DescargarHéctor Hugo Trinchero((Nota de tradução: O texto foi originalmente publicado em idioma castelhano como o primeiro capítulo do livro «Aromas de lo exótico (Retornos del objeto): para una crítica del objeto antropológico y sus modos de reproducción«. O livro foi publicado pela editorial SB de Buenos Aires em 2007 e inclui outros textos de Héctor Hugo Trinchero. A revista Iberoamérica Social agradece a pronta disponibilidade do autor em aceitar o nosso convite para incluir esta tradução no nosso dossiê. Todas as citações diretas são citadas pelo autor em castelhano e estão traduzidas visando manter um padrão estético. Tradução realizada por Jefferson Virgílio em 2018.)).
Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina.
hugotrinchero@gmail.com

Recibido: 01/10/2018 – Aceptado: 13/12/2018

 

Resumo: O texto está dedicado à construção e à reprodução do objeto antropológico clássico, as modalidades de seu retorno como exigências de exotização do outro que são promovidas pelas relações de hegemonia.

Palavras-chave: Objeto antropológico. Colonialidade do conhecimento. Antropologia descolonial.

 

Resumen: El texto está dedicado a la construcción y reproducción del objeto antropológico clásico, las modalidades de su retorno en tanto requerimientos de exotización del otro promovidos por las relaciones de hegemonía.

Palabras clave: Objeto antropológico. Colonialidad del saber. Antropología decolonial.

 

Abstract: The text is dedicated to the construction and reproduction of the classic anthropological object, the modalities of its return as requirements of exotization of the other promoted by the relations of hegemony.

Keywords: Anthropological object. Coloniality of knowledge. Decolonial anthropology.

 

[toc]

Quando Dom Pedro de Mendoza chegou a costa do Rio de la Plata com o objetivo de fundar a cidade de Buenos Aires como porto atlântico, «descobriu» os nossos Querandis e Timbúes. O conhecimento que temos sobre a vida social daqueles homens e mulheres sul-americanos e em particular sobre as suas atitudes diante a presença destes primeiros e estranhos visitantes do ultramar é escasso. O que temos aprendido se resume a relatos de escribas integrantes à tripulação que acompanhou Dom Pedro. Os escritos de Ruy Díaz de Guzmán, os de Ulrico Schmidtl, como a narrativa colonial dos primeiros anos de conquista e colonização americana, tem gerado a desconfiança do historiador, porque incluem relatos que são percebidos como fantasiosos e sobre os quais é muito difícil realizar comparações e análises com a proposta de estabelecer os critérios de verosimilitude no que se baseiam suas referências ou dados. Contudo, independentemente do desconhecimento e das reservas acadêmicas que são assinaladas existe uma narrativa dominante e acadêmica que tem enfatizado o carácter bélico e a escassa amabilidade de nossos nativos, o que é utilizado como justificativa sobre o abandono desta primeira «fundação» de Buenos Aires por aqueles representantes dos interesses da coroa espanhola, financiados por capitais alemães. Depois desta primeira experiência fracassada, os interesses coloniais – por motivos que não desenvolverei aqui – decidem se estabelecer em Asunción. O que me interessa gerar a respeito daquela narrativa é uma tentativa de estranhamento diante de sua capacidade de hegemonia como um discurso de poder. Aquela narrativa sobre a belicosidade dos anfitriões nativos pretende produzir um des-conhecimento cujas consequências considero de vital interesse para uma antropologia histórica e crítica a partir do Sul. Como um exemplo podemos começar dizendo que ambos os informantes coincidem, ao se referirem ao fato, que, durante a primeira estadia, aqueles navegantes coloniais foram providos de abundantes alimentos que lhes permitiram «fundar» em nossas costas sem grandes problemas de subsistência, além das pressões provocadas por doenças, especialmente sífilis, que alguns deles possuíam e especialmente o próprio Capitão General. Os relatos da época conhecidos indicam que, produto de certa falta de reciprocidade revelada pelos indígenas, as relações de amabilidade e provisão logo foram interrompidas. É possível supor que os espanhóis teriam ignorado «a teoria da dádiva» indígena, descoberta muito tempo depois pela etnografia e pela sociologia, situação que de nenhuma maneira poderiam ser acusados dado o tipo de organização social (hierárquica e medieval) da qual provinham. Menos ainda conhecendo instituições prototípicas como o Requerimiento((N. T.: O autor remete para o Requerimiento de Palacios Rubios, publicado em 1513. Este documento, entre outros, é a base de sustentação da «guerra justa» que foi declarada contra os índios em toda a América.)), que mostram claramente o autoconvencimento sobre o destino manifesto que carregavam os colonizadores.((Vários autores concordam que o modelo de conquista e colonização implementado nas Índias reproduziu a história das Cruzadas e das Capitulações (Tratados) que se aplicavam aos árabes na conquista de Granada. Não obstante, a instituição do Requerimiento teve conclusões específicas. Ordenava o Requerimiento, entre outras questões, acatar a fé católica e a submissão ao rei de Espanha, e previa que em caso dos nativos decidirem não aceitar as ditas ordens «[…] a guerra será travada por todos os lados e caminhos, serão feitos escravos, suas propriedades serão tomadas, e as mortes e danos que se seguirem serão culpa deles e não de vossas Altezas […]». Quando o conquistador lia o documento diante dos aborígenes, estes obviamente não entendiam nada do que lhes estava sendo planejado porque não conheciam o idioma. Para maiores informações consultar as obras de Julia Varela e Fernando Álvarez-Uria, 1997 e de Bestard e Contreras, 1987.)) Porém, a narrativa oficial e acadêmica geralmente ignora este fato para insistir sobre o carácter bélico dos Querandís e outros povos originários. O informe dos viajantes coloniais identifica que, logo depois, a aldeia fundada foi isolada e seus ocupantes sofreram enormes dificuldades, chegando ao ponto de praticar a antropofagia entre eles (segundo revelam, neste caso, ambos os escribas, como as ilustrações que foram incluídas à obra de Schmidtl).((No apêndice incluído ao término deste texto se transcreve um extrato do texto de Ulrico Schmidtl e uma reprodução de uma ilustração que aparece no livro de Ruy Díaz de Guzmán.)) Porém, novamente, a narrativa acadêmica hegemônica tem ignorado esta informação e paralelamente tem insistido até o limite na antropofagia como parte constitutiva dos padrões culturais de nossos nativos e da maioria dos povos originários da América, com exceção das denominadas «altas culturas pré-colombianas».

Com o expressado anteriormente não pretendo discutir sobre a verossimilitude das características guerreiras e/ou antropofágicas dos nossos nativos americanos pré-colombianos, mas sim sobre certo viés de transferência em direção ao «outro» de práticas próprias, talvez odiadas desde a moral que se carrega, ainda que limitadas a este viés. Eu me circunscrevo, neste momento, a estas duas experiências narrativas, meramente em título de exemplo, posto que, segundo a minha opinião, tem muito que dizer acerca dos mitos construídos sobre a modernidade na Argentina. Se em suas origens coloniais o problema foi «a fome», o projeto moderno, já nos primeiros anos do século XIX consistiu em elaborar a ideia de «celeiro do mundo». Ao mesmo tempo, se para fazer efetivo semelhante projeto era necessário ocupar «o deserto» mediante um genocídio contra os povos originários que o habitavam, a violência estatal pretendeu justificar-se pelo lado da violência «natural» deste outro que ocupava o território desejado. O conhecido relato dos atos de Lucía Miranda (cuja autoria originária corresponde também à Ruy Díaz de Guzmán), fala precisamente do problema da fome como constituinte do fazer colonial no Reino de la Plata (Iglesia; Schvartzman, 1987, p. 47-48). No relato de Guzmán, Lucía é dramaticamente capturada pelos Timbúes, concretamente por Mangoré, seu principal cacique, que foi motivado por um «amor desordenado» em direção a ela, quando ele decide (opondo-se as recomendações de seu irmão Siripo) quebrar o «pacto de convivência» com os espanhóis. Este estava centrado, como dissemos, na provisão de alimentos. Daí que:

A fome se instala assim como o verdadeiro fundamento material da elaboração do mito, permitindo o funcionamento da equivalência índios amigos = comida, índios inimigos = fome. Sob a inflexão mítica lemos que os espanhóis não podem sobreviver por seus próprios meios e que dependem para ele quase exclusivamente dos Timbúes (Iglesia; Schvartzman, 1987, p. 47).

A ordem colonial pretendida pelos invasores (eu te conquisto em nome do senhor, tu me alimenta) se rompe, no relato, pela loucura amorosa do cacique. Em concordância com a tese dos autores citados, o esquema do relato de Guzmán assinala uma «traiçoeira traição da amizade». A traição indígena implica, não obstante, um reconhecimento: a norma é a amizade, cuja ruptura é atribuída aos indígenas. Como bem assinalam Iglesia e Schvartzman, para superar as resistências de seu irmão Siripo sobre a necessidade de atacar o forte espanhol, Mangoré argumenta com uma «lógica irrefutável» que: 1) O espanhol usurpa de maneira ilegítima o território indígena; 2) Conforme avançar o tempo avançará também a servidão indígena; e 3) Por isso é urgente acabar com o invasor. Estas razões indígenas são formuladas por Mangoré ao seu irmão em um contexto narrativo no qual a ruptura do «pacto» índios x espanhóis é explicada pelos devaneios amorosos do cacique. É dizer, a razão americana, no relato invasor, parece revelar-se em um contexto irracional de paixão amorosa.((«Em nenhuma outra página da «Argentina» – dizem Iglesia e Schvartzman – a verdade americana tinha sequer sugerido». Se bem que há narrações no mesmo texto e em outros de resistências indígenas, nunca se expressaram os fundamentos das mesmas resistências. A resistência indígena no texto colonial aparece como uma série de atos sem qualquer fundamento.))

Contudo, os textos coloniais dos primeiros anos de conquista pretendem, sem nunca ter conseguido, negar a razão da rebelião indígena ainda que sustentando-se em um modelo de pactos pré-existentes que são quebrados, tal como se tem assinalado, pelos próprios povos originários. A reescrita deste mito nos tempos de formação do Estado nacional, ou seja, a narrativa sobre o cativeiro (o rapto da mulher branca pelos índios malones((N. T.: O autor utiliza o termo malones, que indica o plural de malón, que remete para um adjetivo pejorativo, indicativo de um específico tipo de ataque furtivo realizado contra um grupo pequeno de inimigos, quase sempre acompanhado de saques. Há uma variação quando o atacante é espanhol que remete para o termo maloca. Este último termo não deve ser confundido com a maloca, que é uma habitação (e espaço cerimonial) amazônica.)) ), será sustentada em outros termos: a impossibilidade de pacto algum com os povos originários.((O relato de Lucía Miranda é reescrito na década de oitenta, concretamente em 1883 (ou seja, em coincidência com o fim da campanha de Roca e nos início da campanha que se pretendia ser definitiva sobre as fronteiras do Chaco) por Celestina Funes, porém nesta narrativa se erguendo como monumento de uma selvageria e de uma barbárie (o malón indígena) que nada contribui para a civilização e que, para fazer possível a construção do «celeiro do mundo», é necessário seu extermínio definitivo.))

