DescargarRégia Mabel da Silva Freitas.
Doutoranda em Difusão do Conhecimento.
Universidade Federal da Bahia, Salvador de Bahía, Brasil.
mabel_freitas@hotmail.com

Recibido: 01/10/2018 – Aceptado: 13/12/2018

 

Resumo: Este artigo objetivou refletir sobre algumas estratégias negras afro-brasileiras de resistência. Como proposta metodológica, optou-se pela revisão bibliográfica para investigar vieses transgressores e formativos, como suicídios, fugas individuais e coletivas, quilombos, escolas, terreiros de candomblé e irmandades, elencar elos culturais que se transformaram em políticos – das incipientes identidades diaspóricas até as revoltas – e destacar mobilizações político-sociais (clubes, imprensas, grupos políticos, teatros e sindicatos). Percebeu-se que cotidianamente os negros sempre lutaram com denodo pela cidadania plena em busca da garantia dos seus direitos civis, políticos e sociais.

Palavras-chave: negros; estratégias de resistência; cidadania.

 

Resumen: Este artículo objetivó reflexionar sobre algunas estrategias negras afrobrasileñas de resistencia. Como propuesta metodológica, se optó por la revisión bibliográfica para investigar vieses transgresores y formativos, como suicidios, fugas individuales y colectivas, quilombos, escuelas, terreros de candomblé y hermandades, elencar los eslabones culturales
que se transformaron en políticos – de las incipientes identidades diaspóricas hasta las revueltas – y apuntar movilizaciones político-sociales (clubes, imprentas, grupos políticos, teatros y sindicatos). Se percibió que cotidianamente los negros siempre lucharon con denuedo por la ciudadanía plena en busca de la garantía de sus derechos civiles, políticos y sociales.

Palabras-clave: negro; estrategias de resistencia; ciudadanía.

 

Abstract: This article has objected reflect about some black afro-brazilian resistance strategies. As a methodological proposal, a bibliographical review was carried out to investigate transgressors and formative biases, such as suicides, individual and collective fugues, quilombos, schools, candomblé terreiro and brotherhoods, and the cultural links that have become politicians – from nascent diasporic identities to riots – and to point out political-social mobilizations (clubs, presses, political groups, theaters and trade unions). It was perceived that black people always fought hard for resourcefulness full citizenship in pursuit of warranty of their civil, political and social rights.

Keywords: blacks; resistance strategies; citizenship.

 

[toc]

Desde o sequestro da sua terra natal, os negros lutaram por melhores condições de vida. O suposto binômio escravismo brando-conformismo negro baseia-se apenas nas falácias da historiografia brasileira (Pinsky, 2000). As maiores virtudes negras são a coragem e a determinação na busca pelo exercício pleno da cidadania – garantia dos direitos civis, políticos e sociais – e o respeito e a valorização pelas suas identidades – processo de identificações que nunca se esgota entre a história individual e a do grupo a que pertence. 

Apesar de toda a violência coercitiva dos colonizadores, principalmente o desrespeito pelos seus sentimentos e suas aspirações, a “propriedade humana semovente” sempre reagiu. Ela lutou, com denodo, diariamente, pelos seus ideais e contra os reveses da sua condição escrava. Dirimindo engenhosamente os inúmeros obstáculos discriminatórios que lhes foram impostos no cenário hegemônico de exclusão que impossibilitava a sua ascensão socioeconômica e político-cultural, os negros foram legítimos atores sociais no seu processo de emancipação. 

Sobre o período seiscentista, com um dinamismo social de caráter transgressor, Gomes (apud Pinsky; Bassanezi, 2005) assevera que nas zonas rurais e urbanas, escravos, africanos e seus descendentes organizaram suas famílias e comunidades; politizando, assim, seu cotidiano. A importância histórica e o conteúdo social da luta contra os reveses da escravidão é um capítulo ainda muito pouco prefaciado da educação básica à superior, apesar de muito importante na historiografia negra brasileira contra a produção escravagista.

As desvantagens((Ausência parcial ou total de oportunidades que dificultam a ascensão social dos indivíduos.)) sociais, econômicas, políticas e culturais foram molas propulsoras para que os negros criassem estratégias de resistência à ideologia eurocêntrica no Brasil.

Ao longo da longa história da escravidão, [os negros] tiveram pouco ou nenhum acesso às leis do Estado. Entretanto não se acomodaram. Inventaram estratégias para negociar no dia-a-dia melhores condições de vida com os senhores, e quando não encontraram espaço para a negociação, e perceberam condições favoráveis, eles se rebelaram individualmente ou se uniram na revolta, fazendo política com uma linguagem própria, ou com a linguagem do branco filtrada por seus interesses (Reis, 1996, p. 35).

Este artigo reflete sobre algumas multifacéticas estratégias negras afro-brasileiras de resistência. Inicialmente, apresentam-se vieses transgressores e formativos, como suicídios, fugas individuais e coletivas, quilombos, escolas, terreiros de candomblé e irmandades. Em seguida, elencam-se os elos culturais que se transformaram em políticos, trasladando entre as incipientes identidades diaspóricas até as revoltas. Por fim, apontam-se mobilizações político-sociais (clubes, imprensas, grupos políticos, teatros e sindicatos).

Entre vieses transgressores e formativos

Apesar de não ser a melhor forma de resistir, o suicídio era uma prática comum com o escopo de libertar-se da subjugação branca. Muitos preferiam a morte à prisão no cativeiro. Na travessia, jogavam-se ao mar e, em terra firme, por envenenamento, enforcamento ou ateando fogo foram alguns dentre os inúmeros meios utilizados por eles para darem cabo das suas vidas. Desgostosos pela perda da liberdade, alguns se entregavam à nostalgia do banzo((“Estado de depressão psicológica que se apossava do africano logo após seu desembarque no Brasil. Geralmente os que caíam nessa situação de nostalgia profunda terminavam morrendo” (Moura, 2004, p. 63).)), culminando em loucura ou morte.

