DescargarVitor Vieira Ferreira.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
industrial-noise@hotmail.com

Recibido: 31/03/2019 – Aceptado: 08/05/2019

 

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre a extensão da esfera privada na rede social Facebook. Para tanto, caracterizaremos conceitualmente, dentro dos limites de nosso texto, uma das distinções mais fundamentais para o pensamento sociológico, a saber, entre esfera pública e esfera privada. Na medida em que nosso objeto de análise se situa historicamente na contemporaneidade, destacamos ainda a relevância social e política das novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), especialmente no Brasil, e apontamos algumas de suas características que de alguma forma relacionem-se com o fenômeno a que chamamos de hipertrofia da esfera privada. Com base em uma análise formal das estruturas semióticas do Facebook, apontaremos em que medida a rede social promove e, por conseguinte, legitima esta hipertrofia.

Palavras-chave: NTIC; esfera pública; esfera privada; redes sociais; análise do discurso

 

Abstract: The aim of the current paper is to examine the private sphere limits within the social network Facebook. The distinction between public and private spheres, one of the most central to the sociological thought, will be therefore conceptually characterized. Whereas our object of examination is contemporary historically situated, we emphasize the social and political role of the new information and communication technology (NICT), especially in Brazil, and point out some of its characteristics, which to some extent are related to the phenomenon we call “hypertrophy of the private sphere”. By means of a formal analysis of Facebook’s semiotic structures, will be demonstrated how this social media promotes and consequently legitimates such hypertrophy.

Keywords: NICT; public sphere; private sphere; social networks; discourse analysis

 

[toc]

Introdução

O presente texto se propõe a contribuir para a reflexão acadêmica e pública sobre o papel desempenhado pelas NTIC((Conquanto não se pretenda aqui dar uma definição última para a expressão “NTIC”, ela é compreendida aqui como a convergência de tecnologias computacionais e tecnologias de comunicação. Tais tecnologias, integradas, possibilitam a seus usuários, por meio de sistemas de comunicação unificados e de dispositivos que se integram a estes sistemas, a produção, o acesso, a difusão e a modificação de informações. Destaca-se aqui o papel da internet e, mais especificamente, o maciço uso contemporâneo de redes sociais.)) em sua interação/integração com a estrutura social mais ampla em que se inserem e que por elas é dialeticamente transformada. Nossa contribuição, em primeiro lugar, pressupõe, mais amplamente, que os espaços ocupados na vida social pelo que podemos conceituar como esfera privada apresentam uma expansão que pode ser observada sob diferentes aspectos e a partir de diferentes exemplos. Mais precisamente, em nosso trabalho nos limitaremos a sustentar a tese de que a estruturação formal da rede social Facebook e as interações com o usuário possibilitadas por esta estrutura propicia este aumento e garante sua manutenção.

Nossa exposição consistirá, além desta breve introdução, de quatro movimentos principais. Na seção a seguir, trataremos de apresentar, dentro dos limites de nosso texto, o que se consolidou no pensamento sociológico como a distinção entre as esferas pública e privada. Tomando por ponto de partida uma caracterização inicial da esfera privada, será então possível sustentar posteriormente a plausibilidade de sua hipertrofia. Na seção subsequente, teceremos alguns comentários sobre as especificidades das NTIC na contemporaneidade e suas particulares formas de se relacionar com a estrutura social mais ampla em que se inserem. De posse destes dados, estaremos em condições de lançarmos nossos olhares para a rede social Facebook (FB).