Neste sentido, é interessante discutir algumas teses de autores contemporâneos acerca de certo ocultamento da problemática do cativeiro na América do Sul durante o período colonial, já que representaria «o opróbio do fracasso conquistador nestas terras». Em contraposição aos relatos sobre cativeiro nos Estados Unidos, onde a sua profunda tematização indicaria o espírito colonizador prevalecente naquelas terras (Operé, 1998, p. 23-27). Independentemente das conotações weberianas destes sistemas, e também de sua possibilidade no marco do período colonial, não deve perder-se de vista a maneira na qual o relato do cativeiro é reescrito a partir da formação do Estado nacional, como um projeto de construção de uma narrativa legitimadora dos atos da «modernidade» nascente. Sustento aqui, em oposição, que a narrativa sobre o cativeiro (em suas distintas dimensões artísticas) tem sido muito profusas em nosso meio, principalmente no período de formação do Estado nacional (desde o rosismo até o centenário).((N. T.: O «rosismo» também é conhecido como «época de rosas», desde o inicio do século XIX onde a Argentina esteve sob o comando de Juan Manoel de Rosas. A definição de início e de fim do período não possui consenso. O «centenário» é identificado no ano de 1910, exatamente cem anos após a revolução de maio de 1810.)) De maneira que, independentemente de que entre o sul e o norte da América nós encontraremos diferenças significativas em ambos tratamentos sobre o tema, haveria que indagar o sentido de sua reinstalação na Argentina durante o processo de gestação de sua nascente modernidade.((O tema é desenvolvido de modo pormenorizado no capítulo onze do livro «Aromas de lo exótico (Retornos del objeto): para una crítica del objeto antropológico y sus modos de reproducción«, intitulado «Capital, etnicidad y resistencia social en el norte argentino«, publicado pelo autor em 2007.))

Como se tentará analisar, a narrativa sobre o cativeiro e a sua inflação monumentalista durante o processo de formação do Estado nacional argentino não se refere unicamente ao rapto de cativas, senão que, através desta temática, se pensa e busca-se estabelecer toda uma narrativa em torno do lugar do índio neste processo.

Selvageria, arcaísmo e belicismo são as categorias que dominam o discurso sobre o índio no sul americano, ainda que a sua fórmula se desdobre com maior sistematicidade em contraponto com a passagem da colônia à nação. O objetivo é assinalar que o pacto fundante da Nação argentina entre os distintos caudilhos que disputavam entre si o território nacional e a hegemonia na construção do Estado, não reservaram espaço para as nações indígenas (Ver a constituição de 1853). Com o índio não há pacto possível, pois a impressão é integrar os territórios que ocupam no mercado mundial de produtos salariais para a expansão do capitalismo industrial europeu.

Por outro lado, quando internalizamos as construções discursivas sobre nossos povos originários com aquelas categorias, também subscrevemos a certo modelo social-evolucionista das categorias antropológicas eurocêntricas (a oposição entre as nações originárias do sul com as sociedades andinas «mais avançadas» em termos de forças produtivas e organização estatal-teocrática), o que obtura, no mínimo, a questão sobre a capacidade de alimentar os seus anfitriões por parte de nossos então compatriotas. Mas independentemente desta questão, que permite um olhar antropológico cristalizado sobre a formação social da América do Sul, penso que há algo mais que é preciso debater. Este sentido adicional está dado, segundo meu entender, na negação da história própria de nossos povos originários. Para dizer isso em palavras mais claras, recorrendo permanentemente à identificação da história das nações indígenas com o fato colonial e com o etnocídio colonial – e isto é o que considero relevante – mais que um reconhecimento histórico, o que se produz é uma espécie de cristalização, de naturalização da ligação da questão indígena em nosso país ao fato colonial; portanto, seu efeito de sentido tende a impor a ideia de que na formação social da Argentina pós-colonial se produziu, sobre a questão indígena, uma espécie de «virada de página» histórica. Sustento que, como semelhante viés historiográfico, se re-produz a política de desentendimento do Estado-moderno nacional sobre a sua própria origem etnocida. Desentendimento do processo pelo qual o modelo de modernização na Argentina e em consonância com a formação da Nação e do Estado requereu, nas mãos das burguesias locais, de um exército de ocupação dos territórios indígenas e o início de uma história de confrontação militar que a historiografia dominante considerou concluída a partir da denominada «solução final» pretendida por Roca. Uma consequência deste tem sido a negação sistemática da história resistente daquelas nações na história moderna até o presente.

Se no discurso colonial a negação da resistência indígena – segundo tentei descrever com o exemplo do relato de Lucía Miranda – se pretendia legitimar a partir de culpar o «outro» mediante a ruptura de pactos pré-existentes, na formação da Nação moderna argentina esta legitimidade pretendeu fundar-se na impossibilidade de qualquer tipo de pacto devido à «natureza» indômita e guerreira dos malones.

Indicar estas inquietudes tem como correlato o reconhecimento de que a formação discursiva historiográfica e antropológica negadora da historicidade específica dos povos originários talvez seja um sintoma daquilo que alguns autores recentes nominam pelo conceito de «colonialidade do saber» na América Latina (Quijano, 2003; Mignolo, 2003). Partindo destas inquietações, a pergunta que me interessa refletir sobre na primeira parte do livro é:((N. T.: O livro possui onze capítulos organizados entre quatro partes. A primeira parte trata da colonialidade.)) Quais são as condições que permitem uma sobreposição tão brutal da informação histórica e antropológica para construir um discurso de poder, neste caso uma narrativa que encarna a referida colonialidade do saber? Mas mais precisamente, o que tento indagar são as condições que fazem possível e ao mesmo tempo limitam a produção antropológica em nosso meio (América do Sul), quando este é que deveria ser pensado como um campo em que se expresse ao menos um debate em torno destas condições.

Com isso quero assinalar que um dos reparos mais importantes que deveria ter-se sobre a prática antropológica em nosso meio é a sobrevivência, por meio de conceitos e categorias, de vieses euro-centristas, já que operam como um obstáculo, não somente epistemológico, senão também político e ideológico, para a produção de conhecimentos, relevantes em nosso meio. Pretendo questionar o fato de que grande parte da produção antropológica nativa tende, em geral, a reproduzir as categorias e conceitos cuja produção e então a sua legitimidade podem encontrar sustento a partir das condições de existência de requerimentos específicos (sejam estes nacionais, imperiais, etc.) pertencentes a outros âmbitos. Por esse motivo aquela forma reprodutiva de conhecimento é pouco propensa a refletir sobre os estigmas que carrega. Concretamente, e para dizer desde já, parto da hipótese de trabalho de que uma grande parte da produção antropológica, enquanto fenômeno acadêmico, tende na América do Sul a configurar-se a partir de conceitos e categorias produzidas nos centros de poder mundial. Ou seja, sustento que, em nossas terras, a antropologia é decididamente eurocêntrica e, mais recentemente, norte-americano cêntrica, cumprindo com seu papel genealógico de ciência imanente ao sistema colonial e neocolonial.

Esta hipótese deve ser indagada especificamente, pois não se trata unicamente de reproduzir de modo linear a noção de dependência intelectual ligada à teoria da dependência que nós compartilhamos na década de sessenta e parte da década de setenta (ainda que não a exclua). Penso que a questão se enquadra em uma série de problemáticas específicas que preocupam, em geral, ao denominado campo intelectual em nosso meio, e em particular a produção do conhecimento nas ciências sociais, mais especificamente na disciplina antropológica a partir da denominada «globalização», a qual tende a ocultar o carácter nativo de toda teoria.

Me interessa sustentar que, ao confundir-se a noção de universalidade de uma teoria com as condições do que denominamos «globalização», se tende a obturar a reflexão sobre a contradição intrínseca a produção teórica mesma entre o particular-concreto e o universal-abstrato. Considero que esta questão nos remete, entre outros, a Hegel, para quem a alternativa do pensamento se apresentaria sob a pergunta: O ideal do conhecimento é «abstrato» (oposto ao conhecimento concreto a partir do ponto de vista de seus conteúdos) ou «concreto» (no sentido em que minha vida social é a forma específica em que participo na ordem social universal)? É claro que estas alternativas são, antes que uma dicotomia, uma contradição que é preciso ter em conta como tensão necessária do pensamento e da crítica, especialmente quando partimos do Sul (para continuar pensando numa metáfora geográfica) as possibilidades de universalização das particularidades concretas deveriam ser pensadas, primeiro, a partir das possibilidades e limitações de que semelhante metáfora geográfica se transforme em um ato de conhecimento específico, para que represente um concreto no sentido hegeliano assinalado anteriormente.

O que tento dizer é que se há algo que identifica a antropologia sul-americana é, precisamente, sua não-identidade como uma produção crítica do conhecimento sobre a formação social na qual atua. Dito com outras palavras, o que caracterizaria hegemonicamente a produção antropológica em nossos lares é que aquilo que concretiza um campo de conhecimento não é outra coisa que a antropologia produzida nos centros e academias hegemônicos, produzindo uma falsa ideia de universalismo da teoria.

A questão atinge também a metodologia. Segundo Menéndez:

Os manuais de antropologia, os textos metodológicos ou os cursos através dos quais os antropólogos latino-americanos se formam em seus próprios países, salvo exceções, só descrevem ou refletem sobre a situação de um antropólogo que explícita ou implicitamente pertence a um país central e por consequência investiga sujeitos pertencentes a outras culturas; sem incluir a situação dos antropólogos de países periféricos estudando grupos de sua própria sociedade (2002, p. 53).

É conhecido o fato de que a antropologia se converteu desde suas origens acadêmicas, sempre difíceis de determinar, em uma disciplina que, ao menos naquilo que se autodenomina Ocidente, foi praticamente um culto de viagem até terras exóticas e distantes como modo de construção de um saber universal acerca do homem. Com relação a este culto, outra questão vinculada a anterior recorre nesta primeira parte: O que acontece com a viagem do antropólogo de nossas terras quando a sua prática disciplinar se remete e refere a uma viagem até seus próprios territórios? Sobre esta questão – a partir de meu ponto de vista, de interessantes conotações teóricas e políticas – tentarei expor algumas questões que considero pertinentes sobre a construção do conhecimento em antropologia de forma geral, ou seja, como disciplina de pretensões universais. Especificamente, meu objetivo é levantar brevemente a minha posição sobre o objeto e o campo antropológico contemporâneo, e assinalar certo alerta em torno a suas condições de reprodução acrítica em nosso meio.

