DescargarMaurício Pedro da Silva.
Universidade Nove de Julho, São Paulo, Brasil.
maurisil@gmail.com

Recibido: 30/10/2017 – Aceptado: 08/04/2018

 

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a chamada literatura marginal, observando aspectos de suas gênese e formação, bem como elementos que a tornam componente de um movimento cultural de afirmação identitária e resistência política, localizado sobretudo nas periferias dos grandes centros urbanos.

Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea; literatura marginal; identidade; periferia.

 

Abstract: The objective of this article is to analyze the so called marginal literature, observing aspects of its genesis and formation, as well as elements that make it a component of a cultural movement of identity affirmation and political resistance, located mainly in the peripheries of the great urban centers.

Keywords: Contemporary Brazilian literature; marginal literature; identity; periphery.

 

Introdução

A consideração da literatura a partir de uma ótica centrada no conceito de diversidade impõe, desde o início, pelo menos duas ações por parte do pesquisador: uma revisão ampla dos paradigmas do conhecimento humano que devem dar sustentação teórica à prática analítica da literatura, estabelecendo novos protocolos de apropriação, interpretação e julgamento da produção ficcional; e um deslocamento epistemológico que passa do foro textual como centro do discurso estético para a consideração de outras instâncias conformadoras e legitimadoras da obra literária. Trata-se, em outros termos de uma tentativa de ultrapassar os limites regidos pela natureza endógena do trabalho analítico para uma perspectiva exógena, em que componentes como o leitor, os meios de comunicação, as condições sociais de produção do texto ficcional etc. adquiram validade plena no exercício de interpretação da cultura contemporânea.

Uma atitude pertinente, neste sentido, é promover a utilização de estratégias interdisciplinares e intertextuais, de modo a abranger o texto literário em suas várias possibilidades de relações culturais e estéticas, isto é, na sua própria diversidade. Com efeito, a partir do avanço de teorias pautadas numa perspectiva «pós-moderna» da realidade cultural contemporânea, conceitos como os de sujeito e centro – fundamentais para a constituição de um saber unidirecional – cedem espaço a noções mais operatórias, como as de multiculturalismo, hibridismo cultural, colonialidade, estudos pós-coloniais e outros, os quais procuram traduzir, mais de acordo com uma realidade múltipla e diversificada, as formações culturais relacionadas a um mundo «globalizado».

A ideia de globalização, aliás, torna-se, neste sentido, a tônica do empreendimento analítico na perspectiva da diversidade cultural. Se, como quer Jameson (2002, p. 115) em seu estudo sobre a relação entre globalização e cultura atual,

a própria esfera da cultura se expandiu, coincidindo com a sociedade de consumo de tal modo que o cultural já não se limita às suas formas anteriores, tradicionais ou experimentais, mas é consumido a cada momento da vida cotidiana, nas compras, nas atividades profissionais, nas várias formas de lazer televisuais, na produção para o mercado e no consumo desses produtos, ou seja, em todos os pormenores do cotidiano,

é preciso, então, levar em consideração as transformações por que têm passado não apenas a atual produção ficcional, mas também as mais recentes teorias da literatura, as quais procuram dar conta do novo olhar que se impõe, das novas práticas de leitura, dos novos modos de relacionamento a que estão sujeitos o produtor cultural e seu produto. Segundo Olinto (1996, p. 47), trata-se da

tentativa de substituir uma prática acadêmica – a interpretação do texto – por uma abordagem interdisciplinar do fenômeno literário situado e contextualizado – marcando o deslocamento do interesse pelo sentido da obra para a descrição das estruturas responsáveis pela produção de sentidos.

A partir da década de 80, a literatura brasileira incorpora, com maior ou menor grau de evidência e de modo mais sistemático, temas e motivos literários relativos à questão da diversidade, resultando em obras que procuraram dar voz – no âmbito da representação estética – aos diversos extratos de nossa sociedade. Desse modo, observa-se uma profusão de narrativas em que o negro, a mulher, o marginal, o homossexual, enfim uma variada gama de representantes de camadas sociais tradicionalmente vitimadas por processos discriminatórios e excludentes passam a ocupar um espaço de destaque no cenário literário nacional. Talvez nenhuma outra tendência desse complexo cenário incorpore de modo tão sensível essa realidade do que aquela a que aqui estamos chamando de literatura marginal.

Alguns pressupostos estético-sociais da literatura marginal

Evidentemente, não se deve confundir o que estamos entendendo, neste preciso contexto, por marginalidade com aquele epíteto que qualifica a literatura produzida por volta dos anos 70, designando, sobretudo, a chamada poesia marginal. Em suma, são duas as diferenças que se percebem entre os “antigos marginais” e os “novos marginais” da literatura: primeiro, parece-nos mais apropriado considerar os autores que produziram por volta das décadas de 1960-1970 como escritores automarginalizados, no sentido específico de que eram, de certo modo, rejeitados por um mercado editorial que, no Brasil, começava a ver o livro como uma mercadoria; o escritor, como um trabalhador que passava do estágio artesanal para o industrial; e o leitor, como um típico consumidor. Segundo, eram “marginais” – e mesmo assim parcialmente, sobretudo se pensarmos na produção poética, mais afeita aos experimentalismos do que ao confronto ideológico (Hungria e D’Elia, 2011) – do ponto de vista político, já que alguns escreviam sob censura e, portanto, sem acesso aos principais canais de divulgação de seus textos e sem condições plenas de veiculação de suas ideias. Em suma, a marginalidade literária das décadas referidas ou se resumia a figuras realmente marginalizadas em todos os sentidos pelo sistema (como é o caso de um Plínio Marcos) ou a uma parcela da prosa de ficção que entrava em franco embate com o poder ditatorial constituído (como era o caso de um Renato Tapajós).

De 70 para 90, o conceito de marginalidade na literatura migrou, num primeiro momento, das condições de produção do autor para sua condição social. Assim, “marginal” deixa de ser aquele autor que – alijado dos meios de produção e veiculação de sua produção literária – buscava suportes e instrumentos de divulgação alternativos para tornar-se uma marca daqueles que vivem um processo de exclusão social, uma exclusão que se dá por meio de sua desterritorização (trata-se de autores excluídos das regiões centrais das grandes cidades, passando a viver em favelas e bairros periféricos) e sua desidentificação (já que são, não raras vezes, figuras que experienciam um processo violento de perda de sua identidade).

Portanto, o marginal da ficção do anos 90 é uma espécie de simulacro do cidadão, e a literatura marginal, por extensão, é aquele discurso que dá voz a essa sua condição social e ontológica. Como lembra Regina Dalcastagné (2003), ao se referir à presença do espaço citadino na ficção atual, a segregação parece ser a característica principal daqueles territórios em que “são todos de algum modo excluídos das ruas e contornos urbanos que se delineiam nos textos contemporâneos» (p. 24).

Desse modo, pode-se dizer que, embora haja aproximações circunstanciais entre a literatura marginal que prevaleceu nos anos 70 e a que vigora nos 90 – suas relações com o universo da contracultura pode ser um desses diálogos possíveis (Perez e Przybylski, 2016), as diferenças são de fundo e de forma: do ponto de vista temático, assiste-se a uma relativa despolitização das narrativas atuais (no sentido estrito da perspectiva político-partidário prevalente há duas décadas), o que lhe concedia um inegável perfil engajado; no que diz respeito à linguagem, opta-se por um trabalho mais intenso de estilização da narrativa, explorando recursos estéticos até então pouco valorizados pela expressão militante.