Se, por um lado, as redes sociais, e particularmente o FB, já são há alguns anos objeto de estudo e análise de diferentes disciplinas, cada qual com sua respectiva abordagem, esclarecemos de início que nosso trabalho se filia teoricamente ao campo dos Estudos do Discurso((A expressão “Estudos do Discurso” aqui utilizada designa, de modo deliberadamente mais amplo, todo um campo de investigação – tradicionalmente identificado por disciplinas\áreas tais como Linguística Aplicada, Análise do Discurso, Pragmática, Sociolinguística – que tem por característica determinante a investigação sobre os usos da linguagem, enquanto faculdade humana, vinculados às suas realizações concretas de uso, atravessadas, portanto, por fatores de ordem social, cultural, política, econômica e histórica; daí, portanto, adjetivarmos tal campo como essencialmente interdisciplinar (ou ainda multidisciplinar\transdisciplinar\indisciplinar).)), entendido este como um campo essencialmente interdisciplinar((Ao caracterizarmos os Estudos do Discurso como um campo interdisciplinar, não pretendemos aqui diminuir a relevância de outros adjetivos cabíveis tais como “transdisciplinar”, “multidisciplinar” ou mesmo “indisciplinar”. Não obstante, o uso de cada um destes, por sua vez, apresenta algum traço distintivo que o justifique tendo como plano de fundo uma discussão mais ampla sobre a natureza das relações que se dão entre diferentes disciplinas no contexto de uma pesquisa do campo. Não é objetivo deste artigo tangenciar a questão; pretende-se aqui, tão somente, destacar a complexidade ontológica do fenômeno discursivo e da respectiva exigência epistemológica de se fazer uso das contribuições de diferentes disciplinas.)). Neste contexto, torna-se necessário especificar em que categoria descritiva o FB se insere. Isto, pois ele a um mesmo momento, a) é um meio de comunicação, um site, um conjunto de textos e hipertextos, b) apresenta uma diagramação própria de suas seções, cada qual com extensões particulares, e delimita a interação que o usuário pode ter com elas e c) é instrumento com o qual se realiza um determinado conjunto de práticas sociais. Será apresentada e proposta, portanto, a categoria de suporte discursivo para que passamos dar conta desta “complexidade ontológica” de nosso objeto de análise. Para tanto será dedicada a terceira seção. Após isto, partiremos então, na quarta seção de nosso trabalho, para uma análise formal do FB enquanto um suporte semiótico discursivo. Será possível, por fim, verificar como sua configuração interna e a disposição de seus elementos constitutivos no espaço e no tempo contribuem para a hipertrofia da esfera privada nos contextos sociais em que tal suporte se faz presente.

Sobre as esferas pública e privada: breves apontamentos conceituais

A distinção entre as esferas públicas e privadas “foi uma preocupação central e característica do pensamento ocidental desde a antiguidade clássica e por muito tempo serviu como porta de entrada em questões fundamentais da análise social e política, do debate moral e político e da ordenação da vida cotidiana” [tradução própria] (Weintraub, 1997, p. 1). Tal distinção relaciona-se de modo análogo a outras distinções tais como estrutura vs. agência, indivíduo vs. sociedade, sujeito vs. objeto e de modo mais abstrato, conteúdo vs. continente ou parte vs. todo.

Consideradas estas duas últimas em particular, trata-se de uma distinção cognitiva ainda mais fundamental e que diz respeito à delimitação que se faz, por meio dos sentidos, de um determinado elemento da realidade em função daquilo que ele não é. Isto é trivialmente observável se pensarmos, por exemplo, em uma grade de metal: as varetas que a constituem delimitam-se na medida em que se observa o espaço vazio que há entre elas. De igual modo, na comunicação verbal oral, é preciso que haja instantes de silêncio para que sejam delimitadas cada uma das palavras que constituem um enunciado. Silêncio e fala são, portanto, mutualmente excludentes.

De igual modo, são também mutuamente excludentes as esferas pública e privada (cf. Papacharissi, 2010, p. 26). A esfera pública é aquela que contempla tudo aquilo que não diga respeito ao indivíduo, suas propriedades, suas inclinações pessoais, suas opiniões particulares. Diz respeito, portanto, ao bem público, impessoal, universal e comum a todos os indivíduos, tendo por contexto social uma organização política democrática.

Habermas (1974), um dos mais expoentes autores sobre o tema, afirma:

Uma parcela da esfera pública surge em toda conversa na qual indivíduos privados se reúnem para formar um corpo público. Eles então se comportam não como pessoas de negócios ou profissionais tratando de assuntos privados, nem como membros de uma ordem institucional sujeita a coação da burocracia de um Estado. Cidadãos se comportam como um corpo público quando deliberam sobre assuntos de interesse geral de modo irrestrito – isto é, com a garantia de possuírem liberdade para se reunirem, associarem, expressarem e tornarem públicas suas opiniões. [tradução própria] (p. 49)