Um aspecto relevante é que os suicídios eram mais frequentes na cidade do que no campo, embora o escravo urbano gozasse de maior autonomia se comparado aos das fazendas (Mattoso, 1990). Além da possibilidade de libertar-se das vicissitudes do cativeiro, a crença na possibilidade de um retorno espiritual através da reencarnação da sua alma também motivava essa prática.

As almas dos mortos, embora “fixadas” também num santuário contíguo ao candomblé, deixam o Brasil depois do enterro para se juntarem à grande legião dos espíritos ancestrais. O suicídio de negros escravos não tinha, muitas vezes, senão essa causa. (…) Testemunho oral dos próprios escravos: “para voltar o mais depressa possível à nossa terra” (Bastide, 2001, p. 73).

Devido à dura e exaurida rotina de trabalho e como uma possibilidade de recobrar o domínio sobre sua vida, as fugas individuais e coletivas foram uma das maiores estratégias de resistência.

Juntamente com o suicídio e o assassinato, a fuga é, na verdade, a expressão violenta da revolta interior do escravo inadaptado. O escravo “em fuga” não escapa somente do seu senhor ou da labuta, elide os problemas de sua vida cotidiana, foge de um meio de vida, da falta de enraizamento no grupo dos escravos e no conjunto da sociedade (Mattoso, 1990, p. 153).

Nem sempre o ato de fugir era solitário. Muitas fugas eram coletivas e planejadas por malungos((Na travessia do além-Atlântico até as terras brasileiras, os negros sequestrados consideravam malungos os seus companheiros de viagem e sofrimento.)) da mesma etnia que possuíam laços culturais. Vale ressaltar também dois aspectos relevantes quanto às fugas: alguns escravos fugiam depois de assassinarem os seus senhores e a quantidade de fugitivos era bem superior às fugitivas – as mulheres fugiam menos devido aos laços familiares que estabeleciam no cativeiro e pela dependência de crianças. Após as fugas, os escravos ou se misturavam com forros e mestiços livres e adquiriam cartas de alforria falsas ou aumentavam a população de patrimônios culturais e territoriais: os quilombos (Mattoso, 1990).

Os chamados quilombos ou mocambos foram legítimos celeiros de trocas sociais. Sejam como espaços de resistência cultural – “visão culturalista” – ou luta de classes sob o escravismo – “visão materialista”, a história dos quilombos e, por conseguinte, o movimento de fugas compõe “um importante capítulo das lutas em torno do acesso à terra – face importante da luta pela cidadania – no Brasil, sua dimensão étnica e as reconstruções culturais relativas” (Gomes apud Pinsky; Bassanezi, 2005, p. 463). Coadunando essas duas visões, Nascimento (1980, p.32) assim os define:

Quilombo é um movimento amplo e permanente que se caracteriza pelas seguintes dimensões: vivência de povos africanos que se recusavam à submissão, à exploração, à violência do sistema colonial e do escravismo; formas associativas que se criavam em florestas de difícil acesso, com defesa e organização sócio-econômico-política própria; sustentação da continuidade africana através de genuínos grupos de resistência política e cultural.

Para Mattoso (1990), o quilombo só queria paz e recorria à violência apenas quando atacado. Quanto à prática da violência em geral, Reis (1996) refuta essa assertiva quando afirma que os aquilombados assaltavam viajantes, roubando dinheiro e sequestrando escravas para aumentar a quantidade de mulheres nos mocambos. Considerados asilos de criminosos, apesar deste movimento social apenas repelir, mas não planejar nenhum tipo de reação revolucionária contra o sistema escravista, os senhores colonizadores ojerizavam qualquer possibilidade de reunião entre mais de um escravo para uma possível tomada de consciência.

O acesso ao saber foi mais uma estratégia negra em prol da emancipação. A política educacional eurocêntrica era explicitamente elitista, preconceituosa e segregadora e oferecia aos negros exclusão ou uma educação precária, baseando-se em três pilares – ler, escrever e contar – que visavam apenas manter a ordem social e, por conseguinte, a subserviência. Pelo viés da educação, é sabido que

as tentativas de aproximação negra com a cultura escolar podem ser conferidas também nos documentos “oficiais” da Instrução Pública, vale dizer, em relatórios de professores e inspetores que mencionam a existência desses alunos (…); nas Listas de Matrículas, em que nomes associados à população negra se repetem em anos diferentes. Referências a alunos negros serem constantes nessa documentação é uma demonstração da busca pela escola por parte dessa população. Depoimentos deixados por pessoas negras que viveram ainda durante a vigência da escravidão ou logo após seu fim também atestam esse interesse, mostrando que apesar das dificuldades enfrentadas – como necessidade de trabalhar para ajudar os pais, discriminação enfrentada por professores e colegas, por exemplo – ainda assim a escola era desejada (Barros apud Romão, 2005, p.87-88).

Havia um discurso completamente discriminatório e excludente de uma suposta falha no processo de aquisição de conhecimentos e no cumprimento das normas sociais. Os escravos africanos, os brasileiros (crioulos) e os forros, todos carregavam o estigma da incapacidade intelectiva e da anomia social. Leite (1993) ratifica essa assertiva, quando afirma que, apesar de o trabalho de catequese acolher indígenas e africanos, colégios recusavam a admissão de moços pardos por julgarem-nos como irrequietos. Eles recorreram ao rei D. Pedro II e finalmente conseguiram estudar.

