constantes disputas pelas quais tiveram e tem que lidar para viver dignamente, inscritas nas multiplicidades de formas pelas quais negociam constantemente com a política e nos últimos anos de forma mais intensa com o turismo.

Se, por um lado, nos traços identitários desta região tri-fronteiriça chamaria a atenção para uma suposta descendência dos Guarani, explicado nos mitos que circulam sobre a origem das Cataratas do Iguaçu e dos índios Naipi e Tarobá, assim como a atribuição de uma suposta origem Guarani a palavras como Iguaçu, Mboicy, Itaipu, os discursos institucionais fazem apelo apenas aos Guarani “históricos”, como se tivessem deixado um legado de povos originários que não existem mais, incorporados idealmente ao discurso oficial dos Estados-Nação, inclusive das instituições que os representam a nível regional. Enquanto existe uma breve apologia ao que se pensa como cultura guarani histórica na Tríplice Fronteira, os Guarani atuais são julgados por não corresponder a este vago imaginário do que é “indígena”, assim como por não assumir uma identidade nacional que lhes outorgaria uma categoria de cidadãos.

Desta forma, em relação à presença atual dos Guarani nesta região, podemos perceber que a fronteira não corresponderia apenas a um limite estatal que definiria onde acaba a esfera territorial, social e cultural de uma nação, e onde começa outra. Os Guarani, portanto, representam uma outra “nação”, que não tem relação com uma instituição moderna e centralizadora de poder como é o Estado e que, ao mesmo tempo, não tem nenhuma semelhança com a forma que estas populações têm de ser, estar, pensar e representar o mundo. Assim, inclusive desde antes da própria instauração dos Estados nacionais neste continente, poderíamos pensar que a fronteira entre populações indígenas e instituições estatais foi e continua sendo cultural, epistêmica e ontológica.

“Índio tem só no Paraguai”: os Guarani na Tríplice Fronteira

Na convergência entre Argentina, Brasil e Paraguai também existem informações arqueológicas, históricas e etnográficas sobre a presença Guarani((Segundo o último Caderno Mapa Guarani Continental editado por Bartomeu Melià (2016), entre os anos de 2015 e 2016 a população Guarani estimada era de 284,800, distribuída entre Argentina (54,825), Bolívia (83,019), Brasil (85,255) e Paraguai (61,701). Já que os Guarani são um povo indígena que ficou dividido com a criação dos Estados nacionais, estes se assumiram como uma nação transfronteiriça estabelecendo o Conselho Continental da Nação Guarani – CCNAGUA, como uma forma de articulação  que procura reivindicar os seus direitos como o maior povo da América do Sul, e que foram apagados com fronteiras físicas, simbólicas e culturais.)), principalmente dos subgrupos Mbyá e Nhandéva ou Avá-Chiripá, distribuídos entre os três países. Na cidade de Foz do Iguaçu, por exemplo, não há registros de aldeias Guarani atualmente estabelecidas, porém até o final da década de 1960 uma quantidade considerável de famílias Guarani moravam em aproximadamente quatro aldeias dentro da cidade: Guarani, São João Velho, Colônia Guarani e Ocoy Jacutinga. Na década de 1930, a efetiva delimitação das fronteiras nacionais se visibilizaria com a constituição dos parques nacionais que cercariam as Cataratas do Iguaçu como local nacional a ser preservado, tanto na Argentina em 1934 quanto no Brasil em 1939. As populações Guarani que moravam nesta área foram retiradas forçosamente, sendo desconsideradas as relações profundas que tinham com este território. Além de um local de meio ambiental preservado, os parques nacionais do Iguaçu tornar-se-iam num ponto de suma importância para a segurança nacional, e para a demarcação clara do território que pertenceria a cada país.