O espelho do cânone: pequeno, isolado, distante e primitivo

Na atualidade parece existir um certo reconhecimento e que o objeto e o campo da antropologia social, como em outras ciências sociais, aparecem muito mal definidos.

Isto pode ser explicado pelo fato de que, nas últimas décadas, foram discutidos aqueles pressupostos que outorgavam a esta disciplina uma especificidade de modo que, tanto em âmbito acadêmico como no sentido comum, era possível distinguir fronteiras precisas, ainda que sempre relativas, do trabalho antropológico em relação a outras ciências sociais (a história, a sociologia, a geografia, a ciência política, etc.). Hoje parece não haver consenso com outras épocas (se olharmos para as temáticas da agenda disciplinar, as de outras ciências sociais e muito menos se o fizermos com o que a chamada «opinião pública» considera como um campo antropológico) que permitiria uma clara identificação com respeito ao tipo de conhecimento que isso traz. Para a maioria de nós (antropólogos) e de outros (historiadores, sociólogos, geógrafos, cientistas políticos, etc.), é impossível continuar afirmando, como se derivava da prática antropológica de nossos referenciais teóricos clássicos, que a antropologia social se dedica ao estudo das denominadas «sociedades primitivas» (sem instituições modernas), «simples» (sem instituições complexas), «ágrafas» (sem história escrita) ou qualquer outra denominação que siga o estilo (o conhecido estilo do não).

Em princípio, a questão ao redor da pergunta: O que estuda a antropologia?, ou ainda o interrogatório mais pertinentes: Quais são os tipos de conhecimentos reconhecíveis no campo das ciências sociais produzidos pela nossa disciplina?, tem sido encarado de maneiras diversas ao longo da recente história da antropologia. Isto parece indicar uma viagem pelas denominadas correntes e escolas de pensamento que configuram seu campo disciplinar de referência.

Inevitavelmente nos encontramos com um primeiro problema, pois a delimitação de escolas e correntes de pensamento constitui em si mesma uma questão a ser resolvida, antes que um dado pré-estabelecido. Na minha leitura, considero que a maioria dos textos que tem tentado recorrer pelas várias correntes teóricas e metodológicas da antropologia (e são praticamente incontáveis) tendem a dar conta, com maior ou menos exaustão, de influências filosóficas, epistemológicas, conceituais, etc., ainda que negligenciando, de certa forma, uma questão que considero chave: A relativa permanência e prevalência do mesmo objeto e campo de análises em cada uma delas.

A crítica antropológica tem sustentado, em seus debates desde o período posterior à segunda guerra mundial, que algumas pretendidas «rupturas» epistemológicas que permeiam as análises da história da teoria antropológica entre, por exemplo, o chamado evolucionismo social e o funcionalismo, está produzida a partir daquele olhar (Kuper, 1973; Kaplan e Manners, 1972 y 1976; Wolf, 1982; Menéndez, 2002; Gledhill, 2000, entre outros). Assim, por exemplo, os grandes paradigmas inaugurais, fundacionais da antropologia, embora tivessem formulações teóricas e metodológicas distintivas entre autores como Morgan, Maine, Lubbock, etc., e autores como Malinowski e Boas, coincidem-se todos eles ao referirem a um campo «comum» e consensual: aquelas sociedades isoladas, fora da história e representativas de momentos passados.

Os principais pressupostos que partiam os antropólogos evolucionistas clássicos eram, segundo pretendo sintetizar, principalmente três. O primeiro se remetia a uma questão de escala: estas sociedades, por sua pequenez e simplicidade, em diferença com as sociedades complexas modernas, poderiam ser observadas em seu funcionamento como uma totalidade. O segundo pressuposto se revelava como um critério de pertinência histórica (na realidade pré-histórica): estas sociedades simples e atuais seriam representativas, em alguma medida, dos primeiros tipos sociais conhecidos pela humanidade, relíquias presentes de um passado arcaico. É precisamente neste olhar quase geológico da história da humanidade que se baseava o terceiro critério em que se reconheciam as obras clássicas: aquele que suportava o irremediável desaparecimento destas sociedades frente a expansão do «progresso» em escala mundial (quer dizer, as relações de produção capitalista e uma cultura da modernidade a que associavam teoricamente). O objetivo do trabalho antropológico era, então, o «resgate» de práticas, saberes, instituições, «culturas» ou «sociedades» em perigo de extinção, cujo conhecimento corria o mesmo risco se não se acelerasse o desenvolvimento da disciplina de forma sistemática.

Sem dúvida que, além do que foi previamente expresso, a posição genealógica buscada por Morgan em Ancient Society((O expresso sobre Morgan poderia ser relativizado em dois sentidos: primeiro porque os seus estudos, por exemplo o que refere ao parentesco dos Iroqueses, implicou um trabalho de campo muito sistemático para a época, e pelo compromisso político-ideológico do próprio autor com as demandas dos direitos deste povo. Mas além disso, Morgan participou do «clima» social-evolucionista da época com suas realizações.)) e os evolucionistas em geral, através do pressuposto do primitivismo simplista, se tentou questionar isto pelo nascimento da etnografia. A partir da experiência etnográfica, a escola funcionalista na Inglaterra e o particularismo histórico do outro lado do oceano «descobriam» princípios de organização social, rituais, sistemas de intercâmbio e fornecimento, sistemas de parentesco, etc. que estavam muito distantes das classificações simplistas apontadas pelos esquemas do evolucionismo. Porém, semelhante desconstrução do objeto analógico, «o simples e o arcaico», pressuposto pelos evolucionistas não deu lugar a uma redefinição do campo antropológico; ao contrário, ele tendeu a reproduzi-lo de maneira ampliada. Este campo seguiu sendo constituído por aquelas sociedades «primitivas» que era necessário reconstruir em seu funcionamento, agora sim, complexo.

Isto se deve ao que, independentemente da questão «simples ou complexas», o campo da antropologia – as chamadas «sociedades etnográficas» – continuou sendo definido por sociedades isoladas, distantes e exóticas, visibilizadas desta forma por um olhar que se auto definiu como distanciado. Está aí um dos fundamentos do cânone antropológico clássico, que pode ser estendido inclusive para momentos recentes de construções teóricas da antropologia (de fato, um dos últimos textos de Claude Lévi-Strauss se intitula, precisamente, o olhar distanciado).((Este texto de Claude Lévi-Strauss foi editado em Paris em 1983 pela editorial Plon e traduzido para o espanhol em duas oportunidades. A primeira pelo editorial En Línea, em 1984, com o título La mirada distante; e a segunda pela editorial Emecé, no ano de 1986, com o título Mirando a los lejos. A partir de meu ponto de vista, a primeira corresponde melhor com o sentido de prática teórica levistraussiana. N.T.: As diferentes edições publicadas em língua portuguesa, mantiveram sempre o título O olhar distanciado.)) O princípio de objetividade estava sustentado, principalmente, pelo pressupostos de uma distância física e social do etnógrafo sobre as sociedades que estudava. Quer dizer, na medida que o campo da antropologia se definia como um «locus» que se situava em sociedades distantes e exóticas, ela mesmo enquanto disciplina pretendia erguer-se como garantia de maior neutralidade valorativa sobre os estudos sociais que aquela produzia, por exemplo, em comparação com a sociologia e outras ciências sociais. Por outro lado, esta construção disciplinaria que, como todo campo de conhecimento, tende a auto centralização significou, para o caso da antropologia social, um certo desinteresse pelos processos de mudança social que sucediam nos povos e populações estudadas.

Diante da antropologia de gabinete pré-existente nas «origens» da disciplina acadêmica, a antropologia social e principalmente a etnografia a partir de Malinowski e Boas (para mencionar apenas referentes muito conhecidos), ao priorizar o trabalho de campo como método distintivo e fundante da disciplina, inauguram uma novidade do requisito de viagem etnográfica e a experiência da observação participante como principal dispositivo para a produção de informação confiável. A viagem, interpretada então na forma de deslocamento pessoal pelo cientista-etnógrafo, deixaria de produzir informação carregada de preconceitos e subjetividades (como a informação obtida em segunda ou terceira mãos que utilizavam os clássicos evolucionistas e difusionistas) para ser produto do trabalho de especialistas treinados para isso.

Neste sentido, o trabalho central da etnografia era construir uma série de disposições do comportamento em campo com o objetivo de reduzir ao mínimo a própria subjetividade do etnógrafo, seu objetivo era, pelo menos o declarado, «capturar o ponto de vista do nativo» (Malinowski). As regras e técnicas de observação se constituíam, assim, em um dos parâmetros de objetividade que garantiriam um aprofundamento do carácter científico da antropologia social. O outro parâmetro, como já sinalizei anteriormente, tinha reminiscências mais «naturalistas»: o distanciamento da «sociedade estudada». Ambos posicionamentos metodológicos tem sido severamente questionados por uma grande parte do campo antropológico contemporâneo.

Aquela complexidade primitiva descoberta pela etnografia deu lugar a inauguração de paradigmas relativistas. Deste modo a etnografia, segundo se pretendia, ensinou aspectos complexos da vida social destes povos, que permitiriam um olhar crítico e reflexivo de nossa «própria» sociedade. Neste sentido, muitos autores fizeram notar que ao observar e analisar outras «sociedades» e outras «culturas», nós antropólogos, não fazemos outra coisa que olharmos em um espelho que reflita imagens de e para a nossa própria sociedade. Esta poderia ser, talvez, uma bonita definição da ficção antropológica que não raros mestres de nosso campo tem utilizado.((Cf. Claude Lévi-Strauss, 1976 [1955], p. 391.)) Em tal sentido, Lévi-Strauss teve que assinalar, o regresso de seus Tristes trópicos, certa contradição desta atitude de especulação: bem que os outros reflitam a superioridade do ocidente ou que, pelo contrário, mostrem as próprias falhas.

É conhecido o fato que o recurso levistraussiano ao espelho seja uma menção ao seu discípulo Lacan, quem havia reelaborado as postulações freudianas sobre a constituição do «eu» na infância (a passagem ou ruptura entre a busca por trás do espelho da imagem representada e o auto-reconhecimento nesta imagem). Porém, partindo de meu ponto de vista, este enunciado do dilema etnográfico tendeu, por inércia, a abrigar uma armadilha, seja pelo equívoco que produz a transferência de categorias que pudessem dar conta dos processos que configuram a identidade individual para processos de identidades ou identificações coletivas, ou até por questões de reinterpretação da metáfora em termos de uma epistemologia condutiva (ao reflexo).