Paralelo à luta incessante pelo ingresso na educação pública para terem acesso ao saber, os negros também criaram escolas e irmandades, despidas das concepções educacionais com ideologias eurocêntricas que ojerizavam qualquer cultura diferenciada, para promover uma educação de resistência através do ensino mútuo. Muitos negros desenvolveram a função do magistério, ensinando a crianças negras e não negras. Freire (2002) esclarece que, além de pretos e brancos serem colegas nas casas grandes e nas escolas, houve professores negros que alfabetizaram crianças brancas.

Além disso, alguns negros foram gestores das instituições educacionais que fundaram. Antônio Ferreira Cesarino, alfabetizado e liberto, junto com a sua família (esposa e irmãs), em pleno período escravagista, dirigia o Colégio Perseverança ou Cesarino, em Campinas, fundado em 1860, destinado à educação de meninas negras e não negras (Barros apud Romão, 2005). O negro Cosme criou uma escola, no Quilombo da Fazenda Lagoa-Amarela, em Chapadinha, no Maranhão, para o ensino da leitura e escrita (Cunha, 1999). Apesar de ser exceção na história da educação brasileira, é de bom alvitre reverberar o que ainda não consta nos currículos oficiais da educação básica à superior das academias brasileiras.

A celebração de ritos religiosos trazidos do além-Atlântico também foram um elemento unificador da resistência negra. Nos terreiros – instituições construídas nas zonas rurais e urbanas para a prática civil-religiosa do culto às divindades africanas – os negros juntaram os deuses cultuados separadamente em várias regiões do continente africano. Bem lembra Braga (1992, p.17) que eram distintos candomblés, com diferentes matizes e diversas procedências. Houve uma reelaboração de diversas culturas africanas, coadunando os candomblés de inúmeras nações, a saber: ijexá, jeje, ketu, nagô dentre outras.

Os cânticos, os objetos-símbolos, os gestos, a expressão corporal, tudo ressignifica o legado africano. O terreiro é considerado o território sagrado de comunicação com a ancestralidade e, por conseguinte, um espaço privilegiado onde se mantém vivas as identidades cultural e religiosa. São as chamadas sobrevivências africanas no novo mundo com autonomia, não meros transplantes de culturas (Batide, 2001). Sobre a importância dessa força espiritual na formação do cidadão, sabe-se que

o candomblé não representa tão somente um complexo sistema de crenças alimentador do comportamento religioso de seus membros. Ele constitui, na essência, uma comunidade detentora de uma diversificada herança cultural africana que pela sua dinâmica interna é geradora permanente de valores éticos e comportamentais que enriquecem, particularizam e imprimem sua marca no patrimônio cultural do país. E, diferentemente de outras formações religiosas, o candomblé é uma fonte permanente de gestação de valores e de promoção sociocultural que se sobrepõe à dimensão cultural-religiosa strictu sensu, plasmando os contornos da identidade do negro no Brasil (Braga, 1992, p.14).

Além dos terreiros, os negros criaram também as confrarias afro-brasileiras ou irmandades religiosas sob a égide da Igreja Católica. Compostas por homens e mulheres escravos, forros, livres e até brancos, nesses espaços, construídos nos centros urbanos, estabeleciam-se alianças sociais em torno de vivências e práticas religiosas. Nelas, os negros escolhiam os seus padroeiros através de identificações pela cor do santo, por se aproximar do seu interesse ou de algum elemento da sua cultura e/ou da sua religião africana. Os brancos achavam que essa instituição facilitava o processo de ruptura e aculturação.

A irmandade era um espaço de autonomia negra, onde realizavam-se festas, assembleias, eleições, funerais e missas. Nesse locus de assistência mútua, foram construídas identidades sociais bastante significativas. Alguns senhores, por motivos de prestígio social, faziam doações significativas a essas irmandades, todavia os negros não esperavam por esse “ato de bondade” para manterem o capital das suas valiosas confrarias, fazendo suas reservas financeiras. Inclusive, a partir do fim do século XVIII, surgiu uma forma nova de associação entre forros e escravos urbanos: uma caixa de empréstimos gerida pelos africanos (Mattoso, 1990; Reis, 2011).

As irmandades tinham um caráter multifuncional. Além da promoção de ações recreativas, sociais, culturais e assistenciais – inclusive compras de alforrias –, elas oportunizaram a formação de lideranças num espaço, pelo menos potencialmente, de contestação da ordem escravagista; enfim, a movimentação era cívica e política. Foram nessas instituições, alicerçadas numa rede de solidariedade através da ajuda mútua, que os negros construíram suas identidades, codificaram seus discursos de protesto e defenderam-se da subjugação branca (Reis, 2011).

Entre elos culturais e políticos

Do século XVI ao XIX, devido à escravidão atlântica multiétnica, o Brasil tornou-se um cativeiro de inúmeras etnias guerreiras e profícuas. Em África, não havia uma consciência de africanidade, mas étnica. Estrategicamente, os portugueses misturaram nos tumbeiros((Navios negreiros.)) as mais diversas etnias para quebrar as alianças e torná-las vulneráveis. Os colonizadores subestimavam a construção de identidades diaspóricas através de analogias linguísticas, culturais, sociais e religiosas uma vez que os cativos eram considerados néscios e primitivos (Munanga, 1986).

A partir do momento em que eles descobriram que, através de analogias linguísticas, a comunicação era possível, sabiamente, criaram códigos indecifráveis pelos senhores e feitores através de uma língua franca. Quando misturados e traficados até o Brasil, os negros perceberam a existência de elos culturais. Os bacongos, os ambundos e os ovimbundos falantes respectivamente, das línguas quicongo, quimbundo e umbundo, por exemplo, perceberam similaridades linguísticas na estrutura e no vocabulário (Slenes, 1995).