Paralelamente a este processo se intensificaria a invasão da região, tanto para fins de exploração econômica a partir da extração de erva-mate e madeira, como para outorgar moradia aos novos colonos que trabalhariam a terra considerada como inabitada. Com isto, as populações Guarani que já se encontravam na Tríplice Fronteira eram ignoradas pelos jovens Estados nacionais, e assim violentamente expulsas, especificamente pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF e pelo Instituto de Colonização e Reforma Agraria – INCRA (Brant, 2013), como instituições que representaram o Estado Brasileiro e sua forma de reagir diante do “outro” que resistia em conceber a terra em termos produtivos desenvolvimentistas. A partir dos anos setenta começaria a predominar na região o cultivo mecanizado de soja, milho, trigo e cana-de-açúcar, o que seria uma justificativa adicional para a retirada dos Guarani de suas terras, na busca de torná-las produtivas para o agronegócio. Adicionalmente, no início da década de 1980, com a construção da hidrelétrica de Itaipu Binacional foram expulsas e deslocadas inúmeras famílias Guarani que habitavam em território brasileiro, paraguaio, e inclusive argentino. Novamente, a construção da Itaipu surgiria a partir de empreendimentos do Estado-Nação, especificamente dos governos militares do Brasil e Paraguai na época que procuravam o aproveitamento energético dos recursos hídricos do rio Paraná desde a região de Guaíra até o rio Iguaçu, desconsiderando totalmente a imensa quantidade de comunidades Guarani que moravam na beira do rio que divide o Brasil do Paraguai, cujas moradias foram alagadas na construção do Lago de Itaipu, que tem 1,350 km² de área aproximadamente.

Na margem paraguaia da Tríplice Fronteira, tanto em Ciudad del Este como nas cidades vizinhas de Hernandarias e Presidente Franco, existem aldeias dentro dos limites municipais, como é o caso de duas comunidades localizadas no Parque Moises Bertoni, próximas à beira do rio Paraná conhecidas como Acaray-Mi e Kiritó, e a aldeia Yvy Porã Renda dentro de Hernandarias e próxima à hidrelétrica de Itaipu. Numa realidade mais complexa devido à proximidade com o centro urbano, a comunidade Kuarahy Rese mora há mais de dez anos ao lado do terminal central de Ciudad del Este, em barracas improvisadas de plástico e papelão, visto que não lhe foram oferecidas as condições básicas para viver na sua antiga terra no departamento de Caaguazú no Paraguai, nem em Ciudad del Este, apesar do governo ter pleno conhecimento da sua existência((“Indígenas en CDE: droga y prostitución”: http://www.abc.com.py/edicion-impresa/interior/indigenas-en-cde-droga-y-prostitucion-558510.html)). A relação entre os Guarani e a população residente ou visitante das cidades paraguaias parece ser mais próxima (o que não quer dizer menos conflituosa) do que na margem brasileira (Foz do Iguaçu), não só por meio das relações comerciais travadas pela compra e venda de artesanato aproveitando a chegada de turistas, como também por situações cotidianas nas quais os Guarani circulam para fazer suas atividades rotineiras, como ir no mercado, trabalhar, visitar parentes, ou simplesmente o fato de se deslocar constantemente de um lado para o outro, como percebeu Evaldo Mendes da Silva (2010) quando acompanhou alguns Guarani nas suas diárias caminhadas nacionais e internacionais.

Durante o trabalho de campo na cidade de Presidente Franco, foi possível notar a cotidianidade da presença Guarani tanto nos discursos dos moradores locais, quanto nas práticas de comércio nos arredores da Instituição de Ensino UPE((Universidad Privada del Este – a instituição oferece o curso superior de Medicina, dentre outros, e é muito procurada por brasileiros.)). Por tratar-se de um ambiente não-turístico, as referências Guaranis foram um pouco diferentes das percebidas em contextos turísticos da Tríplice Fronteira. A exemplo do percebido por Silva (2010), não era raro acompanhar fluxos de famílias caracterizadamente Guarani passando pela avenida onde está localizada a UPE, bem como diariamente observar uma venda móvel montada na esquina da Instituição para comércio de ervas e preparo de tereré. Uma outra referência bastante presente entre os brasileiros e paraguaios alunos daquela Universidade foi a existência de um Restaurante de uma senhora “Paraguaia Guarani”((Interessante notar a adoção do Guarani como adjetivo complementar, uma vez que o restaurante estava em território paraguaio e as falas proviam de estudantes brasileiros também ali estabelecidos.)), como divulgavam, onde havia um preço fixo acessível para almoço, vinculando a população Guarani aos serviços oferecidos naquela localidade.