No primeiro caso, a questão nos remete a noção de sujeito que, devido as suas implicações profundas, as desenvolverei mais adiante, em uma seção específica. No segundo caso, essa armadilha não é outra que o próprio objeto utilizado como referência iconográfica da metáfora: o espelho. É óbvio (mas com consequências metodológicas) que este objeto só reflita a imagem, ainda que invertida, que é exposta diante de si (o espelho nunca poderia refletir «outra» imagem, exceto que, como aparece utilizado muitas vezes, o confundirmos com miragens). Neste sentido, a apropriação por parte da antropologia desta metáfora enquanto objeto «reflexivo» esconde uma atitude precisamente… pouco reflexiva. Digamos de modo mais claro: a antropologia clássica, incluindo a atual – além de suas próprias críticas – tem olhado em seu espelho construído (ocidente) para não reconhecer-se mais que a si mesma na produção dos «outros» como externos. E digo «externos com o objetivo de indicar que, por trás da imagem de ocidente, se tende geralmente por construir uma ideia-força que alude para uma genealogia hegemônica, sem dar lugar ou ocultando o reconhecimento de que a sua história é o produto de histórias contra-hegemônicas, de lutas de classe, de resistências heterogêneas. É precisamente sobre semelhante negociação que o poder de mudança, o império da mudança, se tem apropriado monumentalmente do sentido da história ao que considera unívoco, linear e construído a sua imagem e semelhança.

Então, já seja pelo lado do etnocentrismo ou pelo lado do relativismo, aquele que no campo intelectual e político diz se chamar ocidente não parece ser outra coisa que um artefato cultural que produz e reproduz ao infinito certa imagem sagrada de si mesmo, certa monumentalização do império da mudança ao custo de, por uma parte, incluir diante de uma mesma categoria «sociedades», «culturas», ou «modos de produção», em uma farsa, muito diferentes entre si, mas cuja reconstrução emerge depois de genealogias de cumplicidade duvidosa. Por outro lado semelhante monumentalização tende a cristalizar, a des-historicizar as variações contextuais que a própria noção de ocidente tem tido no processo de formação do capitalismo mundial e que indicam o seu caráter de entidade imaginada a partir do poder.((Podemos sustentar que os descobrimentos científicos da Europa peninsular entre os séculos XII e XV são a semente do que germinou a unidade europeia pelo uso da hegemonia de uma igreja fundamentalista e inquisidora e sendo o eixo da construção do Estado. Não é esta construção uma negação (no sentido de des-conhecimento) da preeminência de seus vínculos de interdependência com o mundo árabe? Inclusive não foi pela intelectualidade do norte da África desta época que se atingiu a superação dos dogmas do obscurantismo, reelaborando de maneira sábia, os legados filosóficos e científicos da Grécia clássica, para construir as condições intelectuais de possibilidade histórica para a emergência posterior daquilo que será batizado como renascimento europeu? Por acaso as condições de possibilidade de existência de processos de acumulação de poder político e econômico na Europa não são herdeiros de uma ruptura imediatamente posterior com estas tradições de profundos intercâmbios científicos e saberes tecnológicos? Ruptura que quando feita inaugurou um modelo de conquistas territoriais imperiais, especialmente no denominado descobrimento do novo mundo, o qual se tentou dominar de maneira similarmente obscura pelo uso de práticas de fanatismo religioso que foram herdadas daquela experiência medieval.))

Pretendo indicar que a vaga e nada neutra noção de Ocidente, utilizada de maneira recorrente por cientistas sociais de forma «naturalizada», conduz a mais confusões que esclarecimentos históricos e antropológicos, ou melhor dizendo, impede a emergência de perguntas que nos permitam avançar criticamente no conhecimento que o ocidente nomina. Em última instância, se apresenta como uma tentativa de reconstrução ideológica de uma genealogia etnocêntrica. Isto poderia também ser expressado em termos atuais sugerindo que se trata de uma prática intelectual de invenção de uma tradição, a partir da capacidade do poder de enunciar e significar a realidade mediante um dualismo extremo com pretensões conceptuais. Antes que uma categoria de descentramento (o que supostamente busca o denominado «olhar antropológico»), a noção de ocidente, se expõe, então, como reprodutora do sentido comum imposto a partir de configurações que mudam o poder imperial, e que é internalizado em níveis variados pelos sujeitos sociais, dando lugar ao reconhecimento do outro na diferença ou em mimeses absolutas, produtoras ambas de estigmas antes de produzir qualquer conhecimento reflexivo.((Um exemplo cotidiano atual são as guerras civilizatórias que, em nome dessa coisa chamada Ocidente, os Estados Unidos livram contra «fundamentalismos» religiosos ou culturais identificados em lideranças políticas, em grande medida fomentados previamente por seus próprios dispositivos imperiais. A renovada guerra de raças logo após à guerra fria, para legitimar novamente um modelo único de hegemonia mundial, parece requerer um Ocidente imaginado como identidade corporativa de estados liderados, já não por uma igreja unificada, mas sim por interesses do capital globalizado. Para uma análise da violência como mimese social pode consultar o trabalho de René Girard, La violencia y lo sagrado.))

Caberia então a pergunta: Não se escapa por trás da metáfora do espelho a impossibilidade do reconhecimento de outras tradições de práticas etnográficas e reflexões antropológicas que não se resumem a esta genealogia ocidental, por exemplo, aquelas surgidas de experiências de descolonização ou lutas anti-imperialistas?

Algo neste sentido, parece ser apontado por Maurice Godelier em um recente artigo onde tenta uma reflexão avaliativa dos aportes e limitações da antropologia, utilizando a expressão «o espelho quebrado» para referir-se ao que ele denomina antropologia ocidental (1995). E o faz no sentido de assinalar, como já tem sido feito por outros autores críticos, que o processo de descolonização e independência de muitas comunidades do denominado terceiro mundo (outrora sujeitos da prática etnográfica e da reflexão antropológica) negaram na atualidade exercer uma prática disciplinar a partir dos cânones inaugurados pela antropologia clássica. Diz o autor:

Este plano de fundo segue pesando sobre a antropologia e inclusive é o estigma diante de muitos povos que, uma vez independentes, reivindicam o ser de agora em diante, objeto de estudos sociológicos e não mais etnológicos (1995, p. 44).

Concordo com esta reflexão. Porém, não pode deixar de chamar poderosamente a atenção a reiteração e insistência no uso desta imagem metafórica em muitos textos de antropólogos europeus, inclusive desde perspectivas críticas do cânone clássico. Sustento que a metáfora do espelho comporta, também nestes casos, sua própria capacidade de produzir imagens de identidade essencializadas. Considero sobre isto que além dos significados como os do autor citado, reivindicadores de uma trajetória materialista e crítica para a antropologia, ao utilizar esta metáfora tendem a diluir distintos posicionamentos (teóricos e metodológicos) mediante o recurso a uma identidade construída a partir do olhar exotificador do «outro» que funciona como espelho que reflete em forma invertida a pretendida identidade do ocidente. Por um acaso um espelho quebrado independentemente da quantidade de pedaços em que foi partido faz outra coisa que não seja multiplicar pela quantidade em partes idênticas da imagem que reflete?

Por que, então, fazer eco na atualidade de categorias de duvidosa genealogia (ao menos que a perspectiva crítica esteja sinalizada) como «ocidente» e não seguir insistindo na lógica racista co-constitutiva da implantação alargada das relações de produção capitalista? Ou para expressar em termos de representações: Por que, para defender certa especificidade disciplinar, é necessário seguir recorrendo a uma noção que oblitera seus usos legitimadores do poder imperialista? Ocidente se exibe, se escreve e se inscreve como olhar imperial construído desde a pretensão de legitimar sua pretendida autoridade dominante que gera relação aos outros sociais que você enfrenta. Sujeitos sociais constituídos, e constituintes da trama heterogênea que configura o mapa etnográfico da práxis dominante do capital cada vez mais mundializado e concentrado.

Estes e não outros tem sido os significados das fronteiras culturais e/ou de sociedades denominadas Nuer, Lele, Bosquímanos, Kwakiutl, Trobriandeses, Bororo, etc., construídas pela disciplina antropológica nos mesmos momentos de renovada expansão de acumulação capitalista em sua primeira fase imperialista, cuja intervenção inaugurava novas sociedades complexas coloniais desconstruindo territórios, forças de trabalho, identidade comunitárias, tudo isso abaixo de uma dinâmica da reprodução simples ampliada do capital. Porém, quando estas profundas mudanças sociais e culturais eram negadas ou ficavam «fora» da produção antropológica, limitavam esta disciplina a pretensão de fazer sistema com local (produção da sociedade Nuer, Lele, Bosquímana, Kwakiutl, Trobriandesa, etc.). Quer dizer, davam conta destes povos como supostas totalidades sociais tradicionais em cuja formação social pouco tinham a ver com as instituições e modos de dominação coloniais, reescrevendo as tradições dos «outros» como objeto etnográfico, isolado. Essa espécie de «bola de bilhar» segundo a potente metáfora de Erik Wolf (1987).

Além das técnicas elaboradas de coleta de informações e a sua posterior sistematização, o etnógrafo auto reconhecido como «ocidental» (o viajante antropólogo europeu e americano), ao sustentar seu «lugar» no distanciamento físico e sociocultural (a viagem até «outras sociedades-culturas») produzia, desde o início, um des-conhecimento que já tem sido sinalizado em repetidas ocasiões, mas sobre o qual eu considero fundamental insistir: as condições de produção e reprodução teóricas do campo e do objeto denominados «sociedades primitivas» e além disso, os vínculos profundos que uniam o dito campo com a produção e reprodução de «sua» própria sociedade. Vínculos coloniais, imperiais, neocoloniais, de exploração, de expropriações territoriais, comerciais, de uma gama de diversidades tais que, insuficiente, foram em quase a totalidade dos casos sistematicamente negados, ocultados, desfocados, por boa parte da produção etnográfica. O exótico, o diferente, estava sempre no outro para ser «descoberto» pela etnologia.

Além de se prender nos detalhes dessa descrição etnográfica, a monografia clássica fugia do problema teórico ligado à construção desse «isolado primitivo» que era objetificado como dado pré-existente para definir estritas fronteiras de uma «cultura» ou «sociedade», sem perguntar-se (porque o resultado era prévio) a pertinência destas delimitações que integravam em um mesmo dispositivo objeto e campo e pesquisa. Ao fazer isso, iludiam os sentidos que essa resolução tinha como construção de um conhecimento estigmatizante e, por outro lado, expressão de um modelo de dominação, de mirada imperial e obviamente etnocêntrica sobre o outro (Pratt, 1997; Said, 1997).