Contribuindo com o debate, Weintraub (op. cit., p. 5) propõe dois critérios relevantes para a distinção entre as duas esferas, o de visibilidade e o de coletividade. Quanto a este último, diz respeito à natureza dos interesses que se pretende atingir por meio de uma prática social, comunicativa ou não. Quando o benefício desejado atinge exclusivamente um indivíduo ou um grupo, estamos a lidar, portanto, com a esfera privada. A contradição entre o interesse privado e o interesse coletivo está diretamente vinculada ao grau de liberdade individual que se pretende alcançar. Face à complexidade da vida social desde os tempos mais pretéritos da humanidade, é inevitável que surjam interesses contraditórios nas interações entre indivíduos e grupos sociais. Tais interesses podem estar limitados tanto a um espaço familiar, doméstico e que diga respeito às intimidades, como podem se expandir atingindo contornos econômicos e políticos específicos. Isto se dá, ainda que não exclusivamente, mas particularmente em virtude da configuração sócio-política das sociedades modernas, caracterizada por um modelo econômico liberal e que se baseia, dentre outros, no princípio da defesa da propriedade privada((Convém destacar aqui que tomamos como ponto de partida as reflexões de Habermas – sobretudo com seu clássico “Mudança estrutural da Esfera Pública” (1984) – no sentido de compreender a esfera pública particularmente enquanto uma categoria da sociedade burguesa. Isto, no entanto, não equivale a pressupor não ter havido em outros contextos históricos algum grau de distinção entre as esferas pública e privada; algo a que, inclusive, o próprio autor alemão dedica uma parte de seu estudo.)).

Neste contexto, a dimensão da esfera privada contempla não tão somente as práticas sociais levadas a cabo no seio do lar e da família, mas também a proteção jurídica da propriedade e da liberdade para realizar atividades econômicas sem um controle excessivamente rígido por parte do Estado. Estabelece-se, assim, uma distinção entre a atuação de um corpo burocrático estatal, ao qual se confere a responsabilidade da gestão e administração dos bens públicos, e a economia de mercado com sua autorregulação. Considerada esta última em particular, Papacharissi (op. cit., p. 31) destaca que o setor privado, termo pelo que se entende a esfera privada inserida num contexto econômico de mercado, “enfatiza o pensamento racional e o comportamento autorregulado como modos de se atingir os objetivos comumente compartilhados de competição perfeita, equilíbrio de mercado e eficiência na relação entre oferta e procura”. Prossegue ainda a autora, afirmando, quanto ao setor público, que este frequentemente leva em consideração “a irracionalidade no pensamento e no comportamento humano” e parte da premissa da “inabilidade dos mercados” de funcionarem de um modo tal que sejam capazes de suprir as demandas de todos os estratos sociais e econômicos.

Em uma sociedade democrática, a esfera pública constitui uma exigência da democracia e exige, por sua vez, espaços públicos nos quais a deliberação e o debate envolvendo pontos de vistas divergentes ocorra (cf. id., ibid., p. 38). Depreende-se daí o segundo critério da visibilidade. A esfera pública demanda que seus espaços sejam visíveis e, complementarmente, acessíveis. Em termos ideais, tais espaços públicos devem ter seu acesso facultado a todo e qualquer indivíduo e ninguém que destes façam parte deve estar sujeito a qualquer tipo de coação. Ademais, quando da confrontação entre posições contraditórias, acordos devem ser celebrados com base nos melhores argumentos apresentados (cf. Edgar, 2006, p. 124).

Como se pode supor, não se verifica atualmente a realização concreta deste ideal. Sem que nos aprofundemos sobre a formação e transformação da esfera pública ao longo da história ocidental, sobre o que se recomendam as obras de Habermas sobre o tema, há de se destacar qual o estado desta esfera nos tempos mais recentes. Conforme aponta Edgar (ibid., p. 126 et seq.), no capitalismo tardio – estágio de desenvolvimento do capitalismo pós-Segunda Guerra Mundial caracterizado pela produção econômica em larga escala, companhias multinacionais e extensiva burocratização nos setores privados bem como nos públicos – tanto a burguesia quanto a classe trabalhadora se tornaram consideravelmente privatizados. Isto equivale a dizer que as práticas sociais voltadas para a deliberação e o debate dos assuntos públicos perderam importância, estando os indivíduos cada vez mais preocupados com questões de ordem privada. Alçado ao estatuto de consumidor, as inclinações e preferências subjetivas passaram a se manifestar muito mais em termos de seus consumos e gostos do que por posicionamentos específicos acerca da coisa pública. O debate público reduziu-se então a uma participação democrática sazonal limitada ao voto em períodos de eleição.