De forma similar às cidades paraguaias, em Puerto Iguazú (AR) há uma forte interação entre os moradores e as populações Guarani e, portanto, maiores oportunidades para que os primeiros possam ter um conhecimento sobre a existência dos segundos. Da mesma forma, como já foi descrito para o caso de Ciudad del Este, Hernandarias e Presidente Franco, dentro de Puerto Iguazú existem atualmente cinco aldeias Guarani: Mbororé, Yryapú, Jasy Porã, Tupa Mbae e Ita Poty Miri. Num primeiro momento, qualquer turista, morador dos países vizinhos ou da própria cidade percebe ao chegar em Puerto Iguazú a presença de homens, mulheres e crianças Guarani vendendo seus artesanatos na rua ou pedindo dinheiro ou alimentos, principalmente no centro da cidade, terminal de ônibus, ou em locais destacados turisticamente que são frequentados pela grande quantidade de visitantes que diariamente passam pela cidade após seu passeio nas Cataratas do Iguaçu. Como se pode constatar no curso da pesquisa, diversos comentários desqualificantes são ouvidos em relação à vestimenta dos Guarani, sobre chinelos e roupas rasgadas ou sujas, assim como da presença de crianças de colo nos braços das suas mães enquanto vendem o artesanato. Por um lado, aquelas impressões estéticas de sujeira geram nos visitantes um imaginário de pobreza refletida nos Guarani, evidenciado em comentários como “tadinhos esses índios que não tem nem para comer” ou “essas crianças indígenas não tem nem sapatos”. Já por outro lado, foi possível perceber que são vistos como “pouco autênticos”, ao ouvir opiniões proferidas a respeito de sua presença na cidade, já que “índio de verdade mora lá no mato”, ou “índio não veste assim, nem fala espanhol ou português”.

Nota-se então que, na maioria das vezes, as aproximações entre os Guarani e a população local argentina (e temporária estrangeira) são dadas dessa forma nesses espaços condicionados e mediados pelo imaginário que circula sobre as populações indígenas. Contudo, poderíamos considerar esses comentários, oriundos de um contexto parcial caracterizado pelas relações de compra de artesanato e de ação de “caridade”, como a esmola, também como produto do desconhecimento da cotidianidade da vida nas aldeias, e das diversas formas a partir das quais os Guarani lidam diariamente com as limitações que lhes foram impostas pelos Estados que os fragmentaram, e que não lhes permite viver do “jeito Guarani”.

Diferentemente do que ocorre em Puerto Iguazú e Ciudad del Este, para grande parte da população de Foz do Iguaçu não é comum notar a presença dos Guarani atuais, talvez porque a aldeia mais próxima conhecida como Ocoy esteja a 41 kms, no município de São Miguel do Iguaçu. Em alguns bairros mais próximos das fronteiras é frequente ver mulheres Guarani junto com crianças pedindo roupas ou alimentos de porta em porta. Além disso, é possível ver os Guarani transportando-se com os ônibus que vão para as cidades vizinhas, tanto nacionais quanto internacionais. Em outras localidades da cidade de Foz existem  pontos de venda de produtos como ervas, frutas e tereré, geralmente comandado por mulheres guarani “paraguaias”, que se submetem a um fluxo diário de trânsito nessa fronteira. O município se destaca entre as três cidades pela “infraestructura turística, hotelaría, shopping centers y complejos recreativos (Montenegro & Béliveau, 2010, p. 18), e é justamente no turismo que se torna mais fácil notar a presença Guarani, não só pelas lendas que são criadas para explicar a origem das Cataratas, ou palavras usadas neste contexto proveniente de uma suposta ancestralidade guarani, mas o Guarani atual de carne e osso. Desta forma, é frequente vê-los em alguns atrativos turísticos disponíveis na cidade, seja exibindo seus artesanatos, fazendo apresentações musicais, ou em apresentações culturais exclusivas para um público reservado de visitantes. Destaca-se a presença Guarani nos principais atrativos turísticos como nas próprias Cataratas do Iguaçu, tanto do lado argentino como brasileiro, onde são convidados coros musicais das comunidades para musicalizar o passeio dos turistas. No Centro de Visitantes da Itaipu Binacional se encontra uma loja de lembranças onde são disponibilizados artesanatos feitos pelas populações Guarani que foram atingidas pela criação do Lago da Itaipu. Já no Parque das Aves além de contar com a presença dos coros Guarani, assim como dos artesanatos na loja de lembranças desta atração, no ano de 2016 foi criado o Forest Experience ou Noite Guarani, que é um evento feito à noite onde alguns membros da aldeia Jasy Porã, do lado argentino, realizam uma cerimonia de boas-vindas para um grupo seleto de visitantes, ao redor de uma fogueira, envolvendo dança, falas dos Guarani sobre vários assuntos, assim como um jantar e ritual do tabaco.