Um distanciamento que, produzido teoricamente, pretendia ser reduzido meramente mediante requerimentos técnicos, encurtado pela mesma viagem e a prática etnográfica (que implicavam em alguma medida em negociações, acordos e pautas de trabalho conjunto com «informantes» das «sociedades» estudadas). Distância teórica e olhada a partir do próprio centro do poder de enunciar, descrever, representar, que se tentava restabelecer e abrandar mediante provocações sistematizadas com o objetivo de obter descrições exaustivas, as que ao mesmo tempo se garantia objetividade na recolha de informação.

Em relação com a questão da objetividade, nós temos observado que a etnografia pós-evolucionista pretendia um distanciamento dos grandes tratados do evolucionismo social. Mas por acaso, os chamados viajantes eruditos, missionários e «aventureiros» não tinham produzido seus monumentos de modo similar? A resposta pela negação pode parecer óbvia e assim foi considerada pelos seus cultistas: a produção etnográfica inaugurada por Malinowski se diferia dos relatos «pré-científicos» ao integrar-se ao campo intelectual-acadêmico e submeter-se a regras de crítica e validação de pares, conferindo assim o atributo de busca pela objetividade presente em toda a disciplina científica. A crítica etnográfica recente que tem indagado em torno da «cozinha» das monografias etnográficas clássica – quer dizer, seus diários de campo – introduziu a suspeita sobre se verdadeiramente existia um salto de importância teórica entre o missionário e o viajante culto e as produções etnográficas que pretenderam dar início a etnografia científica, como assim também sobre o recurso da autoridade etnográfica para obliterar o debate em torno a produção de conhecimento.

Desde o final da década de oitenta, tem sido expostos vários argumentos sobre a semelhança escrita de enormes esforços pessoais (a viagem até povos distantes e exóticos), mas cujo critério de objetividade se baseava na comodidade da distância uma vez que se retornava ao ambiente próprio. Estas críticas se orientariam até duas questões principais que eu tentei discutir em um texto anterior (Trinchero, 1994). Nelas se critica, por um lado, o carácter do relativo ocultamento implicado na cristalização de uma experiência etnográfica em um texto e, por outro, o papel da autoridade do etnógrafo para representar um saber que envolve e pertence à «outros».

O primeiro ponto se refere a cristalização de um saber baseado em sua irreprodubilidade, fenômeno de produção acadêmica que pretendia se legitimar por uma estratégia de autoridade que se sustenta na prática de campo (principalmente, pelo menos nestes tempos, na distância e dificuldade de tornar repetível a prática). O segundo repara na produção de um texto que subsome a heterogeneidade de «autores» e «vozes» que participariam na experiência em campo. questão levantada, entre outros, por J. Clifford (1986; 1991). Sua postura implica um questionamento a tradição etnográfica como produtora de uma narrativa ficcional, quer dizer, em uma suposta representatividade do etnógrafo, que mediante registros textuais individuais se apropria de uma produção coletiva, embora convertendo a esse referente coletivo (Os Trobriandeses, Os Nuer, Os Azande, etc) para suportar a sua narração (Clifford, 1991).

É por isso que esta crítica insiste em requerimentos técnicos de registros dialógicos, produções textuais «negociadas», etc. que, indo inclusive mais além da interpretação hermenêutica que caracterizaria um dos momentos metodológicos da análise antropológica, tentando «representar» tanto o «encontro» etnográfico como a heterogeneidade dos atores envolvidos na dita prática (Clifford, 1991; Tedlock, 1991).

Ao colocar em dúvida a capacidade do texto etnográfico clássico para «representar» essa multiplicidade de saberes que estão envolvidos na experiência etnográfica, assinalando as complexas interfaces implicadas na tradução destes aos textos, se põe em dúvida a legitimidade do etnógrafo como autor e do texto como conhecimento válido ou plausível. Se questiona, assim, a preeminência da interpretação do etnógrafo por cima das interpretações dos próprios sujeitos etnográficos. Independentemente do eco que tiveram estas críticas no mundo acadêmico recente, é importante assinalar que, em algumas ocasiões, levaram a etnografia a caminhos sem saída (por exemplo, quando alguns antropólogos deduziram, um tanto apressadamente, a partir destes questionamentos o fim da antropologia como campo cientificamente legítimo), propondo uma identificação entre o texto etnográfico e a novela.

A esta altura do debate metodológico na produção etnográfica eu considero importante não perder de vista tanto a prática reflexiva como o reconhecimento de que a etnografia é parte inseparável da produção científica e, por outro lado, crítica do conhecimento. Considero que o cuidado nestas questões não pode ignorar certas caracterizações teóricas e metodológicas sem correr o risco de aproximar-se a uma perspectiva voluntarista e a-crítica da prática científica implicada em qualquer projeto de trabalho etnográfico.

Sem envolvermos aqui em um desenvolvimento pormenorizado das implicações destas posições, é possível sustentar que o debate produzido depois de ter o conhecimento dos diários de campo de Malinowski((N.T.: Trechos de alguns diários de campo de Malinowski foram publicados no formato de livro passados 25 anos de sua morte. O livro foi publicado por sua viúva e herdeira. Os trechos foram selecionados e em resumo revelaram várias facetas de um carácter preconceituoso que era ocultado pelo autor em sua monografia principal.)) e seus comentários preconceituosos sobre os aborígenes trobriandeses «ocultos» por seus textos editados e outras «descobertas» neste estilo, tenderam a ocultar também que fazia mais de duas décadas que a etnografia tradicional era questionada por uma grande parte da antropologia social da época, embora em outro sentido. E vale mencionar que o desenvolvimento desta crítica foi de especial significado nos movimentos sociais e políticos que destacavam o clássico olhar neocolonial sobre o denominado «Terceiro Mundo».

O que se havia problematizado nesse então e que eu tenho recuperado muito sinteticamente nas páginas anteriores, era a concepção da etnografia como suposta descrição neutra de pautas sociais e culturais de povos «não ocidentais», «primitivos», «ágrafos» o qualquer definição deste tipo que estamos acostumados a ver naquelas monografias etnográficas. Se questionava a ideia mesma de que o papel da antropologia era resgatar o esquecimento do Ocidente daqueles povos condenados à extinção pelo desenvolvimento da modernidade e do «progresso». O calor destas críticas se havia aprofundado em torno do conteúdo ideológico daquela noção de «isolado primitivo» que era translúcido naquelas monografias clássicas, levantando que eram co-constituintes de uma antropologia filha e herdeira intelectual do colonialismo (Kaplan e Manners, 1972; Llobera, 1975; Godelier, 1976).

Uma antropologia que, seja por certas formas de seu compromisso intelectual (com o feitio colonial), seja por certas formas de distanciamento sobre as resistências das comunidades e sujeitos estudados, não estava em condições de dar conta das práticas etnocidas que o colonialismo e o neocolonialismo geravam. Uma antropologia que, em definitivo, com a sua pretensão descritivista e a-crítica estava mais perto de uma proposta legitimadora do poder e da exploração imperial que de uma disciplina crítica, sistemática e implicada.

Com o anterior, eu tento dizer que, a partir do meu ponto de vista, certos questionamentos realizados pela antropologia social recente à etnografia clássica resultam mais interessantes se são assumidos a partir daquelas elaborações que questionavam não somente e unicamente o «lugar» de poder do etnógrafo e seu autoritarismo diante das vozes aborígenes, mas as suas relações próximas, quer dizer como parte constituinte do discurso civilizatório naquela identidade «Ocidente», em ambos como tradição reinventada permanente: um olhar e uma prática imperial sobre os «outros».

Nunca é demais relembrar e insistir, como exemplo, que elaborações canônicas da antropologia, como a investigação do Evans-Pritchard sobre os Nuer, receberam financiamento do Governo Colonial do Sudão Anglo Egípcio, nem tampouco que a sua descrição da sociedade Nuer, independentemente de seu valor como texto etnográfico de «época», não mencionava os impactos que a guerra colonial britânica produziu e seguia produzindo sobre a dinâmica da organização social de seu «objeto» de estudo quando estava realizando o trabalho etnográfico. Em ambos, a etnografia produzida nestas condições, além de ser parcial e enviesada, se constituiu em «documento de civilização», como a célebre frase de Walter Benjamin; quer dizer, anátema, censura, de sua própria barbárie.

A crítica sobre a «autoridade etnográfica» tem colocado o centro do debate antropológico na noção de reflexividade. Recuperada e aprofundada pela crítica etnográfica contemporânea, tem realizado certamente importantes aportes à inteligibilidade e questionamentos do lugar do etnógrafo na produção de conhecimentos.((M. Hammersley sintetiza que existiriam três acepções ligadas a noção de reflexividade: uma (tomada de Godelier) refere que «os sociólogos devem aplicar as perspectivas que tem desenvolvido com o fim de procurar uma sociologia aplicada «radical» que busque transformar e conhecer o mundo estranho fora do sociólogo como também do mundo estranho dentro dele». Outra refere que «o modo em que nós podemos examinar e reflexionar sobre nossos próprios pensamentos e ações», no sentido de que os trabalhos sociológicos e antropológicos são ações significativas no mundo além de meras descrições sobre ele.))

Porém, nas mãos da denominada antropologia pós-moderna (categoria que de todas as maneiras é discutível), aquela noção tem pretendido configurar-se em um sentido unívoco mal receptiva para formulações anteriores sobre o tema. Assim, a problemática da reflexividade no trabalho de campo tem levado a muitos autores a produzir informação quase exclusivamente sobre os limites de sua prática profissional, e acabam falando mais de si mesmos que ao assumir o compromisso de expor criticamente seus conhecimentos em torno aos problemas que investiga pressionados por uma suposto legitimação do que escrever sobre «os outros» qualquer coisa será ficção.

Pretendo assinalar que é pouco conducente derivar as críticas (válidas, obviamente) às etnografias clássicas como um questionamento absoluto para toda a prática etnográfica, pelo lado de que condicionantes metodológicos de limitada factibilidade e cujo o eixo é uma noção clássica que parte de um olhar dicotômico entre subjetividade / objetividade e de uma excessiva valorização do papel da performatividade dos etnógrafos na prática de campo.

