Frederico Guilherme Monturil Rego
Nucleo de Estudos Amazônicos da Universidade de Brasília Neaz-UnB, Brasilia, Brasil.
fredericogmrego@gmail.com
Recibido: 23/09/2019 – Aceptado: 09/12/2019
Resumo: Este estudo procura dimensionar a participação de padres da Companhia de Jesus, em especial do padre tcheco Valentim Estancel, no desenvolvimento educacional e científico do Brasil Colonial ao realçar suas atividades nas transformações político-religiosas e científicas ocorridas no Brasil e na Europa nos séculos XVI e XVII. O padre Valentim Estancel nasceu em Olomouc, no antigo reino da Morávia, na atual República Tcheca, em 1621. Sua trajetória intelectual começou em sua cidade natal, passou pelas cidades tchecas de Brno, Jičin e Praga, capital do reino da Boêmia. No ano de 1655 Valentim Estancel partiu para Roma, cidade em que expandiu suas conexões ao entrar em contato com grandes nomes da ciência e da ciência jesuítica. No ano seguinte partiu para Portugal onde viveu por seis anos se tornando professor da Aula da Esfera, um dos mais avançados centros de ensino sobre ciência náutica da Europa na altura. Em 1663 chegou ao Brasil onde viveu 42 anos. Na missão do Brasil revezava-se entre os colégios da Bahia, onde lecionou Teologia Moral e foi Lente de Matemática, e de Pernambuco, onde foi Prefeito dos Estudos e foi Lente de Casos de Consciência. O padre Valentim Estancel, além dessas obrigações como jesuíta escolástico, observou os céus e escreveu livros sobre diversos temas de grande repercussão na Europa. O padre Valentim Estancel morreu no ano de 1705, em Salvador da Bahia, Brasil aos 84 anos de idade tendo sido um dos primeiros introdutores da ciência no Brasil.
Palavras chave: Valentim Estancel; Cultura Colonial; História da Ciência, Brasil Colônia.
Abstract: This study seeks to measure the participation of priests of the Society of Jesus, especially the Czech Father Valentim Estancel, in the educational and scientific development of Colonial Brazil by highlighting their activities in the political-religious and scientific transformations that occurred in Brazil and Europe in the 16th and 18th centuries. Father Valentim Estancel was born in Olomouc, in the former kingdom of Moravia, in the present Czech Republic, in 1621. His intellectual career began in his hometown, passing through the Czech cities of Brno, Jičin and Prague, capital of the kingdom of Bohemia. In 1655 Valentim Estancel left for Rome, a city where he expanded his connections by contacting great names in science and Jesuit science. The following year he left for Portugal where he lived for six years becoming a teacher of the Aula da Esfera, one of the most advanced nautical science teaching centers in Europe at the time. In 1663 he arrived in Brazil where he lived 42 years. In the mission of Brazil he took turns among the colleges of Bahia, where he taught Moral Theology and was Lente of Mathematics, and Pernambuco, where he was Prefect of Studies and was Lente of Cases of Conscience. Father Valentim Estancel, in addition to these obligations as a scholastic Jesuit, observed the skies and wrote books on various topics of great repercussion in Europe. Father Valentim Estancel died in 1705, in Salvador da Bahia, Brazil at the age of 84 and was one of the first introducers of science in Brazil.
Keywords: Valentim Estancel; Colonial Culture; History of Science; Colonial Brazil.
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Introdução
Este artigo se propõe a inserir o papel dos jesuítas no pioneirismo da produção cultural brasileira. Em detrimento das práticas de evangelização, a literatura, a música, o teatro e o desenvolvimento científico estiveram ligados à presença da Companhia de Jesus no Brasil. Como expressão do pioneirismo científico-religioso jesuíta apresentamos o padre moravo Valentim Estancel. O jesuíta foi o introdutor dos estudos matemáticos e da pesquisa astronômica no Brasil. Estancel chegou no ano de 1663 ao Brasil onde viveu 42 anos revesando-se entre as províncias de Pernambuco e Bahia. A produção cultural e científica da colônia era quase nula contudo, alguns padres da companhia de jesus trabalharam e produziram alta ciência no Brasil.
A viagem de Pedro Álvares Cabral está inserida no projeto de expansão marítima, territorial e espiritual do reino português. No entanto, o que de fato ocorreu a partir de abril de 1500 com a chegada de Cabral foi um encontro/em contra civilizacional. Se formos em busca do significado da palavra Encontro nos deparamos com a origem latina incontra que, por sua vez, significa «em contra«, ir de encontro. Seria o choque, o efeito de olhar para um outro homem ou ser vivente de uma maneira mais ou menos hostil ou, no mínimo, desconfiada (Ferronha, 2011, p. 12). Encontrar algo ou alguém num contexto totalmente inédito seria, num primeiro momento, sentir que o outro estaria em contraposição. Encontro e desencontro teriam em si uma mesma significação. Esse encontro se repetiu com a chegada dos escravos africanos, dos colonos e das ordens religiosas que para lá rumaram no intuito da catequese e da dominação religiosa local. O europeus encontrarm habitantes com uma cultura completamente diferente, com uma maneira própria de se relacionar com a realidade através de estruturas sociais, econômicas e religiosas incomuns ao europeu cristão. Essa diversidade cultural colocou os europeus, desde o desembarque das caravelas, numa posição de pensar possuirem uma superioridade cultural e espiritual, portadores de uma verdade político-religiosa. A navegação forçou o encontro dos portugueses ao exame direto da fauna, da flora e da geografia das terras novas e exóticas. Uma vez chegados a terra nova, Pero Vaz de Caminha, cronista da expedição e autor do primeiro texto escrito no Brasil, A carta de Pero Vaz de Caminha, sugeriu a evangelização imediata dos naturais, uma vez que, segundo eles, não possuiam nenhuma idolatria ou adoração. Abria-se assim no Brasil, desde sua gênesis, as portas para a evangelização dos naturais do Brasil, o que viria ser feito pelos jesuítas por mais de 200 anos no Brasil que levaria estrutura cultural cristã. Com a chegada houve os preparativos da primeira missa, ou seja, confecção da cruz, escolha do dia e do local, paralelamente seguiu-se o trabalho científico. A frota de Cabral ao aportar no litoral baiano efetuou medições da latitude, feita pelo Mestre João, médico e cirurgião da armada.
“… tomamos a altura do sol ao meio-dia e achamos 56 graus, e a sombra era setentrional [meridional], pelo que, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17º” (Vasconcelos, 1672). Assim se preparava o terreno para a elaboração de mapas mais precisos, necessários para orientar as futuras expedições exploratórias com medições de latitude e longitude, profundidade do mar, além das referências cosmográficas. A história da ciência no Brasil ficou eclipsada na historiografia brasileira frente a “vocação agrária” da historiografia brasileira, onde a produção econômica do açúcar, da exploração aurífera ou do cultivo do café deram a tônica da escrita da história do Brasil no país. Infelizmente Caminha em sua carta não descreveu as observações técno-científicas da viagem, deixando um relato emocionalmente descritivo. As produções técnicas técno-científicas foram as primeiras produções culturais do Brasil colonial, não sendo devidamente ainda abordadas pela maioria dos historiadores.
Os jesuítas e o Desenvolvimento Cultural Colonial
É comum dizer que nos primeiros séculos do Brasil Colonial pouco se produziu em termos culturais. Dentre os grupos missionários que atuaram no Brasil os padres jesuítas da Companhia de Jesus exerceram uma enorme influência no desenvolvimento cultural da colônia brasileira. Os portugueses não trouxeram para o Brasil o movimento literário, mas trouxeram a capacidade literária revelada pela presença dos missionários jesuítas que lá chegaram junto com as naus portuguesas a partir do ano de 1549. Durante o período colonial Portugal impediu categoricamente a produção intelectual na colônia brasileira como meio de prevenir sua ação exploratória no continente recém contactado e evitar inconvenientes aos interesses metropolitanos. Contudo, a proibição não impediu que a produção cultural no brasil colonial se desenvolvesse. Dentre as áreas que se desenvolveram ressaltamos a literatura e a ciência. As escolas de ler, escrever e contar, gramática latina, casos de consciência, doutrina cristã e mais tarde retórica e filosofia escolástica, abertas pelos padres jesuítas nos seus colégios ajudaram a fundar os primeiros alentos da literatura brasileira e da ciência no Brasil.