De modo geral, as populações Guarani que moram nestas três cidades, ou nas suas proximidades, vivem em espaços semi-urbanizados, em terras litigiosas que não permite a produção de alimentos para autossubsistência. Apesar disso, os Guarani tem procurado novas formas de sobreviver neste contexto fronteiriço a partir de algumas atividades disponíveis, como o turismo, ou trabalhos assalariados nas próprias aldeias e cidades.

Andar por andar: mobilidade guarani na Tríplice Fronteira

Após as descrições feitas sobre as populações Guarani que residem na Tríplice Fronteira, assim como as evidências históricas que provam sua fragmentação a partir da criação dos Estados nacionais e seus empreendimentos, é possível reconhecer que neste espaço há uma mobilidade Guarani que desafia a supremacia dos limites nacionais, e que é punida pela burocracia imposta dos Estados ali presentes. Além dos Guarani, existem várias outras populações indígenas que ficaram divididas após a delimitação das fronteiras nacionais, e que enfrentam cotidianamente estas limitações de trânsito, como é o caso dos Yanomami que habitam a fronteira entre o Brasil e a Venezuela, os Tikuna entre Brasil e Colômbia, os Mapuche entre Argentina e Chile, Ashaninka entre Brasil e Peru, entre tantos outros. Com isto, fica claro que a lógica indígena, neste caso anterior à limitação territorial dos países latino-americanos, difere da lógica moderna imposta pelo Estado. Este é um paradoxo que se apresenta de forma muito explícita nas áreas fronteiriças quando há um compartilhamento de espaço na circulação dessas populações tradicionais. O ir e vir é definido em termos que não lhes pertencem; os marcos territoriais são artificializados em Aduanas e barreiras de controle; e sua identidade deixa de ser a construída dentro de dita lógica indígena particular para atender a uma demanda documental onde só se “é” quem possui um papel que o comprove. A identidade precisa fazer-se caber em um número de Registro Geral expedida em qualquer uma das margens. Sob certo aspecto “essas amarras dinâmicas parecem contradizer, muitas vezes, o alegado desaparecimento das fronteiras e dos Estados-nação difundido pelos primeiros estudos sobre a globalização” (Macagno, Montenegro & Béliveau, 2011, p.9), ratificando e fortalecendo esses limites.

No caso pontual das populações Guarani, estas apresentam certas especificidades relacionadas à sua mobilidade que as caracteriza e que ao mesmo tempo as motiva a percorrer grandes distâncias, sem um fim específico para nosso limitado entendimento. Como pontua Evaldo Mendes da Silva (2011) ao se referir aos Guarani presentes na Tríplice Fronteira: “para os Mbya e os Nhandevá as divindades, assim como os homens, vivem em deslocamento permanente” (p.262). Para este mesmo autor, o fato dos Guarani se locomover não obedeceria necessariamente a uma explicação cosmológica Guarani descrita por destacados etnólogos (como Curt Nimuendaju, Alfred Métraux, Edgon Schaden, entre outros) a partir do conceito de ivy marãey, ou a mobilização em procura da Terra Sem Mal do outro lado do oceano onde seria alcançada uma condição divina. Assim, procurar insaciavelmente um motivo que justifique o deslocamento constante dos Guarani pode resultar como uma aproximação etnocêntrica de pesquisadores que só conseguem enxergar esta mobilização a partir de uma forma de pensar em território de forma “sedentária” e não “nômade” (ibid., p.172).