Considero que a afirmação anterior é relevante pelo simples fato que, apesar dos esforços da antropologia crítica direcionadas à etnografia clássica, os escritos sobre técnicas etnográficas se seguem sustentando sobre a base de um objetivismo, como se diz, ingênuo, já que enquanto se fala geralmente de registros dialógicos, negociados, etc., se formulam ao mesmo tempo técnicas de trabalho que pretendem (mesmo que sem explicitar isso) reduzir ao máximo a subjetividade do etnógrafo, o qual não deixa de ser uma contradictio in adjecto. Do mesmo modo, as preocupações dos estudantes de antropologia que tem participado em meus cursos ou até o público em geral não vinculado à prática etnográfica, insistem sobre os «mecanismos» ou «comportamentos» que garantiriam mais adequação ao critério de redução ou minimização das consequências de nossa intervenção em um determinado «grupo», «comunidade», etc.

Sobre isso, me interessa propor aqui que grande parte dos textos sobre técnicas etnográficas fazem exagerada alusão a este tipo de instrumentos sem refletir com mais cuidado sobre o que se obstrui com eles. Quer dizer, estou convencido de que o esforço colocado em questionar tais como «em que momento e mediante que tipo de procedimentos posso fazer uso do gravador de forma tal de não dificultar a dinâmica discursiva de meu informante?» ou «de que maneira devo conduzir adequadamente uma entrevista para que o informante vá informando os nossos interesses de pesquisa?», a quem está acostumado com manuais de técnicas qualitativas, configuram instruções de muito pouca utilidade para enfrentar os desafios da produção crítica do conhecimento etnográfico.

Um dos problemas da crítica metodológica pós-moderna é que ao invés de retornar ao objeto para relativizar a noção de objetividade-verdade que continha a etnografia clássica, quer dizer, localizar a objetividade nas condições da produção do objeto, de seu significado como modo de conhecimento colonizador, o fizeram centralmente sobre os autores e suas narrativas. A partir de meu ponto de vista, atribuem a etnografia clássica meramente um problema metodológico nos próprios cânones da ciência clássica: sua falsa «objetividade». Todo o problema parecia estar no fato de que as etnografias não eram suficientemente objetivas porque não incluíam «outras» subjetividades, retornando deste modo a uma ingênua noção de objetividade-verdade (e ao mesmo tempo naturalizando a mesma noção de sujeito e subjetividade).

Digamos, mediante uma formulação aparentemente paradoxal, que a objetividade não seja outra coisa que um ponto de vista. Com isso pretendo assinalar que esta palavra deveria remeter, antes que para um suposto de neutralidade de valia do investigador sobre o seu «objeto», a um programa de permanente análise e reflexão sobre as causas e configurações que adquire o permanente retorno do objeto que impulsiona a antropologia através dos mecanismos de financiamento por parte das «agências de contato», e em parte pela Academia, assumindo ao mesmo tempo que o estudo sistemático sobre este retorno é impulsionado pelos requerimentos da crítica. Um ponto de vista, então, construído mediante regras particulares que definem e permitem reconhecer a antropologia no campo das ciências sociais em um determinado contexto. Mas o problema que considero central não é tanto a definição destas regras, mas precisamente as condições de possibilidades e limitações de produção partindo deste ponto de vista.

Novamente para o etnógrafo clássico, a resolução deste problema era relativamente simples: se tratava do suposto ponto de vista do nativo, o qual, segundo tento assinalar, não implica outra coisa que derivar o problema para o «outro»; uma questão que, como temos observado, é uma dívida dos requerimentos do saber colonial.

Porém, antes de avançar sobre está última questão, considero necessário, em um breve parágrafo, porque aquelas regras metodológicas se encontram menos definidas em forma consensual que em outros tempos. Segundo a minha leitura, e além disso de outras considerações da crítica, isto é assim porque, independentemente de muitos esforços de escritas de manuais, não existem procedimentos técnico-metodológicos que possam garantir com certeza procedimentos de inferências de tipos dedutivos e/ou indutivos, como a repetição do caso para suportar determinada regra (teoria). Porém, concluir desta consideração que o texto etnográfico pode ser similar a uma novela, um conto, etc. – como tem sido sugerido por muitos colegas contemporâneos – é um despropósito, exceto se considerar que uma novela ou um conto, como um ato de criatividade, não respeitam determinadas regras de construção. Parafraseando Bourdieu, podemos estar de acordo que nossa prática se inscreve em campos intelectuais cujos habitus assinalam condições de produção de saberes governados por critérios de sistematicidade, criação, exaustividade, compromisso e distanciamento críticos específicos de cada disciplina sem que ele implique necessariamente (embora em geral aconteça) o encapsulamento e a auto reprodução.

Com relação ao expressado, haveria que referir-se ao fato (embora muitas vezes preso) de que por trás destas receitas de bolo não somente se ignoram o tratamento da questão da subjetividade, como se filtram sub-repticiamente as pretensões de «neutralidade de valia» defendidas pelas correntes mais positivistas das ciências sociais e que supostamente deveriam ser «superadas» pelas técnicas qualitativas.

Também se tem assinalado anteriormente que a etnografia clássica pretendida como objetivista, seja por sua escassa e talvez impossível reflexividade em torno ao significado da autoridade do etnógrafo ou pela construção de técnicas que tentavam aquela redução da subjetividade a um suposto mínimo controlável, tem sido objeto de uma importante crítica no campo antropológico contemporâneo. Porém, apesar das repetidas referências direcionadas a estas questões, poucas vezes aparecem nas produções antropológicas os procedimentos de reflexividade que foram parte constituinte da produção de conhecimentos. Quer dizer, que apesar das importantes (embora em ocasiões excessivamente reiteradas) manifestações realizadas sobre a problemática da reflexividade, as investigações nos são apresentadas frequentemente como um resultado na forma de artigos e livros que fazem referência geral a esta questão, mas que a ignoram tanto na prática ocorrida como no desenvolvimento do processo de conhecimento. Este é outro ponto de interesse sobre o qual me deterei mais adiante.

Do objeto refletivo à crítica reflexiva

O critério de objetividade, geralmente válido para qualquer disciplina científica, pode definir-se como o reconhecimento de uma determinada realidade que opera independentemente do sujeito cognitivo. Essa realidade está constituída, para o campo das ciências sociais, por relações sociais que incluem as de relações de produção de sujeitos. Estas relações sociais podem ser objetivadas pelo observador e entendidas como «coisas» (como o célebre apotegma de Durkheim): é a relação social independentemente da consciência dos sujeitos o que interessa como objeto de conhecimento.

Nada haveria de imputar-lhe a esta clássica formulação metodológica se não fosse, ao menos, por uma questão central que opera em um sentido oposto e reconhecido no mesmo postulado para o caso da antropologia social: o fato não reflexionado pelo horizonte clássico da antropologia de que o investigador / etnógrafo como sujeito é parte constituinte das relações sociais que pretende analisar «objetivamente». Como se tem observado, esta questão pretendeu ser superada pela antropologia clássica mediante o recurso do distanciamento «geográfico-cultural». Assim, frente ao sociólogo que estudava «sua» própria sociedade, a antropologia se fazia mais objetiva ao estudar sociedades distantes tanto física como socio-culturalmente. Porém, a única coisa que conseguiu foi a ocultação do problema. Qual é o problema? Precisamente que essas «outras» sociedades tinham a ver mais com a própria história da modernidade capitalista de que era parte o próprio antropólogo que com o distante e estranho. Mas não apenas isso. Hoje em dia, o desenvolvimento da crítica mostra que a maneira na qual, por exemplo durante o período da segunda pós-guerra (principalmente entre os anos cinquenta e sessenta), uma importante quantidade de antropólogos críticos do cânone dominante nas academias europeias e norte-americanas foram perseguidos. Assim, para citar somente dois exemplos, temos o caso dos estudos de Peter Worsley sobre os denominados «cultos cargos» na Melanésia, no qual mostrava o significado destes no marco da luta política resistente dos melanésios e não como formas arcaicas de «anomias» ou como expressões do «choque cultural». Este trabalho, que foi denunciado em 1958 por Lucy Mair como panfleto comunista, produziu para aquele autor graves problemas em sua estabilidade institucional na academia. Outro caso é o de Kathleen Gough, que pelas suas denúncias sobre o bloqueio norte-americano contra Cuba, foi repreendida, não sendo renovado o seu contrato e foi submetida a interrogatórios e perseguições de toda índole (Gledhill, 2000, p. 115,352). Inclusive hoje conhecemos estudos sobre a participação direta de antropólogos reconhecidos mundialmente em programas de contra-insurgência, inteligência e na regulação do conhecimento acadêmico por parte do complexo militar-imperial norte-americano em um contexto já «pós-colonial», tal como denuncia Laura Nader (1997, p. 44-86).((O interessante neste último caso é que esta autora pode realizar sua crítica trabalhando sobre arquivos de distintas dependências e agências norte-americanas uma vez que, como ela mesma o anuncia, obteve a sua aposentadoria como professora.))

Deste modo, voltar ao objeto da antropologia e insistir sobre as formas de construção tendenciosa e recriada por interesses específicos, indagar reflexivamente a partir de outro «lugar», a partir de outro olhar, deveria ser o ato de busca da objetividade no sentido crítico expressado anteriormente.((No capítulo seguinte do livro onde este texto foi publicado, ocorre uma tentativa de abordagem sobre a questão do papel possível de uma etnografia crítica e reflexiva. O capítulo é intitulado «Del viaje y la reflexividad en la producción etnográfica«.))

É necessário, então, uma permanente atenção ao olhar sobre os modos como o objeto clássico da antropologia retorna e as suas variantes, para analisar as condições de sua reprodução tanto acadêmica em particular e social em geral, e suas capacidades de resistência à crítica (suas possibilidades e limites para instituir-se como «obstáculo epistemológico» no conhecimento crítico). Mas a análise do semelhante retorno não é um mero requerimento de tipo metodológico: o objeto clássico retorna pela própria dinâmica da produção de hegemonia no mundo capitalista atual. Sustento que tanto ciência financiada como promovida pelos centros do poder mundial, quer dizer como pretendida ciência imanente ao sistema, a antropologia tende a reproduzir sob várias formas seu objeto clássico, como o saber monumentalizado sobre o «outro». Isto é assim, na medida que é necessária, segundo seja o caso, certa construção de legitimidade em torno da racialização das relações sociais, certa culpabilização da vítima ou, como tem ocorrido quase permanentemente em seu desenvolvimento disciplinar, a disposição de seu lugar de enunciação como produtora de informação sobre os processos sociais resistentes aos interesses do capital.