As manifestações literárias no Brasil do século XVII, desde o poema Prosopopeia de Bento Teixeira de 1601 à Música do Parnaso de Botelho de Oliveira de 1705, viram um desenvolvimento lento e penoso, mas, ainda assim, existente. Para além dos já citados e outros incógnitos aparecem também poetas como o padre Antônio de Sá, o famoso poeta satírico Gregório de Matos e seu irmão Eusébio de Matos. Gregório de Matos nasceu na Bahia em 1623. O poeta estudou em Portugal, na Universidade de Coimbra. Escreveu sobre o Brasil, mais especificamente sua terra natal, a Bahia. A pena é pesada ao expor em críticas a estrutura política, o clero e o sistema comercial. Contudo a literatura brasileira Colonial produziu mais do que poemas gongoristas, heroicos ou satíricos. Um estilo moderno de literatura de viagem são as viagens cósmicas ou viagens celestes. Nesse gênero literário um dos primeiros textos produzido no Brasil foi o Uranophilus Cæelestis Peregrinus do padre Jesuíta moravo Valentim Estancel publicado em 1685. O desenvolvimento da matemática, da física, da astronomia e da astrologia pode ser verificado desde a antiguidade. A astrologia cumpre uma parte importante na relação entre a ciência e religião. No Uranophilus são discutidas as principais teorias astronômicas de seu tempo, onde a teoria do heliocentrismo figurou entre as mais importantes e perigosas das novas teorias do século XVII. Já no campo da produção científica deve-se também ao padre Estancel os primórdios da pesquisa científica no campo da matemática e da astronomia. Ao nos debruçarmos sobre o tema do pioneirismo científico no Brasil colonial, cabe uma atenção maior sobre o papel do Padre Valentim Estancel no ambiente científico-religioso do século XVII. De fato, o desenvolvimento cultural da colônia foi desprivilegiado no Brasil.
A natureza e os habitantes da terra achada, pela riqueza e novidade, serviram, eles próprios, como objetos da investigação científica. A preguiça, a arara, o bicho-de-pé, o lobo guará, o guaiamum, o jenipapo, o urucu, o tucum, a mandioca, o gravatá, a caviúna, o pau-d’arco, a sapucaia e muitos outros frutos da agucaram a curiosidade e a cobiça dos europeus. Os índios também sabiam cultivar algodão, fumo, mandioca, batata-doce, milho, feijão, amendoim e muito mais. Fabricavam o cauim, uma bebida alcoólica, a partir da fermentação da mandioca, teciam as suas redes com diversas fibras, construíam as suas moradias com materiais de origem vegetal, pintavam os seus corpos com tintas originárias de jenipapo e urucu e faziam os seus arcos e flechas usando, entre outros, caviúna, pau-d’arco e bambu. O fato de saberem como eliminar o veneno da mandioca nativa, tornando-a comestível, revela um saber técnico bastante elaborado. Os seus conhecimentos zoológicos eram minuciosos e fidedignos. Esses dados recolhidos pelos primeiros cronistas permitiram a identificação científica de plantas e animais.
Florestan Fernandes em A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá de 1951 (Fernandes, 1951) utilizou relatos fornecidos pelos viajantes quinhentistas e seiscentistas para traçar uma feição do índio do Brasil Colonial. Elaboraram-se nos séculos XVI e XVII numerosos relatos, narrativas, cartas, notas, apontamentos e outros documentos, descrevendo, de forma precisa ou fantasiosa, as características do novo domínio lusitano. Foi pelos olhos e penas de autores estrangeiros como Padre Manuel da Nóbrega, Padre José de Anchieta, Simão de Vasconcelos, Pero de Magalhães Gandavo, Gabriel Soares de Sousa, André Thevet, Jean de Lery, Ives d’Evreux, Claude d’Abbeville, Hans Staden, Gaspar Barleus, Willem Piso, Georg Marcgraf, André João Antonil, Fernandes Brandão, Frei Vicente de Salvador, entre outros, que deram a colônia e ao mundo uma imagem do Brasil. O padre Valentim Estancel também deixou registradas suas primeiras impressões da terra. Em julho de 1664, um ano após sua chegada ao Brasil, Estancel enviou uma carta a seu interlocutor e amigo o padre Athanasius Kircher dando notícia sobre os aspectos e fenômenos da natureza, assim como a influência dos astros na conformação do Brasil. Sabe-se que ao menos mais duas pessoas tenham tido acesso a esta obra. São eles Giorgio de Sepi que cita o texto de Estancel no catálogo do Museu Kircheriano editado em 1678 e Gioseffo Petrucci no seu Prodomo apologetico na ambiência do debate entre Francesco Redi e Athanasius Kircher sobre as maravilhas do mundo. Apesar do abandono inicial do Brasil várias expedições exploradoras e de reconhecimento como as de Gonçalo Coelho e Gaspar de Lemos e as expedições guarda-costas com Cristóvão Jacques foram enviadas pelo rei de Portugal a fim de explorar o litoral e combater piratas e corsários, principalmente franceses, para garantir a posse da terra. O padre Valentim Estancel estava rumando para uma terra desde o nascimento cobiçada onde as invasões seriam frenquentes na formação do Brasil. O sistema de feitorias, já utilizado no comércio com a África e a Ásia, foi empregado tanto para a defesa como para realizar o escambo ou troca do pau-brasil com os indígenas. A exploração do pau-brasil, monopólio da Coroa portuguesa, foi concedida ao cristão-novo Fernão de Noronha. A partir de 1530, temos o início da colonização efetiva, com a expedição de Martim Afonso de Sousa, cujos efeitos foram o melhor reconhecimento da terra, a introdução do cultivo da cana-de-açúcar e a criação dos primeiros engenhos, instalados na recém-fundada cidade de São Vicente, no litoral de São Paulo, que no século XVI chegou a ter treze engenhos de açúcar e em Pernambuco, onde o açucar viu seu maior desenvolvimento. Sendo terra nova e muito por descobrir, o Brasil rapidamente entrou nos objetivos da Igreja Romana. A própria Coroa portuguesa tinha interesse na missionação, não apenas para o reconhecimento e dominação do espaço, mas como dominação cultural e o aumento da própria fé cristã. Sebastião da Rocha Pita((Para alguns historiadores trata-se do primeiro livro de história do Brasil. No entanto, a historiografia aponta Frei Vicente do Salvador como o autor da primeira obra de História do Brasil que abarca todo o território brasileiro conhecido à época.)) escreve em sua Historia da America Portugueza (Pita, 1730) que D. João III, “…empenhou o seu Catholico zelo na empreza, assim das terras, como das almas do Brasil” (Jesus, 2011, p. 158). E quanto à introdução da Companhia de Jesus em 1549 o autor chega a afirmar que, “…ao tempo em que os soldados conquistavão terras, ganhavão estes novos guerreiros almas” (Jesus, 2011).
Nas primeiras décadas que se seguiram ao descobrimento do Brasil a colônia conheceu um relativo período de abandono. Salvo o monopólio comercial do pau-brasil e da presença de algumas expedições no litoral brasileiro, os portugueses não se interessaram pelas novas terras. Uma vez que o reino português não encontrou metais preciosos na colônia americana os esforços da metrópole estavam concentrados no rendoso comércio com as Índias e no estabelecimento do Império Colonial do Oriente. Não obstante, o ano de 1530 marca o início da colonização do Brasil. O lucrativo comércio de especiarias do Oriente se mostrava agora deficitário, em razão dos altos custos militares que garantiam o monopólio português nas Índias, além da concorrência de reinos que partiram tardiamente em direção à corrida comercial oriental, caso da Holanda. A colônia portuguesa na América, assim como outras colônias mundo a fora, foi cobiçada por outros reinos europeus, os quais partiram tardiamente na corrida colonial. Além do perigo holandês, crescia a presença dos contrabandistas franceses no litoral brasileiro, intensificando o contrabando de pau-brasil. Diante desse novo quadro, D. João III, rei de Portugal, organizou a primeira expedição colonizadora ao Brasil. Composta de quatrocentos homens, a expedição de Martim Afonso de Sousa tinha três finalidades. Uma, iniciar a colonização através do povoamento, fazer o reconhecimento através da exploração e proteger o litoral contra a presença estrangeira. Em 1532, Martim Afonso de Sousa fundou a vila de São Vicente, hoje localizada no litoral sudeste do Brasil. Diferentemente de uma feitoria, São Vicente foi um núcleo de povoamento com uma Igreja, uma Câmara Municipal e uma Cadeia. Para além das primeiras vilas do Brasil foram construídos engenhos de açúcar na Bahia e, principalmente em Pernambuco. Porém a situação da colônia brasileira mudou a partir da segunda metade do século XVI com a decisão política de estabelecer uma administração local no Brasil, subordinada a Corte portuguesa.