De fato, alguns episódios históricos violentos motivaram os Guarani a se deslocarem, fugindo às terras dos seus parentes, como a construção do Parque Nacional do Iguaçu, tanto na Argentina quanto no Brasil, que teve a função estratégica de delimitar os territórios nacionais, garantindo a segurança e proteção das fronteiras, poucos anos após das fundações das primeiras cidades fronteiriças quando efetivamente seriam delimitadas as fronteiras nacionais depois da Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra do Paraguai que aconteceu entre os anos de 1865 e 1870. Contudo, o evento mais catastrófico para as populações Guarani, e que envolveu desta vez institucionalmente Brasil e Paraguai, foi a criação da Usina Hidrelétrica de Itaipu, que impactou tanto ambiental quanto socialmente a região. Inclusive, desde a época da construção da usina de Itaipu os Guarani foram arbitrariamente catalogados como paraguaios, afirmando desta forma ante os governos do Brasil e Paraguai, assim como à população civil de forma geral, a inexistência de indígenas que se afetariam pela construção deste empreendimento. Adicionalmente, estas populações têm repetidamente corrido o risco de serem considerados estrangeiros no seu próprio espaço, representando uma ameaça à soberania nacional ao não se definir nem como paraguaios, nem como brasileiros.

A mobilidade entre diferentes espaços nacionais demanda também pensarmos nas implicações linguísticas. No caso Guarani, não somente no trânsito entre diferentes Estados – fazendo referência ao português no Brasil e espanhol na Argentina e Paraguai – mas também na circulação dentro de um mesmo território nacional (BR e AR), visto ser o guarani um idioma que atualmente ainda está (re)esistindo em território paraguaio, e ser reconhecido como idioma oficial, talvez porque, como afirma Albuquerque (2010) “esse idioma é visto pela maioria dos paraguaios como a expressão máxima da identidade nacional” (p. 220), apesar de ser hierarquizada com inferior pela classe dominante paraguaia, sendo considerada “língua de índio” (ibid.). Poderia pensar-se assim, na superação imposta de outras fronteiras para esses fluxos, tal como a fronteira linguística, uma vez que essa população indígena não possuem o espanhol tão pouco o português como sua língua materna. A competência linguística sintonizada no idioma do colonizador se impõe como pré-requisito para essas interações e para os procedimentos burocráticos inerentes às atividades relacionadas com o Estado.

Relação entre as populações indígenas e o Estado-Nação

Após uma breve apresentação da Tríplice Fronteira, dos Estados nacionais que fazem parte dela, e dos Guarani, bem como de algumas das restrições impostas a estes em razão da instituição de fronteiras territoriais, culturais e linguísticas, faz-se importante ressaltar que esta situação não está restrita a essa localidade, pelo contrário, é compartilhada em vários contextos a nível mundial onde populações indígenas ficaram divididas com a delimitação territorial dos Estados. Apesar de cada Estado nacional ter uma especificidade na sua criação e nas relações geradas com os indígenas dentro dele, o Estado como instituição moderna de organização político-social teve a mesma pretensão de assimilar os outros não nacionais através da imposição de uma identidade nacional nova para eles. Para Alejandro Grimson (2000), esta “cultura nacional” criada para homogeneizar, e imposta aos “outros” da nação deve ser compreendida como um ato político, já que:

[…] es poderosa la creencia social de que el conglomerado de seres humanos pertenecientes a un Estado nacional poseen una cultura homogénea que sería la causa de la existencia de ese Estado. Esa pretensión de homogeneidad cultural constituye antes un instrumento de legitimación del poder estatal que una realidad verificable. (p.27)

Desta forma, a identidade nacional, ou cultura para Grimson, não representa um conjunto objetivo de valores que antecedem o Estado, mas que justamente surgem com ele e com as experiências históricas e simbólicas que o definiram, como por exemplo os eventos de independência tão celebrados nos países latino-americanos, assim como os hinos, escudos, e bandeiras como emblemas pátrios.