Não se pode esquecer, contudo, neste quadro histórico do conceito de marginalidade na produção literária mais recente, do fato de que aquilo que chamamos, presentemente, de literatura marginal não é algo que tenha surgido no vácuo de uma tradição – ao contrário, desde o princípio buscou-se definir uma espécie de gênese estética que tomou alguns autores como autênticos precursores da referida tendência, seja um precursor isolado como Lima Barreto, nas primeiras décadas do século XX; seja, na segunda metade do mesmo século, um conjunto de autores que, reunidos, perfazem uma espécie de «cânone» marginal da contemporaneidade, como Antônio Fragra, Rubem Fonseca, João Antonio, Plínio Marcos, Carolina Maria de Jesus e outros (Nascimento, 2009).

Há, contudo, uma manifestação cultural que, de modo direto ou indireto, encontra-se nas origens dessa literatura, estabelecendo com ela relações incoercíveis, sobre a qual vale à pena refletir com mais vagar: trata-se do movimento estético cultural, de forte apelo educacional, denominado hip hop, que tem no rap um de seus eixos mais vigorosamente vinculados às manifestações literárias periféricas marginalizadas.

Com efeito, desde suas origens, o hip hop esteve, de modo direto ou indireto, vinculado não somente a ações político-culturais, mas também a atividades educacionais, forjadas no seio de comunidades via de regra socialmente marginalizadas. No Brasil, essa manifestação cultural surge especialmente sediada no contexto na periferia e vinculada ao contingente afrodescendente ali presente (Rocha; Domenich; Casseano, 2001).

Além disso, não se pode desprezar seu potencial político, responsável por instaurar, no contexto aqui exposto, o protagonismo de seus agentes. Como lembra Andréia Moassab (2011, p. 121),

O papel desempenhado pelo hip hop é fundamental no desenho da resistência que está em toda parte, pois está difuso por diversas periferias, levando uma mensagem para a juventude pobre e negra, mas também abrindo os caminhos para que essa mesma juventude seja produtora da mensagem, construindo seu próprio conhecimento e sendo sujeito da sua história.

Composto por quatro “elementos” fundamentais, o hip hop tem no rap, como dissemos acima, uma robusta e atuante forma de expressão estética, visceralmente ligada à música (Teperman, 2015), mas também à expressão literária, em especial à oralidade poética. Assim, como manifestação lítero-musical «própria» da periferia, expressa-se por meio da atuação dos rappers, que procuram falar

em nome de uma geração sem voz, periférica, estigmatizada, denunciando de maneira crua a realidade em que vivem, seus problemas locais, e expressam as sua revolta contra a ordem estabelecida e um ‘destino’ de contínua exclusão, que parece predeterminado. (ABRAMOVAY, 1999, p. 135)

O que mais nos interessa aqui, contudo, é seu estatuto literário, particularmente seus vínculos com a literatura marginal, na origem da qual o rap se encontra de modo inquestionável. Discutir, portanto, esse seu estatuto é considerá-lo como expressão que se insere num determinado sistema literário, em que autor, obra e público perfazem uma lógica de produção e recepção da literatura, ou melhor, do artefato literário (seja ele um livro, um panfleto, uma gravação, uma performance, um blog), o qual se estrutura a partir de uma linguagem específica, a linguagem literária, com seus efeitos prosódicos, suas figuras de linguagem, com o emprego de léxico distinto, processos estilização do discurso e estratégias de veiculação do conteúdo das obras (Rocha, 2003).

Contemporâneo como a literatura marginal de que estamos tratando, o rap se inscreve, assim, na atual historiografia literária brasileira, como expressão de uma poética “pós-modernista” (Hutcheon, 1991), que não prescinde do intercruzamento dos discursos erudito e popular, das linguagens poética e musical, dos gêneros ficcionais e referenciais, enfim de uma gama infinita de manifestações discursivas distintas, na medida em que revela/pode revelar, nos meandros de sua tessitura estética, uma verdadeira “cultura híbrida transnacional” (Nascimento, 2013, p. 346). E como no caso do hip hop em geral, também ele, o rap, contém um evidente repertório político que se exprime como crítica e resistência ao poder constituído, geralmente a partir de experiências concretamente vivenciadas em contextos de marginalização social, econômica e cultural:

as tensões das relações sociais se encarnam na linguagem rap e projetam a produção cultural como uma memória seletiva de aspectos do trabalho, da política, dos costumes, dos símbolos e valores do emaranhado que é a sociedade contemporânea. É possível pensar essas músicas como portadoras de elementos constituintes das constantes mudanças sociais, como um campo de luta em que as disputas de domínio e afirmação social se fazem presentes. São representações que reconstroem (ou constroem em articulação com) elementos/acontecimentos socialmente vividos. Em suma, um processo de reconfiguração da experiência que estreita os laços entre cultura e vida social. (Camargos, 2015, p. 130)

Nenhuma das observações aqui feitas, contudo, revela-se suficiente para depreendermos o verdadeiro significado – conceitualmente falando – da literatura marginal. Nesse sentido, faz-se necessário uma reflexão mais qualificada da ideia de marginalidade no contexto específico da literatura, reflexão que podemos alcançar levando em consideração uma dupla relação: a relação entre as categorias de inclusão e exclusão e a relação entre as categorias de ficção e realidade.

No que compete á primeira – a relação entre as categorias de inclusão e exclusão – pode-se partir do princípio de que, quando falamos de literatura marginal, não devemos perder de vista, antes de tudo, o conceito referencial do vocábulo «marginalidade», que pressupõe, conceitualmente falando, um centro em torno do qual o marginal gravita, assumindo, por sua vez, sua condição periférica. Numa época em que se impõe como um dos fundamentos da identidade cultural a noção de descentramento, de deslocamento do centro e, consequentemente, da profusão de múltiplos centros que interagem de modo complexo, falar em marginalidade é perceber que, para além de um conceito homogêneo, deve-se pensar em termos plurais, mais precisamente em marginalidades.

Na abordagem da marginalidade literária, portanto, é preciso distinguir conceitos que compartilham do mesmo campo semântico do vocábulo-matriz «marginal», uma vez que a carência de explicitação das diferenças de seus cognatos leva, incontornavelmente, a mal entendidos conceituais. Dessa forma, não se deve confundir, por exemplo, a expressão literária produzida por um escritor socialmente marginalizado – que pode ou não transpor para a literatura sua experiência social – com aquela produzida por um escritor esteticamente marginalizado – que, necessariamente, estará criando uma literatura desviante do modelo estético adotado como um padrão, motivo pelo qual se situará à sua margem. Embora possamos considerar, para efeito didático, o “modelar” como central e o “desviante” como periférico, ambos os casos não se excluem necessariamente, podendo antes se completar, além de incorporar outras variantes, sobretudo se introduzirmos nessa mesma equação os modalizadores “estético” e “social”.

Pensemos, no âmbito da literatura brasileira, em dois exemplos práticos: marginalizado em sua experiência social e pessoal, Lima Barreto logrou criar uma obra em que essa experiência está presente não apenas como motivo literário, mas como alguém que foi relegado ao ostracismo sociocultural; além disso, forjou sua literatura sob a égide de uma expressão estética intrinsecamente marginal, na medida em que lançou mão de recursos literários avessos ao modelo “padrão” vigente em sua época, particularmente o academicismo de inspiração parnasiana.

Lima Barreto seria, nesse sentido, um típico exemplo de escritor social e esteticamente marginalizado, estando, a um só tempo, no centro da marginalidade literária e na periferia da literatura brasileira, esta última constituída a partir de fenômenos e elementos legitimadores de determinada prática autoral e leitora. Outro é o caso de Machado de Assis, autor que viveu na mesma época de Lima Barreto: completamente assimilado pelo establishment cultural do período, compactuou plenamente com a ética academicista – contribuindo, inclusive, para o impedimento da entrada de Lima Barreto na Academia Brasileira de Letras -, embora esteticamente revelava-se absolutamente marginal, escrevendo contos e romances de lastro “psicanalítico” num período de prevalência do realismo-naturalismo; promovendo a desconstrução da estrutura ficcional num ambiente marcado pela linearidade estrutural na prosa de ficção, levou ao limite a criatividade formal e temática no âmbito literário nacional, num período de reconhecida formalização estética.