Os portugueses começaram, de fato, a ocupação e administração territorial da nova terra em 1549 através do Regimento do Governador Geral ou Regimento de 17 de dezembro de 1548. Com o primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa,((Capitão-mor Tomé de Souza – primeiro governador-geral da capitania da Baía e de todas as capitanias e terras da costa do Brasil, nomeado em sete de Janeiro de 1549. Governou só três anos. A Província do Brasil foi criada em 1553.)) chegaram também os primeiros jesuítas e os mestres de corporação de ofícios. Luiz Dias era mestre-de-obras da fortaleza; Diogo Peres, mestre pedreiro; Pedro Góes, mestre pedreiro-arquiteto; além de outros pedreiros, carpinteiros e demais artífices. A função deles foi construir a cidade de Salvador, capital do Governo Geral, ao lado de uma fortaleza de pedra e cal. Outro profissional responsável pelas construções foi o engenheiro militar, que também se ocupou de obras de defesa no litoral e nas fronteiras. Também fez demarcações e levantamentos geográficos e topográficos. Em 1549 Tomé de Sousa, funda a cidade de Salvador da Bahia, transformando-a na primeira capital da colônia. O que é muitas vezes ignorado pelos historiadores é que a administração do Brasil colonial foi executada por pessoas que viviam há décadas no Oriente, sobretudo na Índia, o que confere ao Brasil colonial uma relação cultural, com a Europa, mas também com o Oriente. Com a chegada dos negros africanos e a catequização dos índios, a cultura colonial brasileira nascia marcada pela miscigenação cultural.
A pecuária colonial aos poucos ocupou toda a área do agreste e do sertão nordestinos e a bacia do rio São Francisco, para onde foi missionar o padre boemio Jan Gintzel, contemporâneo do padre Estancel na missão do Brasil no final do século XVII, a qual contava com apenas 25 padres estrangeiros. Durante o período Colonial, o Brasil foi alvo de várias incursões estrangeiras, sobretudo de franceses, ingleses e holandeses. Os franceses chegaram a fundar, em 1555, uma colônia, a França Antártica, na ilha de Villegaignon, na baía de Guanabara. Somente foram expulsos em 1567. Mais tarde, entre 1612 e 1615, novamente os franceses tentaram estabelecer uma colônia no Brasil, desta vez no Maranhão, chamada França Equinocial. A União Ibérica foi a união entre Espanha e Portugal. Foi a unidade política que regeu a Península Ibérica de 1580 a 1640 com o domínio dos espanhóis. Os efeitos da União Ibérica fizeram se sentir pela constante presença invasora de estrangeiros, hostis aos interesses da dominação social espanhola. Os holandeses fundaram a Companhia das Índias Ocidentais em 1620, promovendo ataques e ocupações nas colônias portuguesas, principalmente no Brasil. Os holandeses, em busca de domínio econômico invadiram a Bahia e Pernambuco. Os holandeses invadiram o Brasil em busca do domínio da produção do açúcar, do qual eram refinadores e distribuidores na Europa. Entre 1637 e 1644, Pernambuco foi governada pelo príncipe holandês Maurício de Nassau-Siegen, o qual restabeleceu a produção açucareira, promoveu o desenvolvimento urbano e permitiu a liberdade religiosa e política. Sob sua administração, vieram para Pernambuco cientistas de diversas áreas e artistas como Albert Eckhout e Franz Post. Nassau implementou uma política cultural avançada, fundando, na capital Recife, imprensa, museus, bibliotecas e o primeiro observatório astronômico da colônia, estimulando a ação de alguns cientistas, arquitetos e pintores da sua corte. Faziam parte dela intelectuais do porte de Willem Piso, médico de Amsterdã, Georg Marcgraf, astrônomo e naturalista alemão, Franz Post, pintor, e o seu irmão Peter Post, arquiteto, entre outros. Marcgraf foi o primeiro a fazer observações astronômicas no país presentes em seu livro Historia Naturalis Brasiliae de 1648. A despeito da invasão das terras dos índios, agora dos portugueses, o conde Maurício de Nassau realizou brilhante administração em Pernambuco. Em 1645, os holandeses foram expulsos do Brasil no episódio conhecido como Insurreição Pernambucana.
Os estrangeiros cobiçavam o litoral brasileiro e os colonos o seu interior. Ao mesmo tempo que ganhavam o interior em busca de índios e ouro rumando à Oeste, os bandeirantes ultrapassaram a linha imaginária de Tordesilhas que desde 1494 separava as terras americanas pertencentes a Portugal e à Espanha, contribuindo para alargar o território brasileiro. As fronteiras ficaram demarcadas por meio da assinatura de vários tratados, dos quais o mais importante foi o de Madri, celebrado em 1750, e que praticamente deu ao Brasil os contornos atuais. Para se compreender melhor a história do Brasil Colonial é necessário relacioná-la de maneira estreita com os acontecimentos ao redor desse mundo, que é realmente novo, o Oriente e o Ocidente através dos mares.
O Padre Valentim Estancel Missionário no Brasil
O Padre Valentim Estancel viveu em Portugal por seis anos. Durante todo esse tempo esperou uma resposta afirmativa as suas várias cartas pedindo para ser enviado a missão da China. O Oriente estava na moda entre os jesuítas até meados de 1650. O estudo da matemática era valorizado na Companhia de Jesus desde o final do século XVI e foi um dos fatores que tornou possível a missão na China ao ajudar, por exemplo, na reorganização do calendário chinês. A boa receptividade motivou jovens religiosos a se colocarem a disposição para missões naquela parte do mundo. Não obstante, os superiores do padre Valentim Estancel nunca lhe deram a permissão de seguir a Carreira da Índia, no entanto, o enviaram para a missão no Novo Mundo, na América, no Brasil. Para estas regiões começaram a ser dirigidos missionários estrangeiros após a Paz Westfália, majoritariamente oriundos das possessões dos Habsburgo, devido aos fortes laços dinásticos entre austríacos, espanhóis e portugueses, mas também do Império Sacro Romano-Germânico. A porcentagem de não-ibéricos nas missões luso-espanholas jamais podia ultrapassar a casa dos 25% do contigente de missionários presentes numa região. Uma das multifacetadas razões para que o padre Estancel e tantos outros padre da Companhia tivessem seus pedidos negados ou adiandos por anos. A história das missões na segunda metade do século XVII e no seguinte oferece uma constante luta, ora manifesta, ora latente, entre os jesuítas, e os delegados de Roma, os quais queriam impedir todo acesso a esses países, e todo o inquérito sobre as suas ações. De tal modo haviam segregado as suas colônias transatlânticas do resto do mundo, que aliás viviam ignoradas por todos, exceto pelos seus superiores em Roma, aos quais eram obrigadas a enviar anualmente das províncias minuciosa correspondências dando notícias das missões.