Ademais, conforme destaca Fuchs (2014, p. 63) tendo por fundamentação a reflexão desenvolvida por Habermas, há dois limites que se colocam para a esfera pública face a uma mentalidade liberal que postula serem as liberdades individuais um valor máximo. O primeiro limite diz respeito à extensão da liberdade de expressão e de opinião pública que compete aos indivíduos em um contexto de desigualdade de oportunidades quanto ao acesso à educação e aos recursos materiais; o que se verifica de modo ainda mais acentuado em países como o Brasil. Em segundo lugar, há ainda uma limitação da liberdade de organização entre indivíduos face o poderio das grandes organizações burocratizadas, partidos e associações voltadas para interesses específicos. Estas, de acordo com o pensador alemão (op. cit.), estariam em melhores condições para divulgarem suas pautas e gozariam de um poder político maior. Contemporaneamente, a distinção conceitual entre as esferas pública e privada verifica-se também por meio da assimetria de poder que se estabelece entre o indivíduo e as forças institucionais que o cercam, sejam elas estatais ou privadas.

Neste contexto de reflexão, há de se destacar o papel exercido pela grande mídia nas sociedades atuais. Em momentos pretéritos da História, destaca Habermas (op. cit., p. 53), periódicos políticos exerceram um papel central durante o processo de gradativa transformação das sociedades europeias em virtude das revoluções burguesas. Nas sociedades modernas, novas relações entre mídia e esfera pública delineiam-se. Quando se pensa em expressões tais como opinião pública ou debate público, salta-nos aos olhos a relevância dos grandes conglomerados midiáticos que assumem o papel de difundir uma considerável parcela das informações que contribuirão para a formação cultural, política e mesmo cívica dos indivíduos.

Tais conglomerados podem assumir três tipos de estruturação interna, conforme argumenta Fuchs (op. cit., p. 68). Quais sejam: a) uma mídia capitalista, cujos proprietários são indivíduos, famílias ou acionistas e são parte da economia capitalista, estando, portanto, submetida aos mesmos imperativos de uma empresa como qualquer outra; b) uma mídia pública, fomentada pelo estado ou regulada a partir de um estatuto específico e que tem por objetivo prover serviços de interesse do grande público; e c) uma mídia da sociedade civil, que não assume para si a tarefa de uma empresa comum, cujo objetivo primário é a geração de lucro e de capital, mas que, por outro lado, também não se propõe a expressar necessariamente os interesses das organizações governamentais.

Diante destas possibilidades de estruturação e reafirmada aqui a relevância dos grandes sistemas de comunicação para a composição dos debates públicos, como podemos avaliar a presença das NTIC neste contexto?

Novas Tecnologias da Informação e Comunicação e o Facebook

O diagnóstico imediato de que vivemos em uma “era digital” não seria tão evidente se não estivéssemos cercados por gadgets de todos os tipos e formas. A presença física destes dispositivos em nossos lares, ambientes de trabalho e espaços de interação social são a expressão da integração hodierna entre o mundo online e o offline; ao menos nos espaços geográficos com algum grau de desenvolvimento que permita a seus habitantes a aquisição destes dispositivos e o acesso à internet.

De fato, a automatização de serviços e a utilização da internet para os fins privados e públicos mais diversos já vem ocorrendo desde os anos noventa. É, no entanto, nesta segunda década dos anos 2000, que se verifica um crescimento considerável do número de smartphones no Brasil. Tais dispositivos, em particular, são os principais responsáveis pela sensação cotidiana de nossa presença online e de como o mundo dito virtual está presente em nossas práticas e atividades diárias. Eles integram o conjunto das novas tecnologias da informação e comunicação, que se definem como os meios mais recentes dos quais dispomos para podermos nos comunicar e transferirmos informações entre diferentes sistemas informatizados; o que em grande medida foi possibilitado pelo advento da internet. A difusão destas tecnologias nas mais diversas esferas sociais, sejam elas mais pertinentes à esfera pública ou à privada, ocorreu e ocorre de tal modo que as fronteiras entre o online e o offline apresentam fronteiras cada vez mais difusas. É pertinente, neste sentido, a constatação de Fabris (2018):

Devemos levar em consideração dois aspectos da relação que temos com os dispositivos tecnológicos. Por um lado, eles são capazes de regirem de forma mais ou menos autônoma e são algo com o que temos a necessidade de interagir. Por outro lado, eles ajudam a criar mais ambientes do que aquelas pelos quais nos movemos em nossas vidas offline. Ao nos movermos de um ambiente para o outro, acabamos por integrá-los e colocá-los todos em um mesmo nível, de modo que todos sejam parte de um mesmo modo de vida. No fim das contas, é isto o que o uso de dispositivos tecnológicos nos possibilita atualmente: viver em uma variedade de ambientes online e offline. [tradução própria] (p. 22)