Destarte, transmitiram recados de alerta cifrados e cantaram jongos((Jongos são danças de roda de origem banto também conhecidas como caxambu.)) numa língua franca banto. O vocábulo “malungo” exemplifica essa assertiva uma vez que tem o mesmo significado de “companheiro” (do sofrimento/ da mesma embarcação) para os falantes das línguas supracitadas. Slenes (1995, p. 11) afirma que

a história de “malungo” encapsula o processo pelo qual escravos, falantes de línguas banto diferentes e provindos de diversas etnias, começaram a descobrir-se “irmãos”. E ilustra, também, como a África permaneceu encoberta para os senhores, mesmo nos casos em que estes pareciam compartilhar com os africanos o mesmo campo discursivo.

Através da linguagem metafórica e/ou cultista (jogo de palavras/ significados), os malungos das mais diversas etnias ressignificavam o seu mundo linguístico-cultural e, concomitantemente, criaram uma práxis defensiva. Stein (apud Slenes, 1995) acrescenta que, durante os trabalhos nas fazendas, os escravos vigilantes, fingindo olhar para o sol, “condimentavam as suas palavras” e/ou intercalavam palavras africanas no vocabulário português, como por exemplo a frase ‘Ngoma vem’, que avisava aos seus parceiros a chegada do colonizador com o escopo de que rapidamente começassem a trabalhar esforçadamente.

Além dos bantos, outras identidades diaspóricas, como a jeje e a iorubá (nagô), também construíram teias de significados linguísticos, culturais, sociais e, principalmente, religiosos. Os sinais nos rostos dos iorubás, por exemplo, eram interpretados pelos brancos como meras cicatrizes na pele; para o grupo, entretanto, elas representavam marcas de pertencimento numa ordem social e cultural. Slenes (1995) esclarece que, para a elite branca, a única identidade criada por africanos só seria baseada na “barbárie” que compartilhavam pelas suas origens; acreditando, assim, que a união entre os cativos não solidificaria paradigmas culturais complexos.

Para surpresa da hegemonia vigente, os negros transformaram esses elos culturais em políticos, lutaram veementemente com estratégias de resistência e criaram várias instituições que resistiam a todo processo de aculturação imposto pelos colonizadores. A participação bélica nos movimentos insurrecionais((Para efeito deste trabalho, os movimentos insurrecionais são nomeados pela constelação semântica dos seguintes vocábulos: Levante, Rebelião e Revolta.)) através da mobilização das massas negra (escrava, forra e liberta) e não negra foi mais uma estratégia de resistência utilizada. Desde as primeiras travessias marítimas, essa rebeldia se fazia presente.

O primeiro cenário de revoltas foram os tumbeiros. Muitos cativos amotinaram-se e assassinaram os tripulantes. Não tendo uma organização prévia, todavia, os motins foram sempre sufocados pelos traficantes que puniam severamente os rebelados, prendendo, matando e expondo-os mutilados ou decapitados para inibir a ação das demais cargas humanas. Moura (1988, p. 162) esclarece:

Os escravos, ao serem transportados para o Brasil, algumas vezes se revoltavam durante a viagem, amotinando-se nos navios que os conduziam. Não era fácil tal tipo de revolta, visto que as guarnições desses navios, sempre alertas, ao menor indício de sublevação puniam drasticamente os escravos. Mas, apesar de todas as medidas acauteladoras tomadas pelos traficantes, muitas vezes a carga dos navios negreiros se insurgia.

Sobre o árduo processo bélico em prol do histórico 13 de maio de 1888, inúmeras revoltas marcaram essa luta contra os reveses escravagistas, como as baianas: Inconfidência Baiana, também conhecida como Conjuração dos Alfaiates, Primeira Revolução Social Brasileira, Sedição dos Mulatos ou Revolta dos Búzios (1798), Revolta dos Haussás (1807), Revolta de Cachoeira (1814), o Levante dos Malês (1835) entre outras. É mister também que sejam citadas as rebeliões regenciais nas quais se mesclou aos seus objetivos discursos e práticas político-raciais: Cabanagem (1835), Farroupilha (1835), Sabinada (1837) e Balaiada (1838) (Pinsky; Bassanezi, 2005).

Enquanto os negros planejavam e agiam, o medo da perda dos colonizadores crescia. Para camuflar a ação desses movimentos intra/interétnico, os agentes do governo censuravam as informações sobre os planos de rebelião dos escravos para que não houvesse adeptos e para não apavorar mais ainda a população branca (Slenes, 1995). Além disso, para combater as reuniões de escravos, os brancos substituíram o descanso dominical por uma tarde livre em qualquer dia da semana; dividindo, portanto, os escravos em grupos (Mattoso, 1990).

A partir do século XVII, a vigilância individual e coletiva e a repressão militar fortificaram-se como uma tentativa de coagir a rebeldia nas ruas. A qualquer indício de insurreição, eram aplicados castigos severos em participantes e até mesmo em quaisquer suspeitos de participação nesses movimentos. Até porque se começou a concluir que as aglutinações e conspirações que culminavam nas rebeliões escravas aconteciam nos momentos em que o relaxamento do controle coletivo e individual convergiam, como em feriados religiosos (Reis, 1989).

Essas retaliações, todavia, não inibiram a articulação dos rebelados que, a todo momento, organizavam-se para conseguir a tão almejada libertação. Os cativos continuavam lutando contra os reveses da sua condição escrava. Neste momento, a elite branca se deu conta de que as alianças culturais estabelecidas, através da construção das identidades diaspóricas, tornaram-se elos políticos. Infelizmente (ou felizmente!?!), ela desconhecia seus cativos e não tinha parâmetro para prever as consequências desses movimentos de resistência.