Quando vivia na Boêmia Estancel pertencia à província da Assistência Alemã da Companhia de Jesus, que se estendia dos Países Baixos pelos territórios dos atuais países Alemanha, Suíça, Áustria, Hungria e Polônia até a República Tcheca, aglutinando assim em sua área principal os reinos da antiga Dinastia Austro-Húngara e os territórios do Sacro Império Romano-Germânico. Os jesuítas do Centro da Europa partiram para missionação em colônias ibéricas a partir da segunda metade do século XVII, período pós Guerra dos Trinta Anos. A Europa Central foi a principal região dos protestantes e fez com que Portugal proibisse a entrada de estrangeiros em suas possessões, principalmente provenientes dessa região. No entanto, havia a necessidade de missionários nas províncias tanto do Oriente como da América. Os padres enviados às missões deveriam ter uma bagagem intelectual consistente para melhor instruir os jesuítas e os índios. Isso se verificou na política da Companha em enviar letrados estrangeiros para as colônias ibéricas. “… polla grandíssima terra que tem descoberta e necessidade que as taes tem de letrados” considerando que estes sacerdotes (Jesuítas) eram “os mais autos pera converter toda Índia” (Blume, 2001, p. 63).
A partir da segunda metade do século XVII, sobretudo na década de 1660, os membros da Companhia de Jesus no Brasil reacenderam a questão da autonomização das províncias. Essa demanda de autonomia se relacionava diretamente com a ação política da ordem e sua relação com Roma e com a estrutura político-administrativa da própria colônia em relação a evangelização, à escravidão e também ao desenvolvimento cultural e científico de seus membros existente em seus colégios. A Ordem Jesuítica era organizada em províncias, espalhadas por todo o mundo, governadas por um provincial e agrupadas em assistências. O poder supremo dentro da ordem competia à Congregação Geral, formada pelos provinciais e delegados eleitos, por períodos determinados, por cada congregação provincial. A congregação geral elegia um superior que, embora vitalício, podia ser deposto pelo papa, por decisão própria ou por sugestão da congregação geral. Ainda hoje as constituições feitas por santo Inácio só podem ser modificadas com a aprovação do papa. A questão da autonomia provincial estava na pauta de discussão da Congregação Abreviada da Província, reunida no Colégio da Bahia. Foi elaborada uma lista de exigências ligadas aos problemas pelos quais passavam os jesuítas da colônia para ser enviada por um procurador à Roma. As demandas dos jesuítas da província brasileira se relacionavam aos interesses da Ordem em aumentar seu prestígio e influência no Brasil através da ampliação da quantidade de seus membros. Admitir mais naturais da terra, divulgando e glorificando a sua própria atuação em benefício dos habitantes da colônia e do governo português. Os padres no Brasil por um lado, fortaleciam laços e alianças políticas que lhe permitiam manter sua política de aldeamentos e, por outro, glorificar e defender uma identidade missionária própria e uma atuação mais autônoma junto a seus pares na Europa e ao governo central da Companhia. Tais práticas e propostas de autonomia da Ordem no Brasil não encontraram eco em Roma. A cúria jesuítica mais uma vez se mostrou contrária às demandas dos religiosos do Brasil. Praticamente todos os itens da lista encaminhada pelo padre Vasconcelos foram rejeitados e ele foi obrigado a voltar para Lisboa em 1662. Por sua vez, o Padre Geral, João Paulo Oliva, contrariando em parte a recomendação de cuidado com estrangeiros em postos hierárquicos nas províncias, enviou à província do Brasil um novo visitador, estrangeiro, o padre italiano Jacinto de Magistris. O novo visitador entrou para a Companhia de Jesus, em 1626, com 21 anos na província de Veneza. Por volta de 1644 foi missionário e procurador no Oriente. O religioso protagonizou na colônia brasileira um episódio religioso no século XVII conhecido na historiografia brasileira como a Jacintada, ou seja, o movimento que levou a temporária suspensão do padre Jacinto de Magistris das funções de Visitador da província brasileira. A expulsão, assim como as reivindicações dos padres do Brasil, foram expressamente desaprovadas pelo Padre Geral da Companhia em Roma. Quando Magistris chegou à Bahia, em junho de 1663 verificou um número excessivo de admissões, demasiados naturais da terra como membros da Companhia, condutas reprováveis para religiosos, o que incluía o envolvimento direto em negociações comerciais. Enviado para fazer valer as ordens do Geral, o visitador foi deposto do cargo e expulso da província brasileira pelos companheiros de Ordem em setembro de 1663, três meses após a sua chegada. A iniciativa de retirar Magistris de seu cargo partiu do próprio provincial, o padre José da Costa, que, após votação feita com outros professos mais antigos, inclusive Simão de Vasconcelos, tornou pública a deposição. Entre os outros votantes estavam os padres Jacinto de Carvalhais, Manuel da Costa, João Luiz, Agostinho Luiz, Barnabé Soares e Luiz Nogueira (Leite, 1938-1950, pp. 38-39). O episódio da chegada conturbada de Magistris à Bahia parece ter sido fruto de uma combinação de fatores em que a inabilidade do novo visitador em compreender as relações de uma província de características peculiares, muito diferentes das que ele tivera contato no Oriente((Jacinto de Magistris foi um missionário jesuíta na Índia e visitador no Brasil.)), e da sua indisposição para o diálogo, descartando negociações ou concessões (Freitas, 2014, p.36). Somado a isso os resistentes tinham como um de seus líderes o próprio padre Simão de Vasconcelos, o qual partiu no mesmo dia de Lisboa em direção ao Brasil, mas em Naus diferentes. O padre Vasconcelos foi o procurador das estratégias adotadas pelos jesuítas da província do Brasil. A postura de Magistris se mostrou problemática exatamente por ir contra ao que o grupo entendia como “estratégias de adaptação” da Companhia no Brasil. Seis padres, tanto de naturalidade da Colônia, como de Portugal, somados ao provincial que era estrangeiro, depuseram o Padre Visitador de Magistris e, tiveram como consequência, uma tremenda repreensão do Padre Geral em 1667, quando cinco deles foram impedidos, por causa de seus atos insubmissos, de serem padres de decisões e de governança da Companhia de Jesus (Freitas, 2014).
Em 02 de Junho de 1662 o Geral da Companhia, João Paulo Oliva deu instruções para o jesuíta italiano Jacinto de Magistris para seguir como visitador às missões do Brasil. A nomeação de um visitador estrangeiro feria uma lei da própria Companhia de Jesus, que estabelecia como norma, a impossibilidade do cargo de visitador ser ocupado por padres estrangeiros, ou seja, aqueles que não fossem nem de Portugal ou do Brasil. Era muito clara a importância do local de nascimento para se tornar um províncial visitador. É sabida a intolerância e a desconfiança dos portugueses em admitir em seus quadros hierárquicos os chamados padres estrangeiros. A situação se agravava ainda mais se por ventura o jesuíta fosse proveniente de países do Centro da Europa. A corte portuguesa via com suspeita a eleição de estrangeiros para cargos de alguma importância em seus domínios coloniais. A nomeação de um novo visitador do Brasil se deu de forma tensa. A hierarquia jesuítica havia que estar afinada com a hierarquia política portuguesa. Alguns padres da província do Brasil queriam como visitador o padre Simão de Vasconcelos((O padre Vasconcelos foi Provincial do Brasil entre os anos de 1655 e 1658)). O padre Vasconcelos foi Províncial do Brasil entre os anos de 1655 e 1658. Dentre seus feitos está a construção da Catedral da Sé da capital Salvador. Simão de Vasconcelos foi eleito Procurador Geral do Brasil em Roma em 1660 chegando à cidade dos Papas em 1662. No entanto, o Padre Geral João Paulo Oliva optou pelo padre Jacinto de Magistris, o qual o padre Simão Rodrigues teve muitos desacordos em Portugal (Ramos, 2003, p. 424). Sabe-se que o Padre Simão Rodrigues levou para a Europa seus manuscritos na intenção de submetê-los a censura da Companhia para publicação. O principal livro de Vasconcelos na altura foi a Chronica da Companhia de Jesus do estado do Brasil de 1663 o qual contemplou dois textos anteriores de Vasconcelos contidos nas Noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas do Brasil. O texto foi aprovado pela censura e recebeu licença para publicação. No entanto, depois de impressa a obra, o novo padre visitador da província do Brasil, o padre Jacinto de Magistris, deu parecer desfavorável aos sete últimos parágrafos das Noticias o que resultou da retirada desses parágrafos na versão final da obra. Segundo Serafim Leite, o livro já estava impresso e com alguns exemplares distribuídos quando veio a ordem para recolhê-los (Laite, 1965, pp. 359-362). Como resultado da censura, as quatro folhas correspondentes às páginas 177 a 184 foram removidas