Nesse sentido, trata-se de um exemplo típico de escritor não marginalizado socialmente, mas cuja literatura pode ser qualificada como esteticamente marginal. Esses dois exemplos nos levam a inferir que se não houver uma tentativa de rigorosa definição do que se entende, num determinado contexto e para uma determinada situação, por literatura marginal, esse sintagma tornar-se-á absolutamente improdutivo como mecanismo de análise literária.

Portanto, para se pensar a literatura marginal hoje, faz-se necessário, de início, prover esse conceito de um processo de ressemantização que leve em consideração não apenas seu sentido mais evidentemente concreto – o de um fazer literário que contempla a percepção da realidade (literatura) a partir da ótica dos socialmente excluídos (marginal) -, mas, sobretudo, as possibilidades de representação, nessa literatura, de uma realidade que se apresenta instável e multifacetada.

Isso pode ser imediatamente pensado ao se considerar a segunda relação aqui proposta – aquela entre as categorias de ficção e realidade. Com efeito, não se pode negar, em se pensando nessa relação, um tratamento diferenciado, dado, pelos representantes da literatura marginal a que aqui estamos nos referindo, tanto ao estatuto ficcional da obra literária quanto à representação da realidade nela presente.

Os autores dessa literatura marginal exercitam, antes de tudo, a incorporação de flagrantes de uma realidade divergente, isto é, fora dos padrões e modelos formais de comportamento e sociabilidade com os quais a literatura, durante muito tempo, esteve acostumada a lidar. Trata-se de uma tendência que ora se coloca em franca oposição a pretensos centros artificialmente criados (uma vez que se trata de representação), ora se coloca como o próprio centro, em torno do qual gravitam outras infindáveis margens. Essa é, aliás, uma discussão que passa pela própria noção de representação da realidade pelo fazer literário, não se esgotando nos limites da discussão acerca da marginalidade literária.

Assim, como afirma Anatol Rosenfeld (1973) acerca do romance moderno, também na ficção contemporânea notam-se transformações semelhantes àquelas ocorridas na pintura moderna, sobretudo no que diz respeito à desconstrução da linearidade temporal, que, especificamente nas artes plásticas, corresponde à eliminação ou ilusão do espaço. A questão, portanto, é que também o romance atual nega o compromisso com o realismo tradicional, que vê o tempo de modo linear. Isso não quer dizer – ao contrário! – que a ficção contemporânea perca em referencialidade o que ganha em ficcionalidade: ambas as categorias funcionam – na atualidade e, em especial, na literatura marginal – de modo organicamente articulado: como afirma Iam Watt (1982, p. 42), mais uma vez tratando do romance moderno, mas cujo argumento se aplica bem ao caso aqui proposto, o gênero romanesco na modernidade busca ser uma visão circunstancial da vida, alcançada por meio de uma técnica que pode ser denominada realismo formal:

[L]es différentes formes littéraires imitent la réalité à des degrés très divers; et le réalisme formel du roman permet une imitation de l’expérience individuelle saisie dans son environnement spatio-temporel, plus immédiate que ne le font les autres formes littéraires.

Não sem razão, Schollhammer (2009) afirma, em sua obra sobre a ficção brasileira contemporânea, que alguns autores, sem se apegarem excessivamente às técnicas da descrição verossímil e da objetividade, estariam mais preocupados em retratar a realidade social brasileira, em geral do ponto de vista dos periféricos e marginais. Instaura-se, assim, no âmbito da literatura marginal, a exemplo do que parece ter acontecido com o romance moderno, uma espécie de realismo (sub)urbano, que acaba por romper, de modo definitivo, com a linearidade do realismo tout court.

A literatura marginal brasileira contemporânea

Analisando, no âmbito do pensamento social brasileiro, a tradição de ensaios críticos sobre nossa formação social – tradição que ou considera a formação da identidade brasileira como incompleta (o Brasil seria visto pela perspectiva da falta ou do fracasso) ou valoriza a formação brasileira como propícia à negociação das diferenças (o Brasil seria visto como fundamentalmente híbrido) -, João Cezar Rocha (2004) afirma que tanto a perspectiva crítica quanto a apologética são visões unilaterais, procurando desenvolver um modelo que busca abarcar ambas as abordagens, a que dá o nome de dialética da marginalidade, a qual se assentaria numa ordem conflitiva (substituindo a ordem relacional da dialética da malandragem). Essa distinção parece-nos bem apropriada como ponto de partida para uma reflexão mais sistemática e aprofundada acerca do que aqui estamos entendendo como literatura marginal, sobretudo pela instituição, na correlação entre a prática literária e a sociedade na qual ela se conforma, de uma dinâmica estético-social marcada pelo conflito.

Desse modo, tratando especificamente da literatura marginal, há que se considerar, quando se fala nesse conjunto específico de nossa produção literária, pelo menos duas perspectivas, a partir das quais a equação literatura e marginalidade torna-se mais operacional: a primeira é a perspectiva conceitual; a segunda, a perspectiva historiográfica.

Do ponto de vista conceitual, destaca-se a noção de marginal/marginalidade, a partir de pontos de vista diferentes, consoante o campo de atuação e conhecimento que se adote: o que é marginalidade na ótica da psicologia, da antropologia, da sociologia, da filosofia etc.?; e, complementarmente, o que cada uma dessas áreas do conhecimento humano pode oferecer como denominador comum para uma definição operacional do conceito? Do ponto de vista historiográfico, discute-se a noção de marginal/marginalidade na perspectiva da historiografia literária, refazendo percursos, desfazendo equívocos, reconstruindo parâmetros crítico-interpretativos. Poder-se-ia dizer, neste último sentido, que a ideia de marginal/marginalidade está presente, didaticamente falando, em pelo menos quatro momentos de nossa tradição literária:

a) na segunda metade do século XIX, representada pela dicotomia formal x informal, presente tanto na obra romântica de um Manuel Antônio de Almeida quanto na realista de um Aluízio Azevedo. Com efeito, em Memórias de um Sargento de Milícias, percebe-se uma condição de semi-integração das personagens nas esferas sociais, o que faz do marginal – como a crítica já apontou (Cândido, 1970) – um malandro. O mesmo pode-se dizer de O Cortiço, em que personagens transitam entre as esferas formais (por exemplo, o sobrado de Miranda) e informais (o cortiço de João Romão).

b) na primeira metade do século XX, representada pela dicotomia centro x periferia, presente, de forma atenuada, pela intervenção de ideologias diversas, na prosa de um Euclides da Cunha ou um Monteiro Lobato e, de forma mais incisiva e autêntica, na produção de um Lima Barreto ou um Graciliano Ramos. De fato, em Triste Fim de Policarpo Quaresma as personagens são, em geral, seres deslocados não apenas social, mas também psicologicamente, da mesma maneira que em Vidas Secas. Aqui, nesta fase de nossa história literária, o conceito de marginalidade torna-se fundamental para a composição da narrativa, sendo, de fato, seu elemento estruturador. As personagens são, portanto, desintegradas da ordem social.

c) na segunda metade do século XX, representada pela dicotomia legal x ilegal, em que personagens são a-integradas nas esferas da sociedade. É o que ocorre com a ficção de um Rubem Fonseca, um João Antônio ou um Plínio Marcos, em que há uma profusão de personagens socialmente marginais, não incorporados em nenhum plano da sociedade. Nesses casos, a ideia de marginalidade adquire sua plenitude conceitual, na medida em que representa a exata noção de estar à margem dos ditames da legalidade.