Me interessa propor, junto a um profuso espectro de colegas, que a etnografia e a reflexão teórica devem ser tratadas como momentos constituintes da produção de conhecimentos em antropologia, pelo que não corresponde isolarmos tematicamente sem propor primeiro as suas conexões. Ao mesmo tempo, tampouco pode isolar-se ambos (teoria e prática etnográfica) das condições materiais de sua produção (financiamento, apoios institucionais, etc.). São precisamente estas condições e a inserção dentro de uma determinada formação social a par da produção de determinados modelos de organização política dos estados nacionais respectivos a que configuram o campo de possibilidades e limitações ao que se enfrenta todo cientista social. Inclusive deveríamos estar alertas para não descuidar as correlações entre produção de saber e políticas acadêmicas e científicas «racionais», tentando construi-las como objeto mesmo de conhecimento reflexivo.

Em contraposição à formação discursiva da etnografia como saber colonial, não deveria ser possível uma delimitação pré-existente de um objeto etnográfico se não tem sido formulado algum problema de índole teórica reconhecido como tal no campo das ciências sociais e assumido como relevante em determinado contexto. «Não se investigam culturas se não problemas», afirma com propriedade um colega espanhol (Calvo Buezas, 1995). Para levantar isso em termos metodológicos: o etnógrafo não estuda «a comunidade tal» ou o «grupo X», mas que a partir de sua intervenção em determinada comunidade ou grupo, dá conta de um problema teórico de maneira mais plausível que os tratamentos anteriores ou relativiza certezas destes para reformular de maneira distinta este problema. Assim, o exposto por C. Lévi-Strauss na oportunidade de um diálogo mantido com colegas mexicanos:

Só devemos nos considerar relativamente satisfeitos com nosso trabalho quando ao encarar um problema, reconhecido como tal em nossas disciplinas, nós temos conseguido atingir um nível de inteligibilidade do mesmo maior que aquele que encontramos antes de nossa intervenção.((Palavras pronunciadas em um seminário realizado no México no ano de 1981, organizado pelo Instituto Francês para América Latina e distintas universidades mexicanas em homenagem ao seu livro Palabra dada. Tal perspectiva tem sido expressada, talvez com outras palavras, em distintas partes de sua vasta obra.))

Contudo, as regras que em nosso caso permitem reconhecer que o tipo de problemas que encara o etnógrafo em um texto se inscrevem em um campo de disputa teórica e metodológica relevante, e a maneira na qual o intelectual assume os seus resultados (sempre provisórios) é uma função do grau de compromisso e distanciamento assumido como necessários para produzir um conhecimento crítico novo e suportado como condição de profissionalismo em sua práxis.

De todas as maneiras, o mesmo reconhecimento de «um problema» não se apresenta diante do campo intelectual de forma clara e evidente para a sua análise depois de uma superação crítica ou de um maior nível de inteligibilidade. A formulação mesma de um problema de pesquisa está condicionada pela própria dinâmica de interesses envolvidos nele, exceto se considerarmos uma existência absolutamente autônoma do campo intelectual sobre a produção de conhecimentos.

Assim como eu tentei levantar nas páginas anteriores, pretendo discutir a colonialidade presente na produção do conhecimento antropológico no campo de nossas academias nacionais. Neste sentido, um texto sul-americano de referência é uma recente compilação de Edgardo Lander sobre a colonialidade do saber (Lander, 2003). A partir de meu ponto de vista, esta perspectiva pretende a crítica sobre os modos de construção do conhecimento nas academias hegemônicas e suas consequências sobre a nossa prática. Quer dizer que se instala na crítica o que poderíamos denominar como um olhar e uma prática imperial. Mas, o que significam um olhar e uma prática imperial? Em princípio, podemos dizer junto com Bourdieu (sobre tudo em seus últimos textos) que constituem modalidades da reprodução simples e ampliada de um imperialismo cultural. Sua definição é sugestiva:

O imperialismo cultural descansa sobre o poder de universalizar os paralelismos ligados a uma tradição histórica singular, fazendo-os desconhecer como tais.(Bourdieu e Wacquant, 1999, p. 205)

Isto nos remete a tematização para o campo da antropologia e das ciências sociais em geral de certas questões que, emergindo dos interesses específicos das academias e centros científicos hegemônicos euro-americanos, se instalam como agenda necessária em nossos campos de saber, se reproduzem como uma espécie de formação discursiva, de poder-saber (em termos foucaltianos). Quer dizer, um conjunto de enunciados que concluímos reconhecendo como válidos ou discutíveis, universalmente, sem considerar suas específicas relações de produção e, a partir dali, a possibilidade de analisar a pertinência de sua tradução para «outros» âmbitos ou problemas sociais.

Uma consequência clara disto é a própria formação acadêmica dos cientistas sociais. Quando fazemos circular autores e textos deles iludimo-nos, seja por economia de meios, por ingenuidade ou por razões mais profundas, suas condições de produção, seus vínculos com certas políticas específicas em seus lugares de «origem», nós contribuímos para a reprodução mais ou menos velada desse imperialismo cultural.

Anteriormente eu me referi a um texto da antropóloga norte-americana Laura Nader intitulado El factor fantasma. El impacto de la guerra fría en la antropología, traduzido e publicado em nosso meio pela revista Taller. Neste artigo se descrevem não somente as cumplicidades de muitos intelectuais antropólogos deste país com os interesses do pentágono e da CIA (entre outros, C. Kluckhohn), mas também a perseguição mais ou menos velada de outros profissionais. Outro aspecto interessante do texto que me interessa resgatar o constituinte é a análise em torno da emergência e uso de determinadas categorias para interpretar «outras culturas» que se aproximam, ao velho estilo clássico, problemáticas sociais nas quais o país de pertença do antropólogo se encontre envolvido. Assim, por exemplo, teríamos um distinguido antropólogo que tem circulado em nosso meio como C. Geertz, cuja descrição profunda da briga de galos faz menções para valores como Ethos e Cosmovisão para falar dos processos de interpretação nativos sobre a violência, obliterando o significado de milhões de pessoas massacradas pela ocupação imperialista na Indonésia. Quer dizer, a violência na Indonésia não seria o produto dos interesses imperialistas norte-americanos, mas sim estaria inscrita no universo cosmovisional dos dominados. Talvez não seja inútil interrogar-se pelo uso destas mesmas categorias em nosso meio para um projeto de resgate arqueológico e etnográfico em comunidades Mapuche da Patagônia, financiado pela empresa Hidronor em momentos em que ela planejava relocações compulsivas destas localidades. Sem pretender conclusões sobre isto, estas «sintonias» entre usos de categorias aparentemente descontextualizadas parecem encontrar renovados contextos e pertinências específicas, quando é o «culturalismo» que as faz falar.((Agradeço ao Pablo Perazzi a possibilidade de mencionar esta analogia entre os enunciados de Nader sobre o trabalho de Geertz e os usos das categorias de Ethos e Cosmovisão no projeto mencionado, já que a mesma foi sugerida por ele em uma reunião de nossa equipe de trabalho.))

Um exemplo mais de crítica sobre a reprodução colonizante do conhecimento oferece, novamente, um artigo de P. Bourdieu e L. Wacquant intitulado «Sobre las astucias de la razón imperialista«.((No livro Intelectuales, política y poder, 205-222.)) Nele se denuncia o financiamento por parte da fundação Rockfeller de um programa sobre «Raça e Etnicidade» na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e que impõe, como condição de financiamento, que as equipes de pesquisa obedeçam aos critérios de «ação afirmativa» no modelo americano, incentivando a dicotomização racial «negros / brancos».

Certamente, um conceito tão precioso aos delírios do racismo no Ocidente se reencontra hoje numa aparente «forma» light na trama conceitual e política do estado imperialista por excelência. Esta forma, expressada na modalidade típica de conceber e gerar políticas em torno das diferenças étnicas, requer ser inscrita na genealogia particular do «melting-pot«((N.T.: Conhecido como «caldeirão das raças». Pode ser acionado para defender a proposta de uma sociedade mais homogênea se tornar mais heterogênea (ao incluir elementos externos, diversificando-a). Mas também pode ser utilizado para defender a proposta de uma sociedade mais heterogênea se tornar mais homogênea (ao forçar eles a se misturarem, frequentemente com discursos de assimilação cultural).)) norte-americano o qual, desde as reservas aborígenes até a formação de guetos de outros internos culturais, tem produzido a sua mescla conceptual que associa «cultura» com «raça». A experiência histórica do Estado-nação norte-americano com relação ao conflito entre «negros» e «brancos» tem configurado um modelo que tende a etiquetar toda a diferença étnica como diferença racial. Neste modelo, a categoria mestiço (para identificar processos de hibridização e mescla) não teve e não tem lugar como acontecimento, embora sob condições específicas de exploração social e cultural, na América Central e na América do Sul ocorra.((O expressado não implica obturar com isso a análise sobre a emergência de categorias socioétnicas (mestiço, pardo, etc.) presentes na sociologia brasileira, as quais mereceriam um estudo particular que é impossível de realizar aqui.))

O critério de «hipo descendência» (que implica que os filhos de uma união mista se vem assinados de forma automática ao grupo estigmatizado como «inferior» – p.e. os negros) assumido pela América do Norte nos próprios censos de população indica que, além do eufemismo de «democracia racial», o critério antropológico seguido se direciona para a racialização das diferenças sociais (não por causalidade, talvez, em consonância com a exacerbação paulatina da quebra do «sonho americano», hoje transformando-se em pesadelo para o mundo). A distribuição espacial interna nos Estados Unidos da América de sujeitos imigrantes racializados por aquelas categorias envia a um processo de formação de guetos contínuo e sistemático aos outros internos, por exemplo «chicanos» ou «latinos». Quando estas categorias são associadas a noção de raça, concluem configurando toda uma sociologia e uma política que os inclui nas agendas governamentais e judiciais como «problemas».((É interessante, sobre isso, uma notícia recente de ampla difusão em meios de imprensa locais que colocada a manifestação da situação de um condenado a morte pela justiça de um estado norte-americano à um argentino. A intervenção de Cancillería para pedir foi sintomática: o argumento era que ele foi condenado pela cor de pele, ao ser confundido de forma genérica com um latino.)) A importância desta questão se explica pelo fato de que desde 1996, segundo estudos realizados, os denominados «latinos» se tem constituído como o segundo grupo «étnico-racial» em seis das dez cidades mais importantes dos Estados Unidos e em Los Angeles, Houston e San Antonio, superam inclusive a população branca. Também os dirigentes dos principais sindicatos destas cidades pertencem a esta categoria (Davis, 2000).