do livro, a folha com as páginas 177 e 178 foi reimpressa e colada no livro. Assim, da página 178 da Chronica passa-se para a página 185. A censura e posterior recolhimento da obra para os ajustes da impressão acendeu a querela entre o padre Simão de Vasconcelos, preferido dos missionários do Brasil para o cargo de Visitador da província do Brasil, principalmente do Maranhão e os adeptos do padre Jacinto de Magistris, recém-empossado no cargo supracitado pelo Superior Geral João Paulo Oliva. Esse episódio teve consequências desastrosas para o Visitador Magistris quando de sua chegada ao Brasil em 1663. Jacinto de Magistris foi o único visitador estrangeiro no Brasil, no entanto, sua administração na colônia não durou mais que três meses, sendo expulso do Brasil e destituído de suas funçoes de Visitador((O provincial do Maranhão padre José da Costa e o padre Jacinto de Carvalhais foram a maior oposição ao novo visitador no episódio conhecido como a Jacintada.)). O Geral da ordem enviou Magistris com o objetivo de evitar que os jesuítas locais se envolvessem em rusgas políticas. Jacinto de Magistris atuaria como verificador das atividades dos padres na Colônia, com o atributo de ordenar a realização do que o Padre Geral lhe atribuía. Magistris trouxe a experiência de ter sido procurador da Província do Malabar, localizada na Índia. O Padre Geral fez uso de seu poder supremo ao elencar Jacinto de Magistris para ser Visitador da Colônia do Brasil, feito que agradou o rei de Portugal e, preocupou os padres da Colônia, como evidência da consonância de Roma com Portugal para o atendimento das propostas educacionais colonizadoras. Esta função era bastante adequada para o que se estava propondo, uma vez que ela era responsável pelo relacionamento entre os padres de Portugal e da Colônia, articulando-se ainda com o rei de Portugal. Portanto, o padre visitador transitava livremente no ambiente da realeza e nos meios institucionais jesuíticos da Colônia. Jacinto de Magistris partiu de Lisboa rumo ao Brasil a 19 de Abril de 1663 na 45ª Expedição da Companhia de Jesus. A viagem contou com duas naus, uma com o visitador Jacinto de Magistris e onze jesuítas, e a outra com o padre Simão de Vasconcelos, o Vice-rei D. Vasco, o qual havia recusado receber Jacinto de Magistris em sua residência em Lisboa dada as suas relações políticas com Simão de Vasconcelos((D. Vasco de Mascarenhas foi Conde de Óbidos e administrador colonial português. Foi Governador Geral do Brasil em 1640 e nomeado vice-rei do Brasil em 1663 ficando nesse cargo até 1667.)), e mais dez Jesuítas (Leite, 1949, pp. 556-557). A bordo da primeira embarcação foram, além do visitador Jacinto de Magistris, mais onze membros da Companhia de Jesus, sete padres regulares e quatro irmãos. São eles os padres portugueses Luiz Nogueira, secretário; o padre Lourenço Craveiro e o padre Cristóvão Colaço. Seguiam embarcados também os irmãos Afonso Martins, português; o padre Teodoro Hons, alemão; o padre João de Silva, italiano e o padre Francisco Carandini, italiano. Os irmãos italianos Paulo Camilo, José Salembé e José Torres. Dentre esses padres jesuítas estava o padre moravo Valentim Estancel que, em fim, partiu em missão, não mais à China dos matemáticos, mas à província do Brasil dos índios e das estrelas. Na década de 1660 a intensificação das tensões internas à província jesuítica brasileira sobre o tipo de atuação dos missionários do Brasil foi acompanhada por uma forte reação interventora da cúria romana. A Jacintada foi mais um episódio que indica a continuidade da tensão entre a província do Brasil e a cúria romana por conta da permanência das estratégias próprias de ação encaminhadas pelos missionários do Brasil, onde o padre Antônio Vieira teve participação ativa ao defender os direitos dos índios na província do Maranhão. Elaborou-se uma lista de demandas ligadas aos problemas do Brasil encaminhada à Roma. Entre elas, propunham a separação da província brasileira da Assistência de Portugal, além de um procurador próprio em Roma atuando junto à representação portuguesa. Justificavam-se ressaltando a lentidão que a intermediação portuguesa implicava na resolução de questões de interesse dos jesuítas do Brasil. O procurador escolhido foi o padre Simão de Vasconcelos. O provincial do Maranhão José da Costa se opôs ferrenhamente ao novo Visitador, invocando o decreto quarenta da IX Congregação para levantar um processo de deposição contra Jacinto de Magistris (Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, 2011). Dada a forte oposição de suas ordens para a província colonial Jacinto de Magistris foi expulso do Brasil e regressou à Europa. Magistris voltou à Índia ainda com o título de Visitador do Brasil. O Jacinto de Magistris viria a falecer em novembro de 1668 em Goa na Índia.
A Companhia de Jesus no Brasil e o século XVII Luso-brasileiro
Uma vez estabelecida as diretrizes da formação político-econômica da colônia, com os governos gerais e a consolidação do domínio do litoral frente à cobiça dos estrangeiros pelo certo descaso com a produção da colônia brasileira até 1530, teve início no século XVII a expansão territorial do Brasil interiorizando a colonização lusa, na qual se destacaram três figuras humanas: o bandeirante, organizando as expedições de apresamento indígena e de prospecção mineral; o vaqueiro, ocupando as áreas de pastagens nordestinas e criando o gado, e, finalmente, o missionário, principalmente o jesuíta, envolvido na catequese e na fundação das missões. O restante do litoral brasileiro e o Sul da colônia foram marcados pela expansão oficial, onde a ação das forças militares portuguesas afastou a ameaça estrangeira. O Brasil entrou no século XVII sob o domínio espanhol, com a chamada União Ibérica que se estendeu de 1580 até 1640. Desde a segunda metade do século XVI grupos de colonos realizaram expedições ao interior do Brasil em busca de riquezas e de escravos indígenas. Essas expedições, que saíram principalmente da Bahia e de São Paulo, eram comandadas por um capitão autorizado pela coroa portuguesa que ajudaram a conquistar e a ampliar a ocupação do território, até então restrita ao litoral. Com a união ibérica, a linha imaginária de Tordesilhas não precisava mais ser respeitada. Ao entrarmos no ano de 1608 o Brasil foi dividido em duas partes, pela segunda vez. A parte sul, com capital no Rio de Janeiro, e a parte norte, com capital em Salvador. Essa divisão durou até 1612, quando o Brasil foi novamente unido, com capital em Salvador. A partir de 1640, Portugal voltou a dominar o Brasil expulsando os espanhóis de suas possessões. Em Portugal, a desintegração da união ibérica, sob a égide da restauração da Dinastia dos Bragança, com D. João IV, se apoiava no fortalecimento da burguesia urbana em função do comércio dos produtos brasileiros. O dinheiro e as alianças diplomáticas e militares com a Holanda, a Inglaterra e a França sustentaram a guerra de independência frente à Espanha. O sopro de uma nova mentalidade mais comprometida com os fatores de ordem extra-religiosa e o afastamento da influência castelhana caracterizaram os rumos da cultura portuguesa, na época. Mas, apesar desta onda renovadora, as instituições religiosas, especialmente a Companhia de Jesus e a Inquisição, mantiveram seu alto prestígio na condução da vida sociocultural e dos negócios do Estado. Contudo, centros universitários como a Universidade de Coimbra ofereciam, em plena segunda metade do século XVII, um tipo de ensino eminentemente escolástico e formalista divorciado dos avanços científicos e filosóficos marcantes em outras partes da Europa. A partir da restauração portuguesa, a administração Colonial passou a ser cada vez mais controlada não só pela instituição do Conselho Ultramarino de 1642 destinado a deliberar sobre todas as matérias e negócios da Índia e do Brasil, como também pela fundação da Companhia Geral do Comércio do Estado do Brasil em 1649, ambas as medidas da iniciativa de D. João IV. Por isso, já no final do século XVII, passaram a ocorrer no Brasil vários levantes contra o Estado português. Esses levantes são conhecidos na historiografia brasileira como Movimentos Nativistas que, embora não visassem um projeto de separação política de Portugal, propunham reformas setoriais no sistema Colonial. A revolta dos irmãos Beckman na província do Maranhão em 1684, uma das conspirações seiscentistas mais importantes, confirma o caráter regional destes distúrbios. Sua principal motivação foi o conflito entre senhores de engenho de cana e comerciantes em torno das práticas do monopólio comercial que possibilitava a seus agentes amplos privilégios no contexto da dominação portuguesa, mesclado, no convívio dissonante entre a tradição do colonizador, os costumes do seu escravo e o perfil do índio. Foi nesse cenário luso-brasileiro que o Padre Valentim Estancel aportou em Salvador da Bahia em 1663 e no qual missionou por 42 anos, vindo a falecer em 1705.