A superioridade numérica e a identidade étnica foram elementos importantes para a mobilização e organização desses levantes. Muitos guerreiros unidos por laços étnicos traziam a experiência africana em lutas políticas e religiosas (Reis, 1996). A Revoltas dos Haussás (1807) e o Levante dos Malês (1835) ratificam essa assertiva ainda que tenham tido a participação de outras etnias. Vale ressaltar, entretanto, que, além da repressão severa do colonizador, esse mesmo fator contribuía para o insucesso desses movimentos de revolta, que era a ausência de coesão e também a unidade em sua luta contra o poder (Mattoso, 1990).

Muitos negros não esqueciam disputas internas e as oposições entre os crioulos e africanos, mestiços e negros, forros negros e mulatos livres, dificultando a mobilização de todo o corpo social dos escravos (Mattoso, 1990). Reis (1989, p. 104) exemplifica com o Levante dos Malês:

A hostilidade entre crioulos e africanos comprometem decisivamente a rebelião. Ela dividiu os escravos em duas partes irreconciliáveis e obviamente enfraqueceu sua capacidade de enfrentamento. Isto coloca questões importantes a respeito da estrutura e relações sociais na Bahia escravocrata.

A Inconfidência Baiana, Conjuração dos Alfaiates, Primeira Revolução Social Brasileira, Sedição dos Mulatos ou Revolta dos Búzios, em 1798, teve à frente homens pardos livres e libertos, principalmente artesãos e soldados, e também a participação de escravos, incluindo em seu programa o fim da escravidão (Reis, 1996). Moura (1988) corrobora ao afirmar que, além de os escravos terem sido uma força popular atuante, nos documentos e nas declarações dos principais implicados o conteúdo abolicionista do movimento foi colocado com ênfase.

A Revolta dos Haussás (1807) deu início ao primeiro ciclo de lutas em terras baianas. Apesar da incipiência bélica, eles estruturaram o movimento, designando um capitão em cada bairro e nomeando um agente (chamado Embaixador) e, estrategicamente, escolheram o dia da procissão de Corpus Christi para assunção do poder, já que os seus senhores estariam entretidos no ato. A Revolta de Cachoeira (1814) – vila importante da província – levou os senhores de engenhos recorrerem às autoridades pela reincidência em anos posteriores (Moura, 1988).

Muitos rebelados se reuniram secreta e regularmente para traçarem seus planos estratégicos como no Levante dos Malês (1835). Essa política rebelde teve uma lógica própria, a saber: a cidade de Salvador oferecia as melhores condições para sediar essa Revolta pelo maior número de libertos africanos que ofereceram suas casas como ponto para as reuniões de planejamento, depósitos de armas, esconderijo e local de interação cultural, social, religiosa e até econômica (Reis, 1989). Assim, essa Revolta não foi mera

eclosão violenta e espetacular, apenas surgida de um incidente qualquer e sem plano preestabelecido, mas uma revolta planejada nos seus detalhes, precedida de todo um período organizativo – fase obscura de aliciamento e preparação – sem a qual não se poderá compreender as proporções que alcançou em uma das principais províncias do Império (Moura, 1988, p. 174).

Ainda no âmbito estratégico político-social, Reis (1989, p. 111) nos ensina que os malês, ou nagôs, como eram chamados aqui

1) delimitaram fronteiras de definição de seus membros; 2) tentaram reduzir a dissidência dentro do grupo, com o objetivo de aumentar sua eficiência no confronto com os adversários; 3) organizaram e coordenaram recursos sociais e materiais; e 4) desenvolveram novas relações com outros grupos que pudessem servir de aliados.

Quanto às regenciais, vale destacar a abrangência territorial e geopolítica destes quatro levantes brasileiros que tiveram participam ativa da pretidão. Na Balaiada (1838), os negros engrossaram o contingente e atuaram como guerrilheiros no interior da província. Na Cabanagem (1835), os cabanos (pessoas marginalizadas, dentre elas escravos e forros) conseguiram ocupar o poder da província do Pará. Na Sabinada (1837), logo depois da derrota dos malês, esse movimento negro e popular liderado pelo médico Francisco Sabino almejou descentralizar o poder político (Moura, 1988).

Sobre a participação escrava na Revolução Farroupilha (1835), Moura (1988, p. 97) reverbera que

nenhum outro movimento foi tão enfática e ostensivamente antiescravista como o chefiado por Bento Gonçalves. A participação do escravo tinha um caráter racional, lógico. Não havia a contradição existente nos demais acontecimentos quando eles participavam das lutas por ordem dos seus senhores. (…) Além do mais, como não pesava muito fortemente na economia da região conflagrada, o escravo se transformou em soldado rapidamente, adaptando as suas técnicas de combate aprendidas no Continente Negro às lutas da campanha. As próprias autoridades farroupilhas se encarregavam de emancipá-lo.

Ao transmutar seus elos culturais em políticos, os insurretos reverberaram na resistência bélica que urgia a troca do adjetivo bestiais por estrategistas e, mesmo sendo derrotados na maioria das vezes, os rebeldes marcaram limites para seus opressores. Indubitavelmente, esses subversivos da ordem escravocrata inspiram o povo negro brasileiro pela contínua luta em prol da efetiva cidadania plena (Reis, 1996).

Entre mobilizações político-sociais

A Abolição da Escravatura, em 13 de maio de 1888, foi a culminância do árduo e constante processo de lutas dos malungos através dos já supracitados movimentos intra/ interétnicos. A busca incessante desse povo guerreiro e profícuo pela emancipação não pode ser restrita ao respaldo apenas jurídico promovido pela Lei Áurea. Infelizmente, o sistema capitalista brasileiro não integrou cultural, econômica e socialmente os libertos, imergindo-os no pauperismo.