Algumas estatísticas sobre o uso da internet em nosso país contribuem para nosso trabalho. Segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua((Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101631_informativo.pdf Acesso em 30 de março de 2019.)), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve um aumento da utilização da internet, em qualquer local, de 64,7% em 2016 para 69,9% em 2017 – com destaque para um aumento de 25,0% em 2016 para 31,1% em 2017 de pessoas com 60 anos ou mais que a utilizam e um aumento de 94,6% em 2016 para 97,0% dos que utilizam o celular para acessar a internet. Segundo 29ª Pesquisa Anual do Uso de Ti, 2018((Disponível em: https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/pesti2018gvciappt.pdf Acesso em 30 de março de 2019.)), realizada pela Fundação Getulio Vargas, há 220 milhões de Smartphones em uso no Brasil, o que equivale a mais de um smartphone por habitante, e 86 milhões de computadores portáteis, o que nos leva a uma cifra de 1,5 dispositivo portátil por habitante. Por fim, segundo o relatório Information Economy Report 2017 – Digitalization, trade and development((Disponível em: https://unctad.org/en/PublicationsLibrary/ier2017_en.pdf Acesso em 30 de março de 2019.)), realizado pela Organização das Nações Unidas, o Brasil encontra-se no quarto lugar dentre os países com maiores números de usuários conectados em 2015.

Estes dados revelam que, a despeito do grau de desenvolvimento em nosso país, considerável parcela da população está integrada às NTIC. Tais cifras, seria de se supor, muito provavelmente seriam ainda mais expressivas não fosse o também notário grau de subdesenvolvimento de uma destacável parcela da população brasileira para a qual, lamentavelmente, os progressos tecnológicos ainda não chegaram. É inegável, contudo, que as pesquisas envolvendo sociedade e tecnologia sejam especialmente relevantes para uma compreensão aprimorada dos efeitos das NTIC em nosso país.

Mais especificamente, a escolha da rede social Facebook como objeto de análise para nossa pesquisa também se justifica por uma predileção nacional nossa. Esta predileção pode ser comprovada a partir de mais algumas cifras. Em 2016, Ime Archibong, diretor de parcerias estratégicas do FB, divulgou na Campus Party, ocorrida naquele ano, que 8 em cada 10 brasileiros conectados estão no Facebook((Fonte: https://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2016/01/facebook-revela-dados-do-brasil-na-cpbr9-e-whatsapp-vira-zapzap.html Acesso em 30 de março de 2019.)). Ademais, segundo o site Statista, o Brasil esteve, em Janeiro de 2019, na posição de terceiro país com mais números de usuários da plataforma no mundo((Disponível em https://www.statista.com/statistics/268136/top-15-countries-based-on-number-of-facebook-users/ Acesso em 30 de março de 2019.)). Deste modo, não somente o FB é a rede social de maior penetração no país, como somos responsáveis por uma fatia considerável do total de usuários da rede.

É, portanto, tarefa hercúlea examinar as razões para a adoção massiva desta rede social, bem como as implicações políticas, culturais e econômicas daí decorrentes. A relevância de uma tal tarefa, contudo, não pode ser menosprezada. As transformações levadas a cabo na realidade social brasileira pelo FB apresentam-se sob diversos aspectos e podem ser analisadas a partir de diferentes escolhas disciplinares e filiações teóricas. É possível que se observe o FB como um produto cultural, como uma ferramenta de comunicação, como um complexo sistema de algoritmos, como uma empresa etc. Seja qual for a abordagem, a expressão “rede social” é insuficiente para dar conta da complexidade daquilo que chamamos de FB – ou mesmo de outras plataformas que sejam rotuladas igualmente.

Segundo o verbete “Social Media, Definition and Classes of” presente na Encyclopedia of Social Media and Politics (Harvey, 2014), entende-se por “social media” “novas formas de mídia que envolvem participação interativa” (p. 1158). É relevante apontar que, de modo geral, no português brasileiro é possível traduzir “social networking sites” e “social media” como “rede(s) social(s)”. Social networking sites, no entanto, enquanto uma forma de social media, são marcados pela presença de uma lista de usuários com os quais se está conectado.  Se formos nos ater a esta definição ou mesmo à decomposição dos termos que constituem tais expressões, chegaremos a conclusão de que mesmo uma carta é um instrumento de interação social e que pressupõe participação interativa entre duas pessoas, ao menos potencialmente. É evidente que FB e plataformas afins extrapolam estas tentativas de definição.