Quando se trata de analisar os contextos onde populações indígenas desafiam limites nacionais-territoriais dos Estados, pensar na ideia de fronteira ligada apenas a uma definição física e territorial resulta improdutivo, já que estas não são apenas espaciais mas culturais e/ou étnicas, como já disse Fredrik Barth (1976) no seu livro Los grupos étnicos y sus fronteras destacando que as fronteiras aparecem a partir de distinções de traços entre grupos sociais em contato. Pensando na Tríplice Fronteira, por exemplo, além de existir de fato os limites territoriais entre os três países, seria marcada uma fronteira cultural-étnica entre os Guarani e as populações nacionais a partir dos “traços culturais” que os diferenciam, seja a partir da própria língua, a forma de se comportar, a forma de se vestir, a forma de circular na região, entre outras caraterísticas que são ressaltadas como diferentes entre esses grupos.

Num outro espaço também fronteiriço afastado da Tríplice Fronteira contextualizada neste trabalho, neste caso entre o Peru e Brasil onde moram vários povos indígenas amazônicos, o pesquisador José Pimenta (2009) a partir de sua leitura sobre a relação entre o Estado brasileiro e os Ashaninka afirma que esta população indígena ajudaria no processo de consolidação da fronteira nacional, assim como da sua defesa do que aparentemente representaria um perigo para a soberania, como era o caso do narcotráfico e a exploração de borracha. Se, por um lado este autor procura destacar a importância dos indígenas no estabelecimento das fronteiras nacionais como uma forma de criticar as concepções etnocêntricas que consideram de forma pejorativa estes povos como uma ameaça, por outro os índios provavelmente não contribuíram com o Estado por vontade própria. Como o próprio Pimenta (idem.) ressalta, quando os Ashaninkas são questionados se são índios peruanos ou brasileiros, eles respondem: “Nós não viemos para o Brasil, o Brasil é que chegou até nós” (p.6), confirmando que foi o Estado que apareceria nos seus territórios formando fronteiras políticas, e não eles que foram até essas margens.

A partir da pesquisa de campo feita na tríplice fronteira entre Bolívia, Brasil e Peru onde moram populações Manchineri e Jaminawa, Rinaldo Arruda (2009) afirma que as populações indígenas que habitam nas fronteiras nacionais tem uma caraterística de ambiguidade relacionada à sobreposição das identidades nacionais com as identidades indígenas as quais seriam acionadas em determinadas situações para obter determinados benefícios: “Assim, sua movimentação fronteiriça obedece a estratégias e momentos de vida diferentes, nos quais os indivíduos instrumentalizam as identidades de boliviano, peruano e brasileiro, juntamente com suas identidades indígenas” (p.175). Esta justaposição de identidades corresponderia para Besserer (2016) a uma “arena política de uma disputa cultural em que se enfrentam formas hegemônicas e subalternas de identificação” (p.101), ou para Padawer (2014) uma “identidade indígena transnacional” (p.195).

Isto pode ser também evidenciado na Tríplice Fronteira em questão, onde a identidade nacional outorgada pelos Estados ou apropriada pelos próprios indígenas aparentemente passa por cima da identidade Guarani, às vezes para a obtenção de certas concessões. Por exemplo, quando afirmam serem índios argentinos, brasileiros ou paraguaios conseguem acessar determinadas politicas educativas plasmadas nas constituições destes países, ou a dinheiro que os governos oferecem como ajuda material para sua sobrevivência.