Quando o padre Valentim Estancel chegou à Bahia, a missão do Brasil já contava com mais de cem anos, no entanto as condições ainda eram muito precárias na Colônia desde a chegada da Companhia de Jesus em 1549. O padre Manuel da Nóbrega em carta datada de 10 de agosto de 1549 comentou sobre a situação político-social do Brasil Colonial, onde os indígenas da América eram considerados “homens como os demais, com o direito à sua liberdade e a possuir e gozar os seus bens ainda que não estivessem convertidos” (Leite, 1955). A desordem era tamanha que o padre Francisco Rodrigues (Rodrigues, 1922, pp. 81-115) afirmou que não se conseguia notar as regras e costumes do primitivo instituto. Manuel da Nóbrega escreveu ainda relatando que os sacerdotes portugueses que lá estavam expressavam maus exemplos pelos seus costumes, contrariando as leis de Cristo e chegando a dizer publicamente aos homens, “… que era lícito estar em pecado com suas negras, pois que são suas escravas…” (Rodrigues, 1922).
Contudo, o superior da Companhia de Jesus em Portugal, o padre Simão Rodrigues, enviou ao Brasil os primeiros jesuítas para colônia portuguesa na América. Foram quatro padres e dois irmãos coadjutores. O comando da missão ficou a cargo do padre Manoel da Nóbrega. (Leite, 1955). Chegaram com ele os padres jesuítas portugueses Leonardo Nunes e Antônio Pires, o espanhol João de Azpilcueta Navarro, e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome. O Padre Manuel da Nóbrega assim que aportou na colônia em março daquele ano tomou as primeiras providências para a criação de uma escola de primeiras letras. E, em 15 de abril de 1549, em Salvador, Bahia, foi fundada a primeira escola primária de ler e escrever no Brasil. O jesuíta Vicente Rijo Rodrigues foi o primeiro mestre-escola do Brasil. Ele nascera em São João de Talha, na margem direita do rio Tejo, perto de Lisboa. Faleceu no Colégio do Rio de Janeiro, em 9 de Junho de 1600. Apesar da educação estar intimamente ligada aos jesuítas, na época da sua fundação a Companhia de Jesus não teve o ensino como um dos seus obejtivos imediatos. Segundo a professora Ana Isabel Rodrigues da Silva Rosendo da Universidade do Minho,
Quando Inácio de Loiola e os seus companheiros fundaram a Companhia de Jesus parece não haver nenhuma intenção de que um dos seus objectivos seja o ensino, e até mesmo a Bula Papal que aprova esta Ordem não se refere a isso. No entanto, vamos encontrá-la nas Constituições da Companhia que, apesar de terem começado a ser escritas por Inácio de Loiola em 1539, só foram aprovadas em 1558 (Rosendo, 1996, pp. 20-21).
Contudo foi a sua maior arma na evangelização e a sua manutenção como uma Ordem religiosa orgânica e organizada. Tendo o padre Manuel da Nóbrega, Provincial dos Jesuítas no Brasil, solicitado mais braços para a atividade de evangelização do Brasil o Provincial da Ordem, Simão Rodrigues, indicou, entre outros, o padre José de Anchieta((José de Anchieta foi um padre jesuíta espanhol, santo da Igreja Católica é conhecido como o Apóstolo do Brasil, por ter sido um dos pioneiros na introdução do cristianismo no país e um dos fundadores da cidade brasileira de São Paulo. Anchieta foi beatificado em 1980 pelo Papa João Paulo II e canonizado em 2014 pelo papa Francisco.)). Anchieta chegou a bordo da frota que trazia o novo governador geral do Brasil, Duarte da Costa em 1553. Durante o governo de Duarte da Costa que foi até 1558 ocorreram vários distúrbios, motivados na sua maioria pelos conflitos entre colonos e jesuítas, envolvendo a escravização de indígenas. Os colonos tinham o apoio de Álvaro da Costa, filho do governador, que por sua vez entrou em conflito com o bispo D. Pero Fernandes Sardinha, Sua gestão conviveu ainda com a invasão francesa ao Rio de Janeiro, em 1555, onde foi fundada a França Antártica((A França Antártica foi uma colônia francesa estabelecida na região da atual cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, no século XVI, existindo de 1555 a 1560.)). Sem condições de combater os invasores, Duarte da Costa perdeu a autoridade, comprometendo sua administração. Ainda no seu governo, o padre José de Anchieta e o padre Manoel de Paiva fundaram o colégio de São Paulo, no planalto de Piratininga. Mem de Sá foi o terceiro governador geral no poder até o ano de 1572. Sá estimulou a lavoura de exportação e minimizou os conflitos que envolviam colonos e jesuítas. No seu governo, se iníciou a longa campanha que resultou na destruição da França Antártica, quando teve o apoio de Araribóia((Araribóia foi o chefe da tribo dos Temiminós, grupo indígena tupi que habitava o litoral brasileiro no século XVI. Araribóia judou os portugueses na conquista da baía de Guanabara frente aos Tamoios e franceses, em 1567.))e do seu sobrinho Estácio de Sá. Nesse contexto se deu a fundação da segunda cidade do Brasil, São Sebastião do Rio de Janeiro em 1565 e a desmontagem da Confederação dos Tamoios, a aliança indígena que apoiava os franceses, através do Armistício de Iperoig, negociado pelos jesuítas José de Anchieta e Manoel da Nóbrega. Com a implementação dos Governos Gerais com capital em Salvador e a manutenção e incremento das capitanias hereditárias de São Vicente no litoral paulista e de Pernambuco no Nordeste açucareiro o Brasil iníciou, de fato, seu processo de colonização. No entanto o desenvolvimento urbano da cidade de Salvador, local de missionação destinado ao padre Valentim Estancel no Brasil, entrou na virada do século XVI para o XVII com uma população bastante diversificada, com escravos provindos da África, portugueses, espanhóis, índios, experiências distantes, tempos e climas diferentes. O Brasil foi um verdadeiro Novo Mundo. Além do trabalho escravo e indígena que davam a sustentação produtiva da economia açucareira da colônia, devemos somar a essas bases a atuação dos padres da Companhia de Jesus na construção e formação educacional e espiritual do Brasil. Tanto foi importante a participação dos jesuítas na cultura brasileira que, muito embora sua extinção no século XVIII, a influência educacional dos jesuítas na educação brasileira está presente, dissimulada às vezes, até pelo menos a primeira metade do século XX. Esse quadro inicial da colonização do Brasil está intimamente ligado a missão jesuítica. A fundação de colégios e a catequização dos índios eram primordiais para o sucesso da colonização portuguesa nos trópicos.
Em seu clássico Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre defende que os jesuítas contribuíram para dispersar, através da catequese e dos aldeamentos, a unidade que eles próprios articulavam através de seu sistema moral e educacional. O grande erro da empresa inaciana teria sido a segregação religiosa dos índios nas aldeias. O controle sobre as populações indígenas teria levado os jesuítas ao mercantilismo e ao escravagismo, explorando o trabalho indígena em proveito próprio. O exemplo maior desse “mercantilismo escravagista” foram as reduções jesuíticas no Paraguai. Em Formação do Brasil Contemporâneo (Prado Jr., 2011) Caio Prado Jr. defende tese semelhante argumentando que os aldeamentos traçados a partir dos interesses específicos defendidos pela Igreja no âmbito da empresa Colonial segregavam a população indígena e impediam o índio de se tornar elemento ativo na sociedade, “participante integrado na vida Colonial ”. A ideia de que os aldeamentos teriam se tornado “coletividades enquistadas” no seio da civilização Colonial reproduziu, sem dúvida, a opinião de Capistrano de Abreu, para quem “as aldeias tornaram-se não só um estado no estado como uma igreja na igreja” (Santos, 2007, pp. 107-128). Aos poucos, o sistema de evangelizar aldeias circunvizinhas às povoações portuguesas se reproduziu nas principais vilas que iam sendo estabelecidas pelos colonos, constituindo um movimento denominado por Hoornaert de “ciclo missionário litorâneo” (Hoornaert, 1992. p. 109).