É necessário, portanto, que tentemos, com algum esforço e ainda que inicialmente, delimitar as especificidades disto a que chamamos de rede social ou plataforma digital, tendo em vista os objetivos de análise a que nos propomos neste texto.

Apontamentos teóricos sobre um objeto multissemiótico

Como mencionamos ao início de nosso texto, este trabalho tem como plano de fundo teórico e epistemológico os Estudos do Discurso. Diga-se novamente, estamos, portanto, comprometidos a examinar as implicações decorrentes da produção, circulação e consumo de materiais linguísticos produzidos nas mais diversas instâncias da vida social e em momentos históricos definidos. Nosso trabalho distingue-se, contudo, de outros, na medida em que não nos propomos aqui a selecionar como objeto de análise nenhum tipo de conteúdo linguístico específico cuja produção, circulação ou consumo se dê no ambiente online do FB. Preocupamo-nos aqui muito mais com o que chamaremos inicialmente de estruturação interna da plataforma, considerando especificamente as interações por ela possibilitadas ao usuário. Com isto, não se trataria aqui de realizarmos uma “análise do discurso”, uma vez que não estamos, por exemplo, considerando um conjunto qualquer de postagens publicadas por um grupo qualquer de usuários em algum grupo ou na linha do tempo de um usuário em específico. O aspecto fundamental para o qual queremos chamar atenção é o aspecto multimodal de qualquer fragmento mínimo de texto que possa ser extraído de uma página dentro do ambiente do FB.

Nas palavras de Kress e Van Leeuwen (2010), autores de “Reading Images – The Grammar of Visual Design”, obra referência quando se pensa na análise de elementos não-verbais:

Seja em mídia impressa ou eletrônica, em jornais, revistas, CD-ROMs ou páginas da internet, seja como materiais de relações públicas, propagandas ou ainda materiais informativos de todos os tipos, a maioria dos textos envolve agora uma complexa interação de texto escrito, imagens e outros elementos gráficos ou sonoros, produzidos como entidades coerentes (geralmente no primeiro nível visual, mais do que no verbal) por meio da diagramação. [tradução própria] (p. 17)

Esta “complexa interação” do texto escrito com outros elementos gráficos e mesmo sonoros é o que define o caráter multimodal de um texto; e, aqui, ao utilizarmos a palavra “texto”, estamos querendo especificar o elemento material concreto e delimitado que apresenta a um mesmo tempo um conteúdo de linguagem verbal e outros tipos de conteúdos imagéticos ou sonoros.

Convém destacar ainda que os componentes imagéticos, visuais e sonoros não necessariamente estruturam-se de modo absolutamente dependente com relação ao conteúdo verbal que os acompanha (cf. id., ibid., p. 18). Em um contexto de exposição artística, por exemplo, o título de um quadro pode ser fundamental para a recepção da obra, ampliando suas possibilidades de interpretação. De fato, e sem que nos aprofundemos em demasia, se tomarmos como exemplo um texto literário, forma e conteúdo se relacionam de maneira peculiar e é notório em diversas obras que a primeira contribui e, em alguma medida, pode vir mesmo a se submeter à última. Não se pode dizer, no entanto, que a posição e o tamanho do selo de uma editora na capa de um livro justificam-se pelo conteúdo deste último.

Prossigamos com mais um exemplo: um cartão de visita. Este pequeno objeto está vinculado a um conjunto de práticas sociais específicas: armazenamos o cartão em algum invólucro, o distribuímos para outras pessoas e comunicamos informações específicas referentes a nossos dados pessoais e profissionais. A realização efetiva destas práticas por um indivíduo será tão satisfatória na medida em que o cartão de visita apresente uma estruturação interna que as possibilite. Isto é, não pode, por exemplo, ser grande demais a ponto de não conseguir ser facilmente armazenado ou possuir informações irrelevantes e que não digam respeito ao indivíduo que o confeccionou. De modo que o tamanho diminuto do cartão não diz respeito a este indivíduo, nem se justifica por ele; trata-se de um padrão estrutural que lhe antecede. Este padrão estrutural, de fato, relaciona-se com este indivíduo na medida em que este, ao confeccionar tal cartão, optou por fazê-lo a partir daquele padrão, ao invés de utilizar um outro. Este indivíduo em específico é parte integrante da prática social mais ampla de “produzir e distribuir cartões de visita próprios”; mas não há qualquer particularidade individual que determine ser o tamanho do cartão maior ou menor.