d) na primeira metade do século XXI, representada pela dicotomia inclusão x exclusão, com suas personagens visceralmente anti-integradas nas esferas da sociedade. Aqui, podem-se distinguir pelo menos três subdivisões de tendências estético-literárias que, por força das circunstâncias, lograram assumir para si a condição plena de marginalidade: a literatura do marginal (como a literatura prisional ou testemunhal); a literatura sobre o marginal (como a literatura “reportagem” ou suburbana); e a literatura do e sobre o marginalizado (como a literatura periférica ou autobiográfica). Dos três tipos aqui citados, pode-se afirmar que o último – a literatura do e sobre o marginalizado – revela-se mais autenticamente «marginal», no sentido de poder ser considerada a única com legitimidade plena para representar a e se autorrepresentar literariamente na realidade narrada – constituindo-se em narrativas produzidas por vozes de dentro da realidade marginal (Dalcastagné, 2008) -, além de se constituir num verdadeiro movimento de dimensões política e sociocultural, com intersecções com a música (como o rap), com inserções em processos de educação não formal (como os saraus), com projetos de produção alternativa (como as edições artesanais) etc.

Contudo, para que possamos analisar com propriedade a chamada literatura marginal ou periférica, convém, de início, conciliar essas duas perspectivas acima expostas (a perspectiva conceitual e a perspectiva historiográfica) com dois conceitos que, embora distintos, contribuem para uma melhor compreensão dessa literatura como fenômeno sociocultural: o conceito de literatura menor, formulado por Deleuze & Gattari; e o conceito de cultura popular, de Herbert Gans.

Embora ambas as denominações sugiram, por seu teor semântico, um «produto» negativo (no sentido de que a literatura marginal ou periférica poderia ser compreendida como algo inferior: ora menor, ora popular), elas, substancialmente, se reportam a essa literatura como uma instância social e cultural de natureza positiva: o primeiro, destacando seu caráter político, vinculado, ademais, a projetos de mobilização e mudança sociais; o segundo, enfatizando seu caráter estético, como resultado de um gosto específico, que ora se opõe, ora se aproxima do modelo hegemônico de alta cultura, este, sim, socialmente prestigiado pelo establishment intelectual.

Em seu estudo sobre a produção ficcional de Franz Kafka, Deleuze e Guattari (2014) formulam o conceito de literatura menor: segundo os autores, uma literatura menor teria como características: a) uma língua afetada por um forte coeficiente de desterritorialização, na medida em que, como afirmam, «uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior» (p. 35); b) o fato de tudo nela ser político, já que «seu espaço exíguo faz que cada caso individual seja imediatamente ligado à política» (p. 36); c) o fato de tudo, nela, tomar um valor coletivo, no sentido de que se trata de uma literatura «que se encontra encarregada positivamente deste papel e desta função de enunciação coletiva, e mesmo revolucionária; é a literatura que produz uma solidariedade ativa» (p. 37).

É nesse contexto que podemos entender, logo de início, a produção literária marginal como uma literatura menor, na acepção de Deleuze e Guattari, já que não é difícil verificar nela tanto a ideia de uma desterritorialização da língua quanto a de uma ligação do individual no imediato-político e o agenciamento coletivo da enunciação.

Aproximação semelhante pode ser feita com a tese do sociólogo alemão radicado nos Estados Unidos Herbert Gans: segundo seu clássico Cultura popular e alta cultura, de 1974, há uma tendência muito marcante em se criticar a cultura popular (e, nesse mesmo diapasão, a cultura de massas), vendo nela uma manifestação de uma cultura socialmente menos importante e de menor valor estético, posição marcadamente ideológica, na medida em que se assenta tanto numa concepção elitista de cultura quanto no combate à perda de privilégios culturais e políticos. Daí, completa o autor, a necessidade de se considerar a ideia de uma cultura de gosto e de um público de gosto, que, sem se afirmarem como sistemas de valor coesos, a primeira, e grupos organizados, o segundo, apresentam peculiaridades capazes de unificá-los segundo determinadas especificidades (podendo-se, por exemplo, falar em cultura jovem, cultura negra ou culturas étnicas); além disso, completa o autor, culturas e públicos de gosto não se configuram como grupos independentes, mas fazem parte de uma estrutura de gosto geral, que pertence a uma estrutura social mais ampla, como se verifica na relação que estabelecem com a política.

Ora, a produção literária marginal, tal como a estamos entendendo aqui, seja por apresentar determinadas peculiaridades estético-sociais próprias da cultura popular, seja por se vincular a contexto específicos – como o político, já citado aqui – que acabam por definir seus contornos práticos, seja ainda por se inserir no espaço de conflito entre a alta cultura e a cultura popular, sofrendo reiterados ataques da primeira, pode, sem exageros, ser associada ao que Herbert Gans considera como uma típica cultura de gosto. Assim, ora se afastando, ora se aproximando da alta cultura e da cultura de massas, mas mantendo inegáveis contatos com ambas, a literatura marginal insere-se num sistema maior de produção, veiculação e recepção cultural que acaba por identificá-la não apenas como própria de um contexto social e um espaço geopolítico determinado, mas também com um público específico, atendendo suas especificidades estéticas.

Tudo isso sugere uma divisão da literatura marginal – para melhor apreendê-la e melhor compreender sua complexidade – nos seguintes termos: como um substrato contextual, em que se destaca a categoria de marginalidade e que se subdivide em três dimensões: uma dimensão social (relacionada à ideia de “pobreza”), uma dimensão geopolítica (relacionada à ideia de “periferia”) e uma dimensão étnica (relacionada à ideia de “afrodescendência”); como sistema literário amplificado, em que se destaca a categoria de contra-hegemonia e que se subdivide em dois universos: o universo da educação não formal, relacionado a uma ação social comunitária, e o universo da própria produção literária, vinculado ao que se pode entender como a “essência” da literatura marginal; como pragmática literária, em que se destaca a categoria de deslocamento e que se subdivide em três níveis: o nível linguístico/formal, a partir do qual se instaura uma semântica do dissenso, o nível ideológico/conteudístico, que se relaciona a uma estética do enfrentamento, e o nível social, resultando em microssistemas divergentes.

Como substrato contextual, visceralmente vinculado à ideia de marginalidade, num sentido relacional do termo, isto é, como conceito que se instaura em oposição a uma suposta centralidade, a literatura marginal encontra seu sentido numa primeira dimensão sociocultural, a que podemos chamar de dimensão social, à qual, por sua vez, relaciona-se de forma imediata a ideia de pobreza: trata-se de uma dimensão que nasce da própria condição social da maior parte – senão de todos! – os seus cultores, tradicionalmente inseridos num contexto marcado pela precariedade social e pelas dificuldades de sobrevivência.

É, ainda, no âmbito dessa dimensão que podemos melhor compreender uma das distinções fundamentais entre aquela tendência a que se convencionou chamar de literatura marginal, nos anos 60/70, e o que chamamos, no presente dos anos 90/00, de literatura marginal: a condição social dos autores que produzem sob essa chancela releva-se logo de início, fenômeno que se reproduz na própria essência do texto literário, manifestando-se tanto em seu conteúdo quanto em sua forma – no plano do conteúdo, a atual produção literária revela, em relação ao primeiro grupo, um substrato mais social do que político, no sentido estrito que ambos os conceitos podem ter; no plano da forma, destaca-se, na produção contemporânea, sempre em comparação com o primeiro grupo, uma linguagem mais referencial do que simbólica.