Contra essa discriminação e marginalização e na tentativa de sua possibilidade emancipatória, os negros continuaram criando várias instituições de resistência despidas das concepções eurocêntricas que ojerizavam qualquer cultura diferenciada. No período republicano, empreenderam, dinamicamente, diversas estratégias de luta a favor da população negra (Domingues, 2011), ampliando e solidificando politicamente o Movimento Negro, aqui entendido como

(…) todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa física e cultural do negro], fundadas e promovidas por pretos e negros. (…) Entidades religiosas [como terreiros de candomblé, por exemplo], assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas [como “clubes de negros”], artísticas [como os inúmeros grupos de dança, capoeira, teatro, poesia], culturais [como os diversos “centros de pesquisa”] e políticas [como o Movimento Negro Unificado]; e ações de mobilização política, de protesto anti-discriminatório, de aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’ – toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui movimento negro (Santos apud Domingues, 2011, p.102).

Os herdeiros dos estigmas escravistas criaram movimentos de mobilização racial negra através de dezenas de grupos (grêmios, clubes ou associações) em alguns estados brasileiros (Domingues, 2011). Todos esses grupos, eminentemente de caráter educativo, visavam não só à inclusão social, mas também a valorização cultural. Algumas classes de trabalhadores negros – portuários, ferroviários e ensacadores – formaram até entidades sindicais (Cunha Júnior, 1992). Apesar da sua existência antes de 1888, após a Abolição, o número de clubes negros((Organizações que tinham um projeto de melhoria de vida e de oportunidades para as populações negras. Prova deste esforço estava no fato de que estas entidades procuravam formar escolas de ensino primário ou profissionalizante, organizar grupos de teatros e bibliotecas (Cunha Junior, 1992, p. 71).)) aumentou significativamente, a saber:

em São Paulo, apareceram o Clube 13 de Maio dos Homens Pretos (1902), o Centro Literário dos Homens de Cor (1903), a Sociedade Propugnadora de 13 de Maio (1906), o Centro Cultural Henrique Dias (1908), A sociedade União Cívica dos Homens de cor (1915), a Associação Protetora dos Brasileiros Pretos (1917); no Rio de Janeiro, o Centro da Federação dos Homens de cor; em Pelotas/RS, a Sociedade Progresso da Raça Africana (1891); em Lages/SC, o Centro Cívico Cruz e Souza (1918). Em São Paulo, a agremiação negra mais antiga desse período foi o Clube 28 de Setembro, constituído em 1897. As maiores delas foram os Grupos Dramático e Recreativo Kosmos e o Centro Cívico Palmares fundados em 1908 e 1926, respectivamente (Domingues, 2011, p. 103).

Surgiu também, no início do século XIX, uma produção literária negra ideológica e bastante ativista denominada imprensa negra: jornais elaborados e publicados por negros para tratar de suas questões. Um meio de comunicação, educação e protesto do/para o povo negro, essa produção literária negra enfocava

as mais diversas mazelas que afetavam a população negra no âmbito do trabalho, da habitação, da educação e da saúde, tornando-se uma tribuna privilegiada para se pensar em soluções concretas para o problema do racismo na sociedade brasileira. Além disso, as páginas desses periódicos constituíram veículos de denúncia do regime de “segregação racial” que incidia em várias cidades do país, impedindo o negro de ingressar ou frequentar determinados hotéis, clubes, cinemas, teatros, restaurantes, orfanatos, estabelecimentos comerciais e religiosos, além de algumas escolas, ruas e praças públicas. Nesta etapa, o movimento negro organizado era desprovido de caráter explicitamente político, com um programa definido e projeto ideológico mais amplo (Domingues, 2011, p. 105).

Os jornais O Exemplo (1892), A Pátria (1899), O Baluarte (1903), Alvorada (1907), O Combate (1912), O Menelick (1915), União, O Bandeirante, O Alfinete, A Liberdade (1918), A Sentinela (1920), O Getulino (1923), O Clarim da Alvorada (1924), Raça (1935), Alvorada (1945), O Novo Horizonte (1946), Redenção (1950), A Voz da Negritude (1952), Notícias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), Níger (1960), Árvore das Palavras, O Quadro, Biluga (1974), Nagô (1975), Tição, SINBA (1977), Jornegro, O Saci, Abertura (1978), Vissungo, Pixaim (1979), Quilombo (1980), Nêgo (1981), Africus (1982), Nizinga (1984), as revistas Senzala (1946) e Ébano (1980) entre outros compuseram essa imprensa negra (Domingues, 2011).

Apenas em 1931, com a criação da Frente Negra Brasileira (FNB), esse caráter explicitamente político ecoou. Ela foi um movimento social que, pela sua representatividade político-social, tornou-se um partido político, ampliando as reivindicações políticas do Centro Cívico Palmares. Envolvia nacionalidade, emprego, cidadania e política de imigração com um protagonismo negro bastante mobilizador.  O seu objetivo não se restringia a incluir o tema do racismo na pauta política, mas promover melhores condições de vida, saúde, educação e emprego. Considerada um projeto mais direto e definido de intervenção e mobilização política, almejava expectativas mais amplas sobre cidadania e participação (Gomes, 2005).