Esta reflexão tem por objetivo ilustrar que um texto multimodal – como qualquer discurso e mesmo em uma perspectiva de análise de elementos gráficos – deve ser analisado com base nas práticas sociais concretas que se realizam das quais tal texto seja um elemento participante. Isto, pois

[…] os significados expressos por falantes, escritores, desenhistas, fotógrafos, designers, pintores e escultores são antes de mais nada significados sociais, ainda que nós os reconheçamos o efeito e a importância das diferenças individuais. Visto que as sociedades não são homogêneas, mas composta de grupos com interesses que variam e que são, frequentemente, contraditórios, as mensagens produzidas pelos indivíduos irão refletir as diferenças, incongruências e embates que caracterizam a vida social. (id., ibid., p. 20)

Mais do que compreender a determinação social das formas não-verbais que se associam às verbais em um texto multimodal, tais textos – como quaisquer outros – não somente refletem o contexto social e histórico em que se inserem como também o refratam, na medida em que dialeticamente configuram-se eles próprios como uma prática social específica pertencente a este mesmo contexto. Esta exigência epistemológica pode ser satisfatoriamente verificada na proposta de definição de discurso conforme Fairclough (2001), um dos grandes expoentes da Análise Crítica do Discurso, rubrica que se insere no campo mais amplo dos Estudos do Discurso:

Ao usar o termo “discurso”, proponho considerar o uso de linguagem como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais. […] [Isto] implica ser o discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. […] implica uma relação dialética entre o discurso a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social: a última é tanto uma condição quanto o efeito da primeira. (p. 90-91)

Trazer à tona esta conceituação de discurso é relevante para as finalidades de nosso texto. Pois por mais que destaquemos a importância do que chamamos de estruturação interna do FB, não se pode perder de vista que esta não pode sob qualquer aspecto ser examinada tendo sido deixado de lado o infinito número de produções verbais que ela possibilita. Além disto, aquilo que chamamos de hipertrofia da esfera privada traz consigo, inexoravelmente, um conjunto amplo de discursos, assimilados e reproduzidos com maior ou menor grau de consciência, sobre a extensão da esfera privada na vida de um indivíduo.

Feitas estas considerações, propomos então que o FB seja compreendido como um suporte semiótico discursivo (SSD). Para compreendermos a natureza de um SSD, elencaremos, inicialmente, definições que lhe sejam negativas: a) um SSD não é um texto; não é possível conceber, no entanto, qualquer produção textual, escrita ou oral, sem um SSD que lhe sirva de base, b) um SSD não é meramente o conjunto de elementos de natureza não-verbal que constituem um texto multimodal, isto é, o que “sobra” de um texto multimodal excluído seus elementos verbais. Positivamente, um SSD se define como um espaço delimitado (físico ou virtual) de natureza não-verbal que se presta a conter elementos verbais e não-verbais (no caso de textos multimodais) e que determina as possibilidades de interação no tempo e no espaço entre o suporte e seu receptor.

Relevante ainda percebermos que entre os adjetivos “semiótico” e “discursivo” se estabelece uma relação de hiperonímia. Isto é, a caracterização que se pretende com o adjetivo “discursivo” se justifica na medida em que um determinado suporte semiótico contenha qualquer elemento verbal mínimo. Depreende-se daí a possibilidade de haver suportes semióticos que não sejam classificados como discursivos; ainda que estes apresentem um efeito discursivo: um SSD, enquanto um ente da realidade e inserido em um contexto de interação social, reproduz, legitima ou contesta discursos e práticas((Neste sentido, não se pressupõe aqui uma primazia da linguagem verbal sobre a linguagem não-verbal, cujo efeito seria, nos termos de Orlandi (1995), uma “assepsia do não-verbal”, submetido este último a uma “verbalização necessária”.)).