Uma segunda dimensão, a que podemos chamar de geopolítica e que tem no conceito de periferia uma de suas ideias mais produtivas, faz saltar aos olhos algumas das mais relevantes peculiaridades da tendência literária aqui reportada: trata-se, em última instância, de uma produção que pode ser melhor pensada em termos de um deslocamento espacial/ambiental, responsável pela geração de uma infinidade de deslocamentos subsequentes, como que reafirmando a noção de uma literatura descentrada, em que o híbrido, a descontinuidade e a fragmentação são categorias permeáveis e interagentes, originando uma literatura em que o espaço suburbano revela-se a tônica da narrativa ficcional. Semelhante fenômeno gera, necessariamente, uma tensão de fundo que acaba por marcar, indelevelmente, toda a produção literária dessa geração de autores “marginais”, tensão expressa na fala de Canclini (2012, p. 71), ao se reportar à produção artística de nosso tempo:

[C]onsagram-se como superiores bairros, objetos e saberes gerados pelos grupos hegemônicos, porque eles contam com a informação e a formação necessárias para compreendê-los e apreciá-los e, portanto, para controlá-los melhor. Historiadores, arqueólogos e políticos da cultura definem quais são os bens superiores que merecem ser conservados. Reproduzem, assim, os privilégios daqueles que, em cada época, dispuseram de meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio, para imprimir a esses bens um valor mais elevado.

Logicamente, a questão é mais complexa do que essa afirmação pode sugerir, sendo necessário, entre outras coisas, tratar desse assunto na sua correlação com estratégias em empoderamento da cultura periférica, situação em que a literatura assume uma posição de centralidade (numa aparente contradição, seria manifestação central num contexto geopolítico periférico!), isto é, como principal elemento mediador das relações socioculturais.

Isso tudo, sem nos reportarmos a uma forma de manifestação da tensão periferia-centro, como aquela que diz respeito ao próprio modo de produção do que, com muita propriedade, Alejandro Reyes (2013, p. 15) chamou de literatura de autorrepresentação:

[S]ão obras que se colocam intencionalmente fora do cânone literário: pela temática, pelo lugar de onde se fala desta temática, pela utilização de uma linguagem híbrida carregada da oralidade popular, pelos meios de produção e distribuição, que, muitas vezes consistem em publicações artesanais e/ou independentes e venda de mão em mão nas ruas, bares e saraus, assim como a veiculação por meio de blogs e páginas de internet […] espaços de politização, debate e criação artística, que somam cada vez mais participantes e que servem como pontos aglutinadores para outras iniciativas políticas e culturais periféricas.

Finalmente, do ponto de vista de uma dimensão étnica, em que se destaca como fato consagrado a prevalência da afrodescendência, pode-se dizer que, do ponto de vista de sua configuração, a literatura marginal afirma-se como uma espécie de rede de atuação literária que engloba várias esferas de manifestações estéticas singulares, como as esferas da literatura negra, historicamente excluídas do cânone literário.

Assim, para uma parte do sistema literário brasileiro – e, não por mero acaso, a parte considerada representativa da cultura “nacional”, exatamente por seu caráter hegemônico e central -, o “marginal”, especialmente o “negro-marginal” (aquele que Mário Augusto Silva (2013) considera um autor/narrador autorreferenciado negro e periférico) desnaturaliza o cânone literário, revelando, já em sua essência desintegradora e periférica, uma espécie de fratura do sistema literário historicamente consagrado.

Dessa forma, e passando para o segundo modo como a literatura marginal se afirma no presente, é como um sistema literário amplificado que podemos compreendê-la dentro de uma dinâmica contra-hegemônica, a qual se subdivide, como sugerimos acima, em dois universos: o de uma educação não formal, relacionado a uma ação social comunitária; o da produção literária propriamente dita.

Sobre o primeiro desses universos, que na essência de sua prática social não prescinde de um fundo sentido comunitário, não custa lembrar que, inserida num contexto mais amplo, a que poderíamos chamar de contexto educacional, essa concepção de literatura pressupõe uma relação com as inúmeras possibilidades de compreensão do processo de alfabetização (e, mais do que isso, de letramento), sem prejuízo de sua autonomia como manifestação estética. Nesse sentido, a literatura marginal desempenharia o mesmo papel que o alfabetismo radical desempenha na sociedade: o de servir de instrumento de transformação da realidade, numa acepção clássica de Paulo Freire, didaticamente exposta por Magda Soares (2003, p. 35):

[N]a perspectiva radical, ‘revolucionária’, as habilidades de leitura e escrita não são vistas como ‘neutras’, habilidades a serem usadas em práticas sociais, quando necessário, mas são vistas como um conjunto de práticas socialmente construídas envolvendo o ler e o escrever, configuradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições, padrões de poder presentes no contexto social.

Assumir um papel de não neutralidade diante da realidade social – e, em especial, diante do universo regido pelos princípios da ação educacional – está na essência da prática literária marginal, uma vez que o conceito que lhe serve de alicerce é justamente o de compartilhamento, no sentido de uma interação que se volta, necessariamente, para a intervenção social.

Com efeito, esse mesmo princípio encontra-se na base do que aqui denominamos educação não formal, definida por Maria da Glória Gohn (2007) como um conjunto de práticas que se desenvolvem fora dos muros da escola, vinculando-se às lutas contra a desigualdade social, mas, especialmente, como “processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivos cotidianos” (p. 16). Logicamente, ao falarmos de educação não formal como processo, estamos, na verdade, querendo nos referir, num sentido mais epistemológico do termo, aos princípios e fundamentos da chamada educação popular, que, ao se refletir na atividade cultural de um determinado grupo social, emerge justamente como um procedimento marcado essencialmente pelo sentido de compartilhamento coletivo, como bem definem Carlos Brandão e Raiane Assumpção (2009): “a educação popular não é uma atividade pedagógica para, mas um trabalho coletivo em si mesmo, ou seja, é o momento em que a vivência do saber compartilhado cria a experiência do poder compartilhado” (p. 35).

Em resumo, é na interação entre processos educativos que se afirmam fora de eixos institucionais consagrados e a produção estética que se situa nos espaços limítrofes da periferia que se consolida o princípio das experiências marcadas pela “ideia de compartilhamento e de construção horizontal do saber” (Costa e Agustini, 2014).

Em relação ao segundo universo desse sistema literário amplificado, o da produção literária especificamente, podemos dizer que a literatura marginal afirma-se, antes de tudo, pela busca consciente da referencialidade (Ferreira, 2004), isto é, tem na ligação como o exterior, com a realidade circundante, procurando exprimi-la de modo “realista”, um de seus mais importantes – e, por isso mesmo, mais recorrentes – postulados estéticos.

Esse fato, embora diga respeito mais à “essência” da literatura marginal do que às condições de sua produção, é de fundamental importância para compreendermos duas tendências relevantes dela: uma tendência à não institucionalização dessa produção literária, que se traduz na opção por modos “alternativos” de criação, veiculação e consumo de seus produtos finais; uma tendência à recusa de modos tradicionais de construção de um saber literário, representados por algumas instâncias legitimadoras desse mesmo saber, como a escola, a imprensa, as academias etc.

Como lembra Érica Nascimento (2009, p. 123), algumas das propriedades aqui assinaladas relacionam-se diretamente à condição marginal dessa produção, na medida em que a própria denominação assumida por alguns de seus cultuadores (a de literatura marginal):

[R]elaciona-se, simultaneamente, com a situação de marginalidade (social, editorial ou jurídica) vivenciada e com as características internas dos seus produtos literários (seja porque eles destoam do padrão da língua culta ou porque visam expressar o que é peculiar aos espaços tidos como marginais, especialmente com relação à periferia). A junção das categorias literatura e marginalidade presta-se, ainda, ao esforço de edificar uma atuação cultural e está relacionada a um conjunto de experiências e elaborações compartilhadas sobre marginalidade e periferia, bem como a um vínculo estabelecido entre criação literária e realidade social.