Literatura histórico-artística-científica-administrativa
Nos primeiros dois séculos do Brasil, os primeiros textos produzidos procuraram em grande parte promover a colônia ao descrever o território brasileiro, a fauna, a flora, os índios como estratégia de propaganda. Isso se verificou de maneira geral ao longo dos séculos XVI ao XVIII. A própria carta de Pero Vaz de Caminha((Carta de caminha foi o primeiro documento oficial do Brasil o qual relata com detalhes a chegada dos portugueses ao Brasil em Abril de 1500.)), primeiro registro literário feito no Brasil, na qual relatou o descobrimento e as primeiras impressões da terra e da gente do Brasil, imprime esta perspectiva que foi seguida pela literatura Colonial. A divulgação do Brasil por parte de sua metrópole era coisa rara. Não retratavam o Brasil em pinturas e não editavam livros. Sabia-se mais sobre o Brasil através das penas estrangeiras. Os Franceses quando invadiram o Brasil em 1555 com as frotas comandadas por Nicolas Durand Villegagnon levava abordo o padre franciscano André Thévet (1557) que relatou as singularidades do Brasil através de textos ilustrados por pinturas, dando ênfase no clima, na fauna e na flora e no índio da Baía de Guanabara no Rio de Janeiro para os olhos da Europa sobre a colônia portuguesa na América em seu livro Viagem a Terra do Brasil de 1578 (Léry, 1578.). Não obstante, a escassa divulgação cultural da colônia portuguesa nos trópicos era quase inexistente. A primeira notícia de divulgação editada sobre o Brasil foi a Relação do Piloto Anônimo, inserida em uma coletânea de viagens que saiu na Itália em 1507 chamada Terras Recentemente Descobertas de Fracanzano de Montalboddo (1507). Esse gênero literário ganhou força com as novas terras e novas gentes recém descobertas. Contudo, a produção literária no Brasil colonial, não só textos poéticos, mas prosa, relatos, crônicas, já contava com alguns autores. O primeiro livro dedicado ao Brasil em língua portuguesa foi a História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil do historiador e cronista português Pero de Magalhães Gândavo (1576) que viveu no Brasil na segunda metade do século XVI. O livro foi editado em Lisboa na oficina de Antônio Gonçalves em 1576. Na obra aparece uma descrição geográfica, política, da fauna, da flora, dos recursos hídricos, territoriais, antropológicos e econômicos. O historiador Capistrano de Abreu assim escreveu que o projeto de Gândavo era, ‟…Mostrar as riquezas da terra, os recursos naturais e sociais nela existentes, para excitar as pessoas pobres a virem povoá-la: seus livros são uma propaganda de imigração” (Gândavo, 1576).
Em 1618 veio a lume o Diálogos das Grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes Brandão (1618) escritor português, que viveu no Brasil Colonial como senhor de engenho no final do século XVI e início do XVII assim descreve a colônia brasileira:
… no Brazil seus moradores se ocupam somente na lavoura das canas-de-açúcar, podendo-se ocupar em outras muitas cousas. (…) a terra é disposta para se haver de fazer nela todas as agriculturas do mundo pela sua muita fertilidade, excelente clima, bons céus, disposição do seu temperamento, salutíferos ares e outros mil atributos que se lhe ajuntam (Herckmans, 1886).
O texto de Brandão é desenvolvido em forma de diálogo, no qual descreveu a geografia do Brasil, suas riquezas naturais, a forma de exploração incluindo o uso do trabalho de indígenas e escravos africanos, como cuidar da terra, os indígenas, os engenhos, o comércio com a Coroa e a presença de aventureiros. A obra Noticia do Brasil (Sousa, 1587) do colonizador, dono de engenho, comerciante, sertanista e navegador português Gabriel Soares de Sousa também retratou o Brasil pelas suas riquezas e oportunidades. Escreveu sobre a geografia, história, topografia, hidrografia, agricultura entretrópica, horticultura brasileira, matéria médica indígena em todos os seus ramos e até de mineralogia (Veríssimo, 1916). O jesuíta toscano João Antonil escreveu no início do século XVIII a obra Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (Antonil, 1711). Antonil foi Reitor do Colégio da Bahia e Províncial da Companhia de Jesus no Brasil. Nesta obra escreveu com profundidade e erudição sobre a realidade econômica da Colônia, notadamente a produção de açúcar, de tabaco e sobre a criação de gado. Descreveu as técnicas produtivas coloniais e comentou as condições de trabalho, sociais e políticas da colônia. O reino português não viu com bons olhos a obra de Antonil e foi advertida do risco de divulgação das informações precisas sobre as drogas e minas do Brasil. A Coroa portuguesa proibiu a obra na altura e confiscou os seus exemplares. Foi então julgado que suas licenças haviam sido ‟dadas sem a ponderação que pede um negócio público” (Conselho Ultramarino, 1711). O livro é considerado um dos melhores estudos sobre as condições sociais e econômicas do Brasil no início do século XVIII. Contudo, a considerada primeira obra historiográfica do Brasil foi História do Brasil (Salvador, 1627). de Frei Vicente do Salvador de 1627 franciscano nascido na Bahia em 1564. Vicente Rodrigues Palha nasceu em Matuim, ao norte da cidade da Bahia, em 1564. Estudou com os jesuítas no Colégio de São Salvador, e depois em Coimbra, concluindo o doutorado. Voltando ao Brasil ordenou-se frade vestindo o hábito de São Francisco e trocando o nome para de Frei Vicente de Salvador. Missionou na Paraíba e residiu em Pernambuco. Cooperou na fundação da casa franciscana do Rio de Janeiro, em 1607, sendo o seu primeiro prelado. Retornou a Pernambuco, onde foi professor do curso de artes, no convento da ordem franciscana, em Olinda. Em 1612 regressou à Bahia onde foi guardião do respectivo convento até sua morte por volta de 1638. A obra, História do Brasil, concluída no dia 20 de dezembro de 1627, ficou inédita até 1888 foi escrita por encomenda do mecenas Manoel Severim de Faria, um dos mais considerados eruditos portugueses contemporâneos, que lhe prometera publicá-la à sua custa (IHGS, s/d). O historiador Capistrano de Abreu ao falar da obra do Frei Vicente do Salvador afirma que,
Sua história prende-se antes ao século XVII que ao século XVI, neste com as dificuldades das comunicações, com a fragmentação do território em capitanias e das capitanias em vilas, dominava o espírito municipal: brasileiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Brasil, se não ficava infamado pelos diversos elementos de seu sangue, ficava-o pelo simples fato de aqui ter nascido um mazombo, se de algum corpo se reconheciam membros, não estava aqui mas no ultramar: portugueses diziam-se os que o eram e os que o não eram. Frei Vicente do Salvador representa a reação contra a tendência dominante: Brasil significa para ele mais que expressão geográfica, expressão histórica e social. O século XVII é a germinação desta ideia como o século XVIII é a maturação (Abreu, 1954).
Outro trabalho relevante sobre a história do Brasil foi a História da America Portugueza desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro de Sebastião da Rocha Pita((Sebastião da Rocha Pita foi advogado, poeta e historiador baiano, fidalgo da Casa Real, Cavaleiro da Ordem de Cristo e acadêmico da Academia Real da História.)) publicada em 1730. Sebastião da Rocha Pita nasceu na Bahia em 1660 e realizou os seus estudos no colégio da Companhia de Jesus na Baía (Pessoa Jesus, 2011, pp. 141-164). A maioria dos relatos sejam cartas, relações, crônicas redigidas por portugueses foram descobertas no século XIX por autores como Vanhagen, Capistrano de Abreu, Toné, entre outros.