Tomemos um exemplo prático. Uma simples folha de papel é um suporte semiótico discursivo na medida em que contenha algum tipo de inscrição verbal. A folha em si não é um texto; os limites físicos daquela serão, no entanto, os limites físicos deste. O mesmo se aplica caso a folha contivesse apenas uma imagem – a ausência de um conteúdo verbal, no entanto, não possibilitaria que tal suporte fosse classificado como discursivo, sob pena de realizarmos a operação epistemológica de condicionar a significação de uma imagem a um determinado conteúdo verbal. Teríamos, portanto, um suporte semiótico pictórico ou imagético. Uma compreensão que se pretendesse sociologicamente satisfatória e que buscasse dar conta da complexidade ontológica de uma simples folha de papel com uma inscrição verbal não poderia se abster de compreender a relevância da mensagem ter sido grafada precisamente em uma folha de papel e não em qualquer outro meio. Isto fica razoavelmente evidente se a folha em questão apresentar um aspecto tal que indique ter sido ela produzida, por exemplo, por meio de processo de reciclagem. Caso assim o fosse, a despeito do conteúdo verbal ou não-verbal presente na folha, ela se insere em uma cadeia de práticas mais amplas que culminaram na produção específica de um objeto reciclado, assumindo assim, “ares” de um produto ecologicamente correto. O que, a depender do contexto, pode ser de grande importância para a mensagem nela contida. Ainda, se substituíssemos esta folha por uma de papel manteiga, novas possibilidades de interação se descortinariam. O fato, por exemplo, de ser possível observar em um lado da folha o que foi escrito na outra poderia assumir uma função artística ou literária, caso nela houvesse sido escrito um poema que de alguma forma demanda do leitor a apreensão de um elemento verbal grafado em seu verso.

Por meio destas ilustrações, esperamos ter ficado minimamente claro no que consiste um suporte semiótico discursivo.

Facebook: suporte semiótico discursivo de uma hipertrofiada esfera privada

Em nossa primeira seção após a Introdução, tecemos alguns breves comentários sobre a distinção entre a esfera pública e a esfera privada. Argumentamos que, ao menos idealmente, a existência de espaços públicos fortalece a ordem democrática de uma sociedade na medida em que nestes sejam possíveis a deliberação e o debate racional, com vistas a se chegar a medidas que, de alguma forma, contemplem interesses comuns a todos.  A eficácia deste fortalecimento, depende, por conseguinte, não somente da existência de tais espaços públicos, mas também de uma participação produtiva dos indivíduos. Comentamos ainda que as grandes instituições responsáveis pela produção e pela transmissão de informações que dizem respeito ao grande público podem se tornar instrumento de poder tanto por parte do Estado quanto por parte de empresas privadas, em um contexto capitalista de hegemonia do pensamento liberal e de economia de mercado. Este aumento de poder econômico ou burocrático ameaça a o horizonte de possibilidades de agência individual e o equilíbrio desejável entre as esferas público e privada. Seria possível supor que um espaço que estivesse para além das formas de controle social e econômico adquirisse o estatuto de espaço público por excelência.

Na história recente, a internet foi em seus primórdios a promessa deste espaço público. No entanto, a economia capitalista e a mentalidade liberal já haviam deixado profundas marcas no seio da vida social. Nas palavras de Simmel (2006):

A doutrina da liberdade e da igualdade é o fundamento histórico-espiritual da livre concorrência; e a doutrina das diferentes personalidades é o fundamento da divisão do trabalho. O liberalismo do século XVIII põe o indivíduo sobre seus próprios pés, e ele deve progredir à medida que se sustenta. A teoria afirmou que a constituição natural das coisas cuidaria para que a livre concorrência entre os indivíduos levasse à harmonia de todos, que o todo se sairia melhor numa situação em que os indivíduos buscassem vantagens sem qualquer parcimônia; esta foi a metafísica com a qual o otimismo natural do século XVIII justificava a livre concorrência. (p. 117)

Tal doutrina tem por pressuposto a primazia da esfera privada sobre a esfera pública e um de seus efeitos contemporâneos é precisamente o que chamamos de hipertrofia da esfera privada. Por esta, entendemos aqui o fenômeno que perpassa dimensões culturais, políticas e econômicas e que se caracteriza pela valorização exacerbada das inclinações e interesses individuais e pela deserção dos indivíduos da esfera pública. Isto equivale a pressupor haver um descolamento agudo entre os interesses coletivos e os interesses privados e que em grande medida os espaços públicos, proponham-se eles a serem espaços da esfera pública ou não, convertem-se em espaços da expressão de si e dos interesses próprios, frequentemente de natureza comercial.

Boa parte da fundamentação para este diagnóstico pode ser encontrada na seminal obra de Richard Sennett, O declínio do homem público, publicada originalmente em 1974, que se propõe a defender a tese de que “sinais gigantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública esvaziada” são o resultado de uma mudança que se inicia com o Antigo Regime e se desenvolve com a “formação de uma nova cultura urbana, secular e capitalista” (Sennett, 2016, p. 33). De modo a termos chegado a um ponto em que

[o