Aproximar os universos da literatura e da marginalidade ou, numa clave mais sociológica, do produto literário com a realidade periférica, é levar em consideração uma série de fatores que, ao estabelecerem relações diretas e indiretas com eles, promovem uma verdadeira rede de interação complexa, a que já se chamou uma vez de sistema literário, o qual, aliás, não dispensa a noção de tradição (Cândido, 1981).

Um desses fatores – por sinal, um dos mais complexos e que tem relação com essa ideia de tradição – é o que se convencionou chamar de cânone. Com efeito, não se pode discutir literatura marginal sem levar em consideração seu lugar na tradição e na historiografia literária brasileiras, portanto, sem discutir, a fundo, a questão do cânone.

Há, a princípio, muitas maneiras de se constituir um cânone literário, a depender de circunstâncias as mais diversas, que vão dos aportes críticos adotados para avaliação de uma obra literária a questões de natureza social propriamente dita, entre muitas outras. Mas há, também, pelo menos duas maneiras de exclusão de obras e autores, na constituição desse mesmo cânone: por meio de um processo de invisibilidade estratégica ou por meio de um processo de esquecimento voluntário. Ambas as maneiras têm suas implicações e, obviamente, suas consequências. Em relação à primeira, sobretudo se considerarmos o contexto brasileiro, cabe falar mais em termos de apagamento; em relação ao segundo, considerando o mesmo contexto, cumpre falar ainda em termos de omissão. Trata-se, é verdade, de uma complexidade de fundo conceitual, mas com inquestionáveis repercussões nas práticas de configuração de um determinado cânone literário: como comprova o caso da própria literatura marginal, a um só tempo “apagada” e “omitida” das plataformas historiográficas de nossa literatura, não propriamente pela ausência de um eu-enunciador marginal que se manifesta como marcas de enunciação presentes no texto produzido, mas, simplesmente, pelo não reconhecimento, em nenhum nível do discurso, desse mesmo eu-enunciador, o que pode se dar tanto por um processo de invisibilidade estratégica quanto por um processo de esquecimento voluntário.

Ainda que alguns críticos propugnem por uma historiografia literária dotada de um «discurso fundamentalmente plural, heterogêneo, representado por múltiplos sujeitos, que dê conta da diversidade dos universos representados», afirmando-se, portanto, como «construção de uma história democrática da produção literária” e resultando no “questionamento [do] cânone [oficial], sobretudo com seus vieses excludentes e elitistas» (Coutinho, 2013, p. 86-87), não é isso que se verifica, na prática, no caso específico da literatura marginal, prevalecendo, antes, aquele condicionamento ideológico, responsável pelo estabelecimento do cânone literário brasileiro que se fundamenta na periodização e que naturaliza as exclusões, de que nos fala Guinzburg (2012).

Daí a importância, ao se tratar da produção literária marginal contemporânea no Brasil, de se refletir sobre o lugar que esse sujeito marginalizado ocupa em nosso sistema literário amplificado.

De fato, ao procurarmos explicitar alguns modos de constituição/atuação de um conjunto de práticas e saberes literários originalmente vinculados ao lócus periférico e a uma episteme marginal, uma das primeiras questões a serem discutidas, de modo geral, é o lugar de onde possíveis sujeitos dessas práticas e saberes literários falam. O mote do sujeito como instância complexa da modernidade ocidental é próprio da filosofia foucaultiana, mas também foi apropriado pela análise do discurso, desenvolvida pelos estudos de Michel Pêcheux (Gadet e Hak, 1993).

Contudo, quando associamos essa categoria ao universo da produção literária periférico-marginal, ela certamente adquire outra dinâmica: passa a se referir às (im)possibilidades de o sujeito periférico assumir sua condição plena de sujeito de seu próprio discurso e, por meio dele, manifestar-se. Dadas as condições «especiais» em que esse sujeito se encontra e como ele se apresenta, é preciso que atentemos para uma série de fatores que, de modo deliberadamente pejorativo, não só condicionam esse discurso, mas sobretudo o delimitam, de tal forma que, por um lado, ele se manifeste como mistificação – um discurso, por assim dizer, inserido na dinâmica do atual capitalismo neoliberal e, dessa forma, tornado parte de uma lógica consumista – e, por outro lado, ele se apresente como simulação – um discurso que, embora aparentemente autônomo, guarda em si mesmo traços de uma perspectiva forânea, sendo, antes, a expressão de uma ideologia de classe alheia à realidade de onde ele pretensamente partiu.

Disso resulta a condição de subalternidade que, em geral, a palavra do sujeito periférico adquire involuntariamente. É nesse sentido que Gayatri Spivak (2012) propôs seu célebre questionamento, acerca da forma como o sujeito do terceiro mundo é representado no discurso ocidental, perguntando-se: pode o subalterno falar? A resposta que oferece a esse questionamento é, a um só tempo, «clássica» e inovadora: na verdade, o subalterno, além de não ter direito à sua própria fala, estaria sendo falado por outro; estaria, em resumo, sendo construído como sujeito colonial, cuja palavra é – no nosso ponto de vista – ora mistificada, ora (dis)simulada.

A condição do sujeito subalternizado foi melhor estudada, no contexto brasileiro, por Paulo Freire (2010), ao instituir a categoria de oprimido. Em sua célebre obra Pedagogia do oprimido, o ilustre educador pernambucano defende a ideia de que somente o próprio oprimido poderá entender o significado mais profundo e amplo da opressão e da sociedade opressora, buscando uma libertação que só se alcança pela práxis da busca, constituindo, assim, mais do que uma «pedagogia», uma verdadeira «teoria» do oprimido.

Fugir a essa condição de oprimido, completa o autor, pressupõe uma prática libertária que passa, antes, pelo reconhecimento de sua condição de oprimido e, na sequência, de uma intenção de libertação tanto do próprio oprimido (de sua condição de oprimido) quanto de seu opressor (de sua condição de opressor). Assim, por meio desse «parto doloroso», que é o processo de libertação, supera-se a contradição opressor-oprimido, num processo histórico e dialético de “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (p. 42).

Uma das questões mais relevantes no que aqui chamamos de teoria do oprimido freiriana é a proposição que faz em relação ao próprio processo de libertação do oprimido, chamando a atenção para os riscos de se assumir uma atitude fatalista no percurso do processo, de se equivocar com uma atração pelo opressor, de se deixar imbuir por uma autodesvalia, atitudes que, no âmbito da produção literária marginal – a única, a nosso ver, que assumiu para si o papel «libertário» de que nos fala o educador brasileiro – tem sido sistematicamente combatida. Isso se deve, em grande parte, ao fato de se tratar de uma «revolução» (social, comportamental, ideológica etc.) promovida de dentro, isto é, pelos próprios oprimidos, com os próprios oprimidos, para os próprios oprimidos, resultado, evidentemente, de um crescente processo de conscientização, o qual, ainda nas palavras de Paulo Freire (2001, p. 30), implica que

ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica.

Ao assumir o seu próprio discurso (e como sujeito de seu discurso), o autor de literatura marginal não assume apenas uma palavra antes sequestrada e silenciada, uma fala subalternizada, mas toda uma atitude que está mais para a noção de arquivo foucaultiana – conceito que, para além da palavra e do corpus linguístico, constitui «o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados» (Díaz, 2012) – do que de expressão literária propriamente dita.

Incorpora-se, assim, um dizer cuja carga ideológica não dispensa – ao contrário, incorpora como resultado de uma «tradição» – um conjunto de experiências forjado no cotidiano das periferias dos grandes centros urbanos, construído nos interstícios das sociedades «organizadas» e adquirido por meio de uma vivência-no-limite, própria daquelas populações que se situam nas franjas das classes sociais.