Considerações finais

Após pensarmos um pouco sobre os Guarani e seus trânsitos na região da Tríplice Fronteira, mais complexo ainda parece pensar quem são “os outros” e quem está “em casa”. Afinal, os processos de territorialização são revistos quando percebidos sob a lógica da “mobilidade absoluta” dos Guarani, no caso fazendo referência aos Mbyá e Nhandeéva (Silva, 2011, p. 277). Em termos nacionais aplicam-se critérios de delineamento dessas diferenças, ainda que totalmente questionáveis na sua pretensa padronização, contudo essas lógicas não conseguem ser aplicadas à vida ameríndia, gerando tensões nas relações sociais e amplificando sobremaneira os problemas das populações envolvidas, neste caso especialmente dos Guarani. Como se pergunta Silva (2011) “Qual a noção de território de um grupo que se mantém em movimento?” (p. 278), e poderíamos acrescentar ainda, qual é a sua noção de fronteira? Essa mobilidade Guarani desafiaria as concepções territoriais impostas pelo Estado Nação como instituição da modernidade, indicando que mobilizar-se no espaço também é uma forma de construir território.

Apesar da diversidade cultural ser o que confere singularidade à Tríplice Fronteira, e o discurso oficial ressaltar sempre que possível essa condição plural, as preocupações e políticas locais não consideram esse contingente populacional indígena que, apesar de ser drasticamente menor do que foi outrora, representa um número considerável de pessoas não-cidadãs. Quem é cidadão e quem tem direito? Especificamente para o Brasil isso parece ser ainda menos problemático e questionado, uma vez que além de não serem cidadãos os Guarani também não existirem na categoria de indígenas, já que “índio só tem no Paraguai”. Mais uma vez o Estado levanta-se acima dos sujeitos, impondo-se de forma homogeneizadora e brutal.

Diferentemente dos migrantes que vão pelo território, impulsionados seja por um motivo ou outro, o movimento dos índios não está atrelado ao trânsito entre países, considerando que o ser indígena não cabe nas demarcações nacionais. No caso das populações Guarani presentes na Tríplice Fronteira, são limitadas por um “cerco articulado” (Guanaes, 2015) que pretendeu – e pretende incorporá-los à lógica estatal desenvolvimentista ligada ao agronegócio, comércio e turismo. Esta relação pode ser analisada, inclusive, desde a própria instauração do Estado-Nação, que na sua função de “aplanadora cultural” (Grimson, 2000, p. 53) procurou incorporar os “outros” homogeneizando formas e modos de ser, pensar, existir e sentir. Podemos perceber assim que há diferentes fronteiras na fronteira, uma vez que os limites, marcos e diferenças não se circunscrevem apenas no território do ponto de vista “moderno”. Apesar de não ser palpável nem se materializar de forma física nos marcos e delimitações territoriais-nacionais, a fronteira simbólica está latente entre indígenas dentro dos territórios nacionais e as nações modernas.

Finalmente, com o decorrer das nossas reflexões de campo, e, principalmente, da procura de autores que falassem da fronteira além da predefinição nacional dada, foi possível evidenciar a dificuldade que existe em pretender não relacionar imediatamente a fronteira com o Estado nação. Existiria ainda entre nós pesquisadores o risco “de asumir a la “nación” como unidad natural de estudio y presuponer que las relaciones entre sociedades nacionales son siempre relaciones entre culturas nacionales” (Grimson, 2000, p. 36), ignorando que aqueles outros nacionais, como é o caso das populações indígenas, ficaram relegados a uma autoridade legitimada a partir da violência, manifestada por exemplo na limitação física, territorial e cultural da sua mobilidade imposta pelos Estados, cercando-os por fronteiras e catalogando-os em identidades nacionais.

Referências bibliográficas

Amaral, A. (2008). A guerra ao terror e a tríplice fronteira na agenda de segurança dos Estados Unidos. 2008. (Dissertação de mestrado em Relações Internacionais). Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Arruda, R. (2009). Fronteiras e identidades: os povos indígenas na tríplice fronteira Brasil-Bolivia-Peru. Projeto História. n.30, pp. 159-178.

Barth, F. (1965). Los grupos étnicos y sus fronteras. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica.

Besserer, F. (2016). Identidade nacional, identificação e corpo. IN: Sallum JR, B.; Schwarcz, L.; Vidal, D. & Catani, A. (Orgs.). (pp. 101-124). Identidades. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

Brant, M. L. (2013).  Das terras dos índios a índios sem terras. O Estado e os Guaraní do oco’y: violência, silêncio e luta. (Tese de Doutorado em Geografia). Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Ferreira, M J. (2010). Territorialidades Transfronteiriças Do Iguassu (TTI): Interconexões, Interdependências e Interpenetrações nas Cidades da Tríplice Fronteira – Foz Do Iguaçu (BR). (Tese de Doutorado em Geografia). Programa de Pós- Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil.