Domingues (2011, p. 106) acrescenta:

Na primeira metade do século XX, a FNB foi a mais importante entidade negra do país. Com “delegações” – espécie de filiais – e grupos homônimos em diversos estados (Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia), arregimentou milhares de “pessoas de cor”, conseguindo converter o Movimento Negro Brasileiro em movimento de massa. Pelas estimativas de um de seus dirigentes, a FNB chegou a superar os 20 mil associados.  A entidade desenvolveu um considerável nível de organização, mantendo escola, grupo musical e teatral, time de futebol, departamento jurídico, além de oferecer serviço médico e odontológico, cursos de formação política, de artes e ofícios, assim como publicar um jornal, o A Voz da Raça.

Seja por dissidência de aspectos específicos ou para dar continuidade à sua proposta ideológica na luta por políticas de inclusão para os herdeiros dos estigmas escravistas, muitos outros grupos surgiram após a criação da Frente Negra Brasileira. Dentre eles, Frente Negra Socialista, o Clube Negro de Cultura Social (1932), Legião Negra (1934), União dos Homens de Cor (1943), Associação do Negro Brasileiro (1945), Frente Negra Trabalhista (1954), União Cultural dos Homens de Cor (1962), Movimento Negro Unificado (1978) entre outras (Domingues, 2011). Todos almejavam substituir o paradigma da anomia pela isonomia social.

O Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), mais tarde denominado Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR) e depois simplificado para Movimento Negro Unificado (MNU) já

defendia [em seu Programa de Ação de 1982] as seguintes reivindicações “mínimas”: desmistificação da democracia racial brasileira; organização política da população negra; transformação do Movimento Negro em movimento de massas; formação de um amplo leque de alianças na luta contra o racismo e a exploração do trabalhador; organização para enfrentar a violência policial; organização nos sindicatos e partidos políticos; luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos currículos escolares, bem como a busca pelo apoio internacional contra o racismo no país (Domingues, 2011, p. 114).

Participante de atos públicos e reuniões de fundação do MNU, Abdias do Nascimento, um dos fundadores da Frente Negra Brasileira, ator, poeta, ativista social e ex-político (Secretário de Defesa da Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Rio de Janeiro, Deputado e Senador da República), idealizou uma legítima estratégia de resistência: utilizar a linguagem teatral como instrumento político-educativo. Assim, contra a visão preconceituosa do pseudodesajustamento do negro à sociedade, ele criou, em 13 de outubro de 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro (TEN) com os intelectuais Aguinaldo Camargo, Antônio Guerreiro Ramos, Geraldo Campos de Oliveira, José Pompílio da Hora, Ruth de Souza e Sebastião Rodrigues Alves, entre outros.

A proposta inicial era formar um grupo teatral apenas de atores negros, todavia o TEN adquiriu um caráter mais amplo, realizando inúmeras outras atividades, a saber: publicou o jornal Quilombo, ofereceu curso de alfabetização, de corte e costura; fundou o Instituto Nacional do Negro, o Museu do Negro; organizou o I Congresso do Negro Brasileiro; promoveu a eleição da Rainha da Mulata e da Boneca de Pixe; realizou o concurso de artes plásticas que teve como tema Cristo Negro, com repercussão na opinião pública (Nascimento apud Domingues, 2011).

Abdias do Nascimento, artista-militante precursor do genuíno Teatro Negro brasileiro, quebrou o paradigma do teatro no Brasil da época e desenvolveu uma dramaturgia negra. Antes dessa companhia, na área teatral, a presença dos negros só era lícita na época em que o teatro era, em termos de valor social, considerado marginal, por volta dos meados do século XIX. Os palcos só acolhiam os atores brancos que, quando era preciso, tornavam-se azeviches. Aos poucos negros que atuavam, cabiam sempre os papéis estereotipados (o espertalhão, a sensual…), ligados sempre à subserviência e/ou a comicidade.

Abdias, ícone brasileiro na luta pela igualdade racial e direitos humanos, escreveu, atuou, militou e semeou o discurso político, lutando com denodo pelos direitos do negro brasileiro. Ele conseguiu valorizar o ator negro, proporcionando formação pedagógica e especializada, criando um espaço no mercado de trabalho e abrindo um cenário de militância; enfim, oportunizando a construção de uma cidadania que contemplou os elementos civil, político e social.

O Teatro Experimental do Negro coadunou os vieses cultural e político, valorizando a cultura afro-brasileira e denunciando o racismo através da arte. O grupo almejou resgatar os valores da pessoa e da cultura negro-africana, aviltados por uma sociedade dominante que, desde os tempos coloniais, lastreava-se em conceitos pseudocientíficos que promulgava a inferioridade da raça negra. O TEN se propôs a valorizar socialmente o negro brasileiro, através da educação, cultura e arte (Douxami, 2001; Nascimento, 2009).

Ao apresentar as performances, o TEN unia teatro, dança, música e poesia, abordando várias temáticas como o amor inter-racial, o candomblé, a contribuição negra na formação da cultura nacional etc. Revezando entre eles nas funções de dirigir e atuar, os criadores encenaram várias produções nacionais, como Filhos de santo (José Pinho), Pedro Mico (Antônio Callado), Terras do Sem Fim (Jorge Amado), entre outras. Esse grupo carioca encenou também textos de autores internacionais, como O Imperador Jones, O moleque sonhador e Onde está marcada a cruz, de Eugene O’Neill, Calígula de Albert Camus entre outros (Nascimento, 2009).

Preocupando-se com a cidadania do ator, o TEN oferecia cursos de alfabetização e cultura geral e também de interpretação; enfim, propunha-se a valorizar o negro pelos vieses da educação, cultura e arte. Para Abdias, fundador e diretor desse grupo teatral, política e arte não são polos dicotômicos, mas elementos que coadunam:

ao criar o Teatro Experimental Negro, queríamos afirmar e transformar valores que vinham da África através de representações cênicas de ordem política. Para mim, a política é totalmente implicada em qualquer atividade cultural. E as atividades políticas, também, não são independentes da cultura e da arte, não se pode separar um do outro (Nascimento apud Douxami, 2001, p.321).