Sem estendermos demais neste ponto, diremos neste momento que a questão «étnica» tal como aparece formulada a partir da «democracia racial» norte-americana e conceitualizada no viés do multiculturalismo implica, no âmbito interno, a construção de outros em situação de reserva, algo como uma espécie de impasse no processo de cidadania que de maneira lenta mas inexoravelmente os atingirá segundo os desejos imaginários do neoculturalismo associado ao denominado neoliberalismo. Haveria que indagar – não faremos isso aqui – as posições no campo do multiculturalismo acadêmico que, propondo-se como crítica a partir da esquerda liberal norte-americana, reproduz de uma ou outra forma o tratamento da etnicidade em termos raciais (Kymlicka, 1996; Fraser, 1995).((Para um tratamento crítico e sistemático das posturas em torno as políticas de «reconhecimento» nestes autores, pode ser consultado o livro de H. Vázquez intitulado Procesos étnicos identitarios en un contexto de exclusión sociocultural. Aportes a la cuestión indígena en Argentina. Buenos Aires: Biblos de 2000.)) Mas em contraponto com esta política interna, a racialização dos conflitos sociais no mundo implica a re-emergência de enunciados como «guerra justa» (cujos significados remetem ao fato colonial na América) atrás das hipóteses de conflito do Pentágono. Uma nova moral revestida de política que faz dos conflitos mundiais uma guerra entre o bem e o mal, como demonstram as experiências recentes no Oriente Médio, Iugoslávia, Iraque, etc. Em última instância, o mundo visto a partir do caleidoscópio multiculturalista proclamado mas através da mira de um fuzil, a partir do qual o poder imperialista só enxerga amigos ou inimigos. Podemos agregar que este ato disciplinador está inspirado em uma estratégia etno-política mais profunda ainda: aquela que essencializa identificações étnicas atrás do conceito de «folk» de raça até o interior nacional (revelando-se ao mundo como «verdadeiro» caldeirão de raças de reconhecimento pretendido como democrático de diferenças cristalizadas), enquanto que direcionado ao exterior vem ao mesmo princípio para legitimar a produção de outras identidades, étnico-sociais essencializadas (muçulmanos como embasamento étnico de fundamentalismo religioso, indígenas latino-americanos como embasamento racializado da expansão do narcoterrorismo, etc.).

Pode dizer-se que algo similar, embora que em outras condições históricas e políticas, ocorre com o modelo do «crisol de raças», tão precioso para a «comunidade imaginada» nacional (Anderson, 1993). Se há algo que caracteriza esta noção é haver-se constituído em um eufemismo que oblitera e esconde um modelo específico e hegemônico de racialização ou etnização dos conteúdos que definiriam uma imaginada «identidade nacional». Programa histórico-antropológico caracterizado pela redefinição permanente de princípios negativos / positivos de ser outro, de outros internos na formação social nacional (p.e. índios, gaúchos e imigrantes), no marco muitas vezes da formulação da hipóteses de conflitos emergentes pela caracterização de inimigos internos para resolver militarmente contradições de classe. Estas hipóteses de conflito que hoje pretendem ser «superadas» mediante um modelo de legalidade (por exemplo, o reconhecimento constitucional – e outros dispositivos jurídicos – direcionados às «comunidades indígenas»), embora sem gerar os instrumentos, as agências e as representações que poderiam dar lugar a produção de uma efetivação das demandas que estes instrumentos, agendas e representações poderiam habilitar.

Um terceiro exemplo sobre a questão envolve particularmente o uso de categorias de etnicidade e de sustentabilidade ambiental aplicando certa lógica do sentido comum para significar um modelo de colonialidade. Na periferia de Recife, no Brasil, existe a planta de titânio mais importante da América do Sul. Até a década de oitenta, esta planta havia produzido uma contaminação de tal magnitude que o ambiente marinho costeiro colocou sob risco de extinção várias espécies de tartarugas marinhas. Ao mesmo tempo, e considerando que as costas no Brasil são um importante recurso turístico, a contaminação do mar produziu uma sensível diminuição da chegada de recursos neste item para este estado. Sobre as costas desta região hoje se encontra uma «reserva» de uma espécie de tartaruga marinha promovida pela própria empresa. Ali se pretende recuperar as tartarugas mediante um sistema de reprodução e criação em tanques. No interior de um dos edifícios da reserva, que funciona como uma espécie de «museu histórico», o visitante encontra uma explicação muito particular sobre a eliminação do animal. Grandes painéis com fotografias mostram com uma riqueza de detalhes a «crueldade» dos nativos do locai caçando a «tartaruga marinha» com lâminas especiais e arrancando-lhes as conchas. Sobre as praias ainda hoje contaminadas, quem passa não encontra no entanto uma única tartaruga em estado silvestre, mas chegará a certeza absoluta de que quem sido os responsáveis pela predação do pobre animal e, por uma módica quantia pode levar também uma T-shirt com a inscrição: «Salve a tartaruga marinha».

Para finalizar, não deveríamos refletir sobre os usos de categorias como «etnicidade», «grupo étnico», etc. em um contexto como América Latina que, no marco das hipóteses de conflito na guerra das civilizações suportada pelos intelectuais orgânicos do Pentágono, o inimigo parece estar configurado para a associação indigenismo-narcoterrorismo?

Ao mesmo tempo, o que dizer da emergência de estudos trans-fronteiriços, com tendência a invisibilizar os estados-nações como modos de regulação de interesses coletivos quando, junto aquelas hipóteses de guerra, a América Latina pretende seguir sendo sujeitada como o quintal dos fundos dos interesses norte-americanos?

Devemos estar alertas diante dos jogos espetaculares do imperialismo cultural, já que a confusão da parte com o todo não é resultado de qualquer ingenuidade. Mediante a expansão global de categorias próprias das histórias de dominação, o projeto imperialista do capitalismo propõe legitimar uma renovada guerra de raças hoje denominada nos textos e autores orientados pelo Pentágono como «guerra das civilizações» (Hunttington). Culpabilização da vítima ou a formação de estigmas etno-políticos neocoloniais, é o nome possível desta girada racista na produção de identidades a partir do poder de produção de sujeitos étnicos.

Referências

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Apêndice((N. T.: O texto original é incluído como apêndice e faz menções ao capítulo primeiro do livro de Héctor Hugo Trinchero. A citação original é em castelhano, e está traduzida para a língua portuguesa para manter o padrão do restante do texto. Foram feitos ajustes menores no texto onde ocorriam menções para o livro por similar motivo.))

Ulrico Schmidtl, logo após regressar ao velho mundo, escreveu o seu Viaje al Rio de la Plata (1543-1555). A seguir, se reproduzem passagens do texto que remetem para a situação de fome na aldeia de Buenos Aires e o conflito com os Querandís e Timbúes. Para ilustrar a sua obra o autor contratou um tal de Levino Hulsio (ou Levinus Hulsis na versão latinizada) de quem se reproduz uma imagem de sua autoria sobre a Aldeia de Buenos Aires naqueles tempos, que é vinculada para tais acontecimentos.

Os acima descritos Querandís nos tem entregue ao reino diariamente por quatorze dias sua escassez em pescados e em carne. Eles só falharam um único dia em que não nos trouxeram o que comer. Então o nosso general don Pedro Mendoza enviou em seguida um alcaide((N. T.: Espécie de governador de uma pequena propriedade colonial ou fortificação militar.)) de nome Juan Pavón e com ele dois peões; pois estes supracitados índios estavam há quatro léguas de nosso reino. Quando ele chegou onde aqueles estavam, a coisa se conduziu de tal maneira com os índios que eles, o alcaide e os dois peões, estavam bastante espancados e depois deixaram voltar os cristãos a nosso reino.

Quando o dito alcaide retornou ao reino, estava tão confuso que o capitão general don Pedro Mendoza enviou a seu irmão don Jorge [Diego] Mendoza com trezentos soldados e trinta cavalos bem equipados; eu estava presente entre eles. Então ordenou e enviou nosso capitão general don Pedro Mendoza ao seu irmão don Diego Mendoza, e ele junto conosco trouxe a morte e cativou ou prendeu os denominados Quesandís para tomar o seu lugar. Quando chegamos ali somavam os índios uns quatro mil homens pois haviam convocados uns amigos…

E quando nós mesmos desejamos atacar eles, estes se defenderam de tal maneira que este dia tivemos que fazer muito por eles; mataram eles o nosso capitão don Diego Mendoza e junto com ele seis fidalgos à cavalo, também mataram a tiros cerca de vinte infantes nossos e pelo lado dos índios caíram ao redor de 1000 homens; mais ou menos; e se tem defendido muito valentemente contra nós, como bem nós experimentamos isso…

Depois que nós retornamos ao nosso reino, se separou toda a gente; a que era para a guerra se empregou na guerra, e a que era par ao trabalho se empregou no trabalho. Lá um assento foi levantado e uma casa forte para o nosso capitão general don Pedro Mendoza e um muro de terra ao redor da cidade de uma altura até onde se poderia alcançar com um florete. Este muro era de três pés de largura e o que se levantava hoje amanhã já estava no chão novamente; além disso a gente não tinha o que comer e se morria de fome e sofríamos uma grande escassez, ao extremo de que os cavalos não serviam mais. Foi tal a pena e o desastre da fome que não bastaram ratazanas, nem ratos nem víboras, nem outros vermes; também os sapatos e couros, todo teve que ser comido…

Sucedeu que três espanhóis haviam furtado um cavalo e o comeram sem sabermos, e isto se supõe; assim os prendemos e os torturamos para que confessassem o delito. Então foi pronunciada a sentença que os três espanhóis seriam condenados à forca. Assim se cumpriu e eles foram levados à forca. Assim que foram executados e todos foram para casa e anoiteceu, na mesma noite outros espanhóis cortaram as suas coxas e uns pedaços de carne do corpo e levaram eles para o alojamento deles e lhes comeram. Também ocorreu então que um espanhol comeu seu próprio irmão que estava morto. Isto ocorreu no ano de 1535 em nosso dia de Corpus Christi na supracitada cidade de Buenos Aires.

Buenos Aires de Hulsio no livro de Schmidtl
Representação da aldeia de Buenos Aires de Hulsio no livro de Schmidtl. Nota-se à direita da mesma os corpos pendurados que, segundo o relato, foram objeto de antropofagia por parte dos espanhóis.
antropologia fenomenológica argentina em ação
A antropologia fenomenológica argentina em ação. Imagem de Imbelloni em atitude de conversar com a pessoa fotografada e do jovem Bórmida tirando fotografias no Chaco acompanhado por um colega e policiais armados. Foto do arquivo do Museo Etnográfico.
antropólogos tomando notas
Novamente, ambos antropólogos tomando notas de um informante em uma campanha realizada no ano de 1949. Nota-se os uniformes militares e o porte de armas de fogo.

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