Grimson, A. (2000). Interculturalidad y comunicación. Bogotá: Grupo Editorial Norma.

Guanaes, S. (2015). O Estado nacional e as políticas desenvolvimentistas: “o cerco articulado” contra os Guarani na Tríplice Fronteira Sul. Tessituras 3(1), pp. 307-336.

Kleinschmitt, S.; Azevedo, P. & Cardin, E. (2013). A tríplice fronteira internacional entre Brasil, Paraguai e Argentina: Contexto histórico, econômico e social de um espaço conhecido pela violência e pelas praticas ilegais. Revista Perspectiva Geográfica 8 (9), pp. 1-22.

Macagno, L.; Montenegro, S. & Béliveau, V. (2011). A Tríplice Fronteira: Espaços Nacionais e Dinâmicas Locais. Curitiba: Editora UFPR.

Meliá, B. (Ed.). 2016. Mapa Guaraní Continental 2016. Argentina: ENDEPA e UNSA; Bolivia: APG, CIPCA, CERDET y ILC; Brasil: ATY GUASU, YVY RUPA, CIMI, CTI, ISA, FAIND, UNILA y FUNAI; Paraguai: CONAPI; Continental: CCNAGUA.

Montenegro, S. & Béliveau, V. (2010). La Triple Frontera: Globalización y construcción social del espacio. Buenos Aires: Miño y Dávila.

Padawer, A. (2014). Identidad indígena transnacional, reivindicaciones territoriales y demandas educativas de los mbyà guaraní en Misiones. In: Trinchero, H.; Campos, L. & Valverde, S. (coord.). Pueblos indígenas, Estados nacionales y fronteras: tensiones y paradojas de los procesos de transición contemporáneos en América Latina Tomo II. (pp. 195-218). Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Editorial de la Facultad de filosofía y Letras.

Pimenta, J. (2009). Povos indígenas, fronteiras amazónicas e soberanía nacional. Algumas reflexões a partir dos Ashaninka do Acre. Comunicação apresentada na Mesa Redonda: Grupos Indígenas na Amazonia. Manaus: SNPC.

Rabossi, F. (2011). Como pensamos a Tríplice Fronteira? In: Macagno, L.; Montenegro, S. & Béliveau, V. (orgs.). A Tríplice Fronteira: Espaços Nacionais e Dinâmicas Locais. (pp. 39-62). Curitiba: Editora UFPR.

Silva, Evaldo Mendes da. (2010). Folhas ao vento: a micromobilidade de grupos Mbya e Nhandéva (Guarani) na Tríplice Fronteira. Cascavel: EDUNIOESTE.

______. (2011). A terra é o nosso caminho. Espaço e Território entre os Guarani na Tríplice Fronteira. In: Macagno, L.; Montenegro, S. & Béliveau, V.(Orgs.). A Tríplice Fronteira: Espaços Nacionais e Dinâmicas Locais. (pp 261-280). Curitiba: Editora UFPR.

Turner, V. (1974). O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes.

Van Gennep, Arnold. (2011). Os Ritos de passagem. Petrópolis: Vozes.

 

Para citar este artículo: González, L., Aparecida, M. (2018). Quando “o outro” está em casa: mobilidade guarani na tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai. Iberoamérica Social: revista-red de estudios sociales IX, pp. 39 – 54. Recuperado en https://iberoamericasocial.com/quando-outro-esta-em-casa-mobilidade-guarani-na-triplice-fronteira-argentina-brasil-e-paraguai/

¡SUSCRÍBETE A NUESTRO BOLETÍN!

Te prometemos por la justicia social que nunca te enviaremos spam ni cederemos tus datos.

Lee nuestra política de privacidad para más información.

Deja una respuesta

Tu dirección de correo electrónico no será publicada. Los campos obligatorios están marcados con *