A Missão e Educação na Província da Bahia
Nosso conhecimento sobre as missões jesuíticas se deve em geral às suas correspondências, tema discutido em capítulos passagens de capítulos anteriores. São essas cartas que nos mostram, por vezes, a particularidade de uma cultura, assim como a sua pluralidade; o cotidiano de um povo; relatam sobre a fauna e a flora; o clima; e o comportamento das pessoas, sejam padres ou dirigentes políticos; ou mesmo assuntos científicos-teológicos. Como é sabido, a partir da descoberta do Brasil até o ano de 1808, a metrópole proibiu a criação de escolas superiores, a circulação e impressão de livros, de panfletos e de jornais, bem como a existência de tipografias no Brasil. Essa política anticultural levou a um isolamento em geral na colônia. Muito embora não ter sido esse o primeiro objetivo da Companhia de Jesus, a educação foi a base da evangelização e a estrutura da missão jesuítica portuguesa na América, assim como a matemática e a astronomia foram na China. Estratégias diferentes Ad majorem Dei gloriam. A missão do Brasil apresentou uma realidade muito distante das que até então tinham sido campo de trabalho dos jesuítas dedicados ao trabalho evangelizador e educacional na Europa ou no Oriente. No Brasil a catequese, fim último da Ordem, e educação deveriam andar atreladas, uma vez que instruir os indígenas de acordo com os preceitos divinos significava também dar um aparato educacional. Acreditava-se que sem a educação não seria possível o desenvolvimento da colônia, pois as crianças aqui nascidas, independente de serem fruto da miscigenação, precisavam ser educadas moral e intelectualmente. O que primeiro pode ser caracterizado como adequação à cultura nativa, foi o esforço empreendido no sentido de aprender a língua e traduzir orações e músicas católicas para esta língua geral se tornou traço significativo do trabalho dos missionários. Os jesuítas tem sido acusados de introduzirem na colônia uma mentalidade pouco favorável à pesquisa e à ação técnica em virtude do seu esforço em difundir a educação escolástica. Isso pode ser verdade se pensarmos aos alunos nativos, mas não se aplicava em relação a eles próprios. Alguns padres da Companhia de Jesus foram grandes investigadores da realidade brasileira, sobretudo, da vida e dos costumes indígenas. Elaboraram uma gramática geral do tupi e realizaram estudos empíricos, como as observações astronômicas do padre Valentim Estancel. A elaboração de gramáticas fez com que os jesuítas incorporassem o aprendizado da língua às instituições educacionais da Ordem. Os jesuítas também se utilizaram muito da música na gramática na catequese do Brasil. Desde a Antigüidade, a música fazia parte do programa das artes liberais, porém, ora se relacionava com a gramática, ora com as matemáticas, por exemplo, Cícero em De Oratore, inseria a música na matemática, enquanto para Quintiliano, a música deveria ser estudada como auxiliar da gramática. Esta associação entre música e gramática está presente também na obra Etimologias de Isidoro de Sevilha. Em uma passagem, Isidoro disserta sobre as médias numéricas; em outra, está se refere aos números da música; e a terceira se insere nos capítulos sobre geometria, quando explica o surgimento das figuras observadas nas conjunções zodiacais (Gilson, 1995).
Em 1550 chegou à São Vicente, litoral de São Paulo, o jesuíta Leonardo Nunes com mais doze órfãos da metrópole. Ali foi construído um pavilhão de taipa no qual funcionava também uma escola primária. Nesse mesmo ano de 1550 os jesuítas da Bahia fundaram a primeira escola pedagógica do Brasil conhecida como Colegio dos meninos de Jesus da baía. Três anos mais tarde em 1553 o colégio dos meninos se transformou no primeiro Colégio Jesuíta do Brasil chamado de Collegio do Salvador da Bahia fundado pelo padre Manoel da Nóbrega. As dependências internas do colégio tinham os clautros, cozinha, refeitório, oficinas, pomar, biblioteca e enfermaria, que atendiam também ao público laico. Os estudos eram públicos e gratuitos e atendiam aos interesses da Igreja e dos colonizadores portugueses. No Colégio da Bahia, como é conhecido, estudaram figuras exemplares da cultura brasileira dos seiscentos tais como o padre Antônio Vieira, frei Vicente do Salvador, o poeta Gregório de Matos entre outros. O Colégio dos Jesuítas oferecia um curso elementar onde se ensinava a ler, escrever, a contar e os conceitos básicos de educação religiosa O curso secundário enfocava o ensino das letras e da filosofia. Na classe de letras estudava-se gramática latina, humanidades e retórica. Na classe de filosofia estudava-se lógica, metafísica, moral, matemática e ciências físicas e naturais. O curso de Teologia e Ciências Sagradas era ministrado para a formação de sacerdotes pode ser considerado o primeiro curso de nível superior do Brasil. Em 1573 o Colégio graduou também os primeiros bacharéis em Artes do Brasil. Em 1578, concedeu os primeiros graus de mestre em Artes. No século XVII, os jesuítas já consideravam sua instituição como uma universidade, embora sem aprovação oficial de Portugal. Existiam, por exemplo, as faculdades de Artes, Teologia e Matemática. Meritoriamente, foi a Primeira Universidade do Brasil. No final do século XVII dispunha de uma notável biblioteca com cerca de 3000 livros numa época em que a imprensa era proibida no Brasil. Após a expulsão dos jesuítas da América Portuguesa as instalações do Colégio no século XVIII foram ocupadas pelo Hospital Real Militar da Bahia e a Igreja se transformou na Catedral Basílica. Os primeiros Jesuítas fundaram colégios, escolas, igrejas, capelas, onde os nativos e descendentes de portugueses recebiam instrução e formação. Assim, a Companhia de Jesus se tornou a maior educadora e missionária do Brasil, mas não a única. Os franciscanos também fazem parte da fundação educacional do Brasil, contudo, foi com os jesuítas que a educação na colônia mais se desenvolveu. Anchieta e Nóbrega fundaram o Colégio de São Paulo, que deu origem a atual cidade de São Paulo e ajudaram a fundar a cidade do Rio de Janeiro. Os jesuítas foram expulsos do Brasil em 1759 pelo Marquês do Pombal, primeiro ministro português do reinado de D. José I, e em todo o mundo em 1773((A Companhia de Jesus foi extinta em 1773 pela Bula Dominus ac Redenptor do Papa Clemente XIV.)). Com a morte de Nobrega e de Anchieta terminaram os tempos heróicos dos jesuítas no Brasil, tempo dos santos e se inaugurou a era dos políticos, como o padre Antonio Vieira, o mais conhecido de toda a missão brasílica. Também foi o quando se dá o nascimento do ensino de ciência no Brasil. A matemática e a astronomia eram ensinadas nos Colégios da Bahia e de Pernambuco pelo padre moravo Valentim Estancel.
Este estudo procurou redimensionar a participação de padres da Companhia de Jesus no desenvolvimento cultural e científico do Brasil colonial na Era Moderna ao realçar a atividade dos jesuítas nas transformações político-religiosas e científicas ocorridas nos séculos XVI e XVII na América portuguesa. O padre Valentim Estancel figura, portanto, como o introdutor dos estudos matemáticos e precursor da pesquisa astronômica no Brasil e na América. Sua importância na história da ciência se consolida 1687 com a publicação dos Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, o famoso Principia Mathematica de Isaac Newton, em que descreve as leis da gravidade e dos movimentos. Neste livro Newton utiliza as medições astronômicas feitas na Bahia e em Pernambuco pelo padre Valentim Estancel para dar validade científica a sua tese sobre a gravidade e dos movimentos celestes. Dentro de um século XVII conturbado com disputas de poder na província jesuítica do Brasil, na própria convulsão político-social da colônia e no debate perigoso e necessário sobre ciência e religião a Companhia de Jesus conseguiu ajudar no início do desenvolvimento cultural do Brasil.
Referências
Abreu, C. de. (1954). Capítulos de História Colonial 1500-1800. Rio de janeiro: Ed. Briguiet.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho de 2011.
Antonil, A. J. (1711). Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas.
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