O TEN denunciou formas sutis e ostensivas de racismo, resistiu à opressão cultural branca e oportunizou mecanismos de apoio psicológico para os negros; revisando, assim, conceitos e atitudes visando à libertação espiritual e social negra como um esforço coletivo já pensando em futuras gerações (Nascimento, 2009). Mesmo com a sua extinção no período da ditadura militar em 1964, novos grupos teatrais seguiram seus passos. Num breve traslado pelas regiões brasileiras, é possível identificar seus discípulos: Grupo Bambarê – Arte e Cultura Negra (Norte), Bando de Teatro Olodum (Nordeste), Companhia Teatral Zumbi dos Palmares (Centro-oeste), Os Crespos (Sudeste) e Grupo Teatral Caixa Preta (Sul) dentre inúmeros outros.

Destarte, o teatro também é mais uma ferramenta da atuação negra militante: um veículo de ação política que promove um debate político-social sobre as questões étnico-raciais em cena. Num país em que se discursa sobre as falácias étnicas da democracia racial e da fábula das três raças e onde não há discursos mas práticas racistas, urgem produções artísticas cheias de força e poder, calcadas em discursos de identidade que deem voz e vez ao movimento social negro.

Considerações finais

Os malungos – aguerridos, perspicazes e resilientes – sempre lutaram com denodo pelo exercício da cidadania plena. Desde a travessia nos tumbeiros do além-Atlântico até as terras brasileiras, eles criaram inúmeras estratégias de resistência contra a subjugação imposta pelos colonizadores em busca da reversão da sua condição escrava. Libertos e excluídos, foram protagonistas das suas próprias histórias com o escopo da ascensão social, econômica e política. 

No período da pré-Abolição, reagiram através de suicídios, fugas individuais e coletivas, criação de quilombos, escolas, irmandades, revoltas escravas etc. Pós-Abolição, devido à permanente discriminação e marginalização social, a luta contra as desigualdades sociorraciais, a desproteção e o desamparo dos libertos contra os riscos sociais continuaram; assim, foi indispensável a criação de novas estratégias, primando a possibilidade emancipatória, como clubes, imprensas, grupos políticos, teatros e sindicatos dentre outras mobilizações político-sociais.

Todas as supracitadas estratégias negras afro-brasileiras de resistência dilataram os conceitos de identidade e equidade, evidenciando que o movimento negro contemporâneo herda uma incrível tradição de luta. Parafraseando o reflexivo cantor de reggae negro baiano Edson Gomes, sabemos, entretanto, que a luta não acabou e nem acabará até que a liberdade e o respeito pelos direitos civis, políticos e sociais dos negros consigam efetivamente raiar.

Referências

Bastide, R. (2001). O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras.

Braga, J. (1992). Candomblé: força e resistência. Revista Afro-Ásia. n. 15. p. 13-17.

Cunha, P. M. C. da. (1999). Da senzala à sala de aula: como o negro chegou à escola. In: Oliveira, I. (cord.) Relações raciais no Brasil: alguns determinantes. Niterói: Intertexto.

Cunha Júnior, H. (1992). Textos para o movimento negro. São Paulo, Edicon.

Domingues, P. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07.pdf. Acesso em: 18.04.11.

Douxami, C. (2001). Teatro Negro: a realidade de um sonho sem sono. Revista Afro-Ásia, Salvador, v. 26, n. 25, p. 313-363.

Freire, G. (2000). Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olímpio.

Gomes, F. (2005). Negros e política (1888 – 1937). Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR Editor.

Leite, S. (1993). Breve história da Companhia de Jesus no Brasil, 1549-1760. Braga, Portugal: Livraria A.I.

Mattoso, K. M. de Queirós. (1990). Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense.

Moura, C. (2004). Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp.

______. (1998). Rebeliões da senzala. Porto Alegre: Mercado Aberto.

Munanga, K. (1986). Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática.

Nascimento, A. do. (1980). O Quilombismo. Petrópolis: Vozes.

______. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n50/a19v1850.pdf. Acessado em: 10 nov. 2009.

Pinsky, J. (2000). A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto.

______; Pinsky, C (orgs.). (2005). História da Cidadania. São Paulo: Contexto.

Reis, J. J. Identidade e diversidades étnicas no tempo da escravidão. Disponível em http://blig.ig.com.br/estudoscoloniais/files/2009/03/artigo-joao-jose-reis.pdf. Acesso em: 15.04.11.

______. Quilombos e Revoltas escravas no Brasil – “Nós achamos em campo a tratar da liberdade”. Revista USP, São Paulo, p. 14-39, Dezembro 1995/ Fevereiro 1996.

______; Silva, E. (1989). Negociação e Conflito – a Resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras.

Romão, J. (org.). (2005). História da Educação do Negro e outras histórias. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.

Silva, A. R. Santiago da; Silva, R. Souza da. A História do Negro na educação: entre fatos, ações e desafios. Revista FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 24, p. 193-204, jul/dez, 2005.

Slenes, R. Malungu, ngoma vem: África encoberta e descoberta no Brasil. In: Cadernos do Museu de Escravatura, Luanda, ano 1, n. 1, nov. 1995.

¡SUSCRÍBETE A NUESTRO BOLETÍN!

Te prometemos por la justicia social que nunca te enviaremos spam ni cederemos tus datos.

Lee nuestra política de privacidad para más información.

Deja una respuesta

Tu dirección de correo electrónico no será publicada. Los campos obligatorios están marcados con *