Por isso, ao lançar mão de sua voz e de sua palavra, o escritor marginal não deixa de, ainda numa acepção foucaultiana do termo – para quem «o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta” (Foucault, 2008, p. 10.) -, apoderar-se de seu próprio discurso. Essa é uma atitude que, grosso modo, insere-se num conjunto de ações que, para além da literatura, penetra a fundo o universo da educação, instituindo uma ruptura em fórmulas e estruturas padronizadas de práticas e discursos. Trata-se, em suma, de abordar esse assunto na sua correlação com estratégias em empoderamento da cultura periférica, tendo a literatura como elemento central e mediador das relações sociais e interpessoais.

As relações entre literatura e sociedade nunca foram simples, adquirindo, com o passar do tempo, complexidade cada vez maior. O escritor marginal se insere nesse contexto de forma, por assim dizer, oblíqua: não tendo sido convidado para o banquete das civilizações, introduz-se nele de modo imperativo, sem se imiscuir de suas «funções», sem renegar o seu papel, mas também sem abrir mão de seus princípios éticos e estéticos, base em que sua prática «socioliterária» se sustenta; o escritor periférico-marginal, assim, entra sem pedir licença e, pela sua própria voz, toma a palavra que lhe é de direito, tornando-se sujeito de seu discurso, numa atitude que não prescinde das ideias de afirmação identitária, militância político-social e prática comunitária. Nas palavras de Paulo Patrocínio (2013, p. 12):

[S]ujeitos periféricos que romperam a silenciosa posição de objeto para entrarem na cena literária utilizando a literatura enquanto veículo de um discurso político formado no desejo de autoafirmação […] para tanto, cobram para si a égide de marginal enquanto forma identitária, compondo um grupo heterogêneo no tocante ao exercício literário e homogêneo quanto a sua origem social. São agora os próprios marginais que buscam representar o cotidiano de territórios periféricos, resultando em uma escrita fortemente marcada por um teor testemunhal.

De fato, não estamos mais falando, ao nos reportarmos a esse conjunto de autores e obras literárias, de uma literatura desvinculada de um contexto no qual ela foi produzida, que ela, de alguma maneira, representa e com o qual estabelece uma relação íntima de cumplicidade comunitária, uma vez que se traduz não somente em «produtos» estéticos, mas em «performances» éticas que, a nosso ver, voltam-se especialmente para uma compreensão mais estendida e dinâmica do sentido de educação – algo mais próximo do que, como dissemos acima, ao nos referirmos aos conceitos de Paulo Freire, pode ser entendido como um amplo processo de conscientização.

Finalmente, como pragmática literária, que tem na categoria de deslocamento um de seus principais suportes ideológicos, a literatura marginal subdivide-se em três níveis distintos, mas interagentes: o nível linguístico/formal, a partir do qual se instaura uma semântica do dissenso, o nível ideológico/conteudístico, que se relaciona a uma estética do enfrentamento, e o nível social, resultando em microssistemas divergentes. Trata-se, em última instância, de níveis distintos de constituição estética e/ou de tensionamento literário.

O primeiro deles, nível linguístico/formal refere-se, entre outras coisas, à valorização da oralidade e dos gestos discursivos, em que a gramática não padrão e a livre expressividade estilística contribuem com o «empoderamento» dos códigos desviantes, instaurando-se, assim, uma semântica do dissenso.

Esse fenômeno se deve ao fato de que a literatura marginal nasce da essencialidade – nunca do essencialismo – de um gesto indigesto, rompendo, inclusive, com a hegemonia da palavra escrita, isto é, com o grafocentrismo. Daí a valorização do movimento, da oralidade, da imagem e da performance, em que se destacam formulações discursivas fronteiriças, refratárias às regras e às normas do linguajar bem educado das academias, dos centros de divulgação e consumo literários, das instâncias de legitimação da literatura canônica.

Nesse novo contexto, o intelectual (orgânico ou não) e o artista cuja constituição se assenta na anacrônica noção de “autoridade” (o termo latino auctor deu origem tanto ao vernáculo autor quanto autoridade) dão lugar ao conceito mais fecundo de agente cultural, na medida em que, imbuídos pelo princípio já aqui assinalado de coletividade, todo escritor de literatura marginal é, em última instância, um agente cultural comunitário. Como lembra Ivete Walty (2014, p. 214), ao discutir as intersecções de linguagens entre os sem-teto e agentes culturais diversos, na produção cultural urbana contemporânea,

o papel de rasurar a linguagem dominante, do jornalista, do político, do religioso, do cientista ou do educador, não se reserva mais a um segmento, que o receberia como missão salvacionista da humanidade. Pelo contrário, o que se observa são parcerias na busca de novas linguagens em um mundo de fronteiras deslizantes, de olhares não dispersos, mas difusos, que deem conta da diversidade de agentes e de ações. O que se busca são novas formas de abordagem de pedaços de linguagem, detritos do conhecimento instituído, e, para isso, muitas vezes há de se utilizarem ferramentas diversas, equilibrando-as como os malabares.

No nível ideológico/conteudístico, que se expressa como assunção do conflito declarado, como adoção do ato combativo, como perspectiva crítica e como opção pelas minorias e/ou pelos oprimidos, releva-se o que aqui chamamos de estética do enfrentamento, em que o dissenso – mais do que a análise – se opõe a uma ideia de síntese. Esse é um fenômeno que, em tudo, pressupõe o conceito de resistência: com efeito, a literatura marginal possui um claro sentido de resistência, inserindo-se, por isso, num amplo painel de renovação dos movimentos sociais que se dá na passagem do século XX para o XXI; procurando articular, dentro desse contexto, ética e estética, busca, portanto, interagir com a atuação política, afirmando-se como uma prática de intervenções no cotidiano e instaurando uma verdadeira cenografia do cotidiano. Desse modo, a literatura marginal vê a atividade literária de um ponto de vista, fundamentalmente, político, num entendimento particular de política como conflito.

Analisemos, nesse contexto, o caso da expressão poética: se a poesia de modo geral, como defende Alfredo Bosi (1977), em ensaio sugestivamente intitulado «Poesia Resistência», luta, no mundo contemporâneo, contra o discurso ideológico do mundo burguês e capitalista, por meio do resgate de formas não contaminadas (como o mito, o rito, o sonho etc.), com a literatura marginal, essa resistência se dá, não raras vezes, “incorporando” o discurso capitalista ao próprio corpo da poesia, para, por fim, criticá-lo: busca-se, qual Calibã readaptado ao meio periférico, no próprio inimigo, as armas para lutar contra ele.

De qualquer maneira, essa é apenas uma das estratégias possíveis, no sentido de fazer da literatura em geral – e da poesia, em particular – um instrumento de resistência e combate, a exemplo, como vimos antes, do que ocorre com o rap, manifestação poético-musical que está na origem da literatura marginal e que, entre outras coisas, afirma-se, de modo definitivo, como uma autêntica poesia revoltada (Salles, 2007). Sérgio Vaz e “sua” Cooperifa podem ser tomados como exemplo de um projeto literário que tem na poesia marginal uma estratégia de resistência, agora não mais – ou melhor, não somente! – de cunho explicitamente político, mas uma resistência que se dá – como defende Ricardo Domingos (2015, p. 133) – por meio da luta contra o apagamento da memória, em prol da construção de uma cidadania ativa:

[A] literatura passa a ser o palco da luta. A publicação, o livro, a escrita ou até mesmo a simples participação no sarau são elementos manipuláveis na construção de cidadanias, de participação na produção de atos de visibilidade na cidade de São Paulo.

Nesse contexto específico, a literatura emerge como a mais autêntica expressão de deliberados e conscientes testemunhos insurgentes.

Cabe, a estas alturas, perguntar: contra quem se luta e a que se resiste? A resposta é demasiadamente complexa para caber num ensaio apenas, demandando, ao contrário, estudo bem mais alentado. Mas podemos apontar, como sugestão, pelo menos um caminho: como têm demonstrado críticos e estudiosos de nossa atual produção literária, é na intersecção entre os modos de expressão estética – produzidos nos espaços periféricos das grandes cidades e nas franjas esquecidas da sociedade contemporânea – e a realidade social marcada por essas mesmas experiências-limite que a literatura marginal afirma-se como expressão contrária à violência cotidiana: para Ângela Maria Dias (2008) há, na atual produção literária brasileira, um esforço no sentido de testemunhar, por meio da ficção literária, certa desumanidade social marcada pela crueldade, esforço este que se traduz, entre outras coisas, como objetivação da violência.

Essa tendência atual de nossa produção literária, em especial da literatura marginal, que, ao conferir à violência papel de destaque, revitaliza, de certo modo, o realismo e o naturalismo do século retrasado (Pellegrini, 2008), manifesta-se dos mais diversos modos em nossa cultura, ganhando, por isso, os mais variados tratamentos estéticos (Pereira, 2012), exprimindo a dinâmica e o alcance da violência e exclusão sociais na atualidade.

Por fim, o nível social, como dissemos anteriormente, pode ser representado por outras formas de divulgação literária – como as edições artesanais, as antologias pluriautorais, os suportes colaborativos; por modos distintos de produção artística – como o trabalho coletivo, dando origem a uma nova categoria de associativismo cultural (os chamados «coletivos de»), ou como atividades conjuntas, financiadas por processos de economia criativa; por espaços alternativos e não formais de criação/difusão literárias – como bares, praças e ruas, constituindo uma nova cartografia literária; por formas inovadoras de expressão estética – como os saraus, os slams, os eventos culturais não institucionalizados. Trata-se, como também salientamos anteriormente, de uma série de procedimentos estético-culturais, especialmente ligados à literatura, que adquirem concretude na exata medida em que se constituem como microssistemas divergentes, próprios, por um lado, do contexto geopolítico da periferia e, por outro lado, de realidades sociais marginalizadas.

De modo geral, assemelha-se àquele procedimento que Deleuze e Guattari (2014), ao definirem o conceito de literatura menor, associaram à literatura marginal, popular ou proletária, identificada como uma «máquina coletiva de expressão» (p. 39). Trata-se, em outros termos, nas palavras de Schollhammer (2013), de «novas experiências interativas e participativas» (p. 97) entre artistas, pesquisadores, ativistas e moradores de comunidades excluídas, resultando em obras que expressam novas maneira de engajamento na realidade e articulam «práticas que redefinem as fronteiras rígidas entre a produção, expressão, performance e recepção artística e literária […] em direção a formas de participação, realização e recepção coletiva» (p. 98).

Em suma, como pragmática literária, no domínio do que aqui chamamos de um nível social que resulta em microssistemas divergentes, a literatura marginal elege um novo espaço de enunciação artística, que vai dos espaços já consagrados como gêneros discursivos (como o rap) àqueles que sugerem a construção de novas territorialidades estéticas (como os saraus).

Considerações finais

De tudo o que aqui dissemos, não restam dúvidas de que é preciso pensar o conceito de marginalidade, no âmbito das abordagens acerca da literatura marginal, a partir de novos protocolos de leitura, buscando superar a discussão reducionista em torno da natureza desse conceito e procurando compreendê-lo a partir de um processo mais amplo de ressemantização da categoria de «marginal», que pressupõe pelo menos três perspectivas distintas: uma perspectiva de natureza sociocultural, que se desdobra em duas noções – a noção identitária de assunção de marginalizado e a noção espacial de pertencimento à periferia; uma perspectiva de natureza gnosiológica, que se desdobra igualmente em outras duas noções – uma noção de racionalidade discursiva, que prevê a ocorrência de uma razão própria da literatura marginal, e uma noção de epistemologia contra-hegemônica, que supõe um conhecimento alternativo baseado, entre outras coisas, num saber compartilhado; e, por último, uma perspectiva de natureza subjetiva, que se relaciona à experiência da marginalidade e, por isso mesmo, é responsável por conferir legitimidade narrativa à voz autoral do escritor marginal.

Todas essas questões são de suma importância para o que aqui está se discutindo, embora fuja um pouco de nossa intenção neste artigo, uma vez que extrapola a questão mais «puramente» literária – da literatura marginal – para se aprofundar em considerações mais particularmente sociológicas – da marginalidade social.

Há que se lembrar, ainda, que para que a literatura marginal escape a uma contradição em si – deixar de ser «marginal», categoria que a define, no exato instante em que se assume como parte de um sistema literário -, ela tem de enfrentar um desafio “existencial”: precisa ser, sobretudo, dinâmica, isto é, ser e não ser ao mesmo tempo, numa perene recusa da tradição e numa contínua afirmação do devir. Esse é um caminho que ela já começou, como nenhuma outra, a traçar: se não significou uma alteração profunda do sentido da literatura, nessa passagem de século, ao menos propôs uma reconsideração da prática literária, pois, mais do que ocasionar um deslocamento espacial (expressão periférica), promoveu um deslocamento institucional (expressão não legitimada pelo cânone) e linguístico (expressão divergente da língua padrão).

Já se falou bastante a respeito das transformações acarretadas não apenas pelo advento da globalização no mundo contemporâneo, mas também pela adoção de uma episteme pós-moderna, o que teria resultado em mudanças não apenas de comportamento social e individual, mas também na própria maneira como enxergamos o mundo na atualidade. Tais transformações seriam, nesse sentido, responsáveis pela adoção, em geral, de novos protocolos de recriação e de leitura da realidade, que não dispensariam – pelo contrário, incentivariam – conceitos como os de hibridismo, fronteira e margem. Portanto, nossa realidade contemporânea seria, segundo essa clave interpretativa da realidade, híbrida, fronteiriça e marginal…

No âmbito restrito da produção literária, esse modo de «percepção» da realidade teve repercussões distintas: foi responsável, por exemplo, por uma espécie de deslocamento que se desdobrou em categorias diversas: como deslocamento geopolítico, levou parte substancial da produção literária brasileira contemporânea a se transferir para as periferias dos grandes centros urbanos e dos loci centrais de decisão político-administrativa; como deslocamento epistemológico, tornou a própria Weltanschauung marginal, se não de todo prevalente, ao menos altamente relevante para a produção literária atual. Desses dois deslocamentos resulta o que muito simplesmente poderíamos chamar de uma literatura marginal-periférica, porventura o mais importante veio criativo da contemporaneidade e, certamente, o mais atuante e dinâmico, tanto estético-cultural quanto político-socialmente falando.

Questões sociopolíticas e estético-culturais – não custa repetir – definem, no final das contas, a literatura marginal, dando-lhe um lastro artístico singular. A primeira delas é de ordem geográfica: a literatura marginal é, fundamentalmente, fronteiriça, já que nasce, se desenvolve e se consolida no contexto da periferia das grandes cidades urbanas; e étnica: a literatura marginal é, predominantemente, afrodescendente, uma vez que se manifesta principalmente em meio a grupos sociais compostos, em sua maioria, por negros. A segunda é de ordem estilística: a literatura marginal promove um verdadeiro deslocamento estilístico, tanto do ponto de vista da linguagem (dando preferência às conquistas do que se convencionou chamar de oratura) quanto do ponto de vista estrutural, optando pelo desvio nos padrões consagrados de construção da narrativa literária; e ideológica: a literatura marginal privilegia os discursos contestatórios do status quo político-social que relega parte da população brasileira à situação de pobreza e de vulnerabilidade social.

E isso tudo, convenhamos, não é pouca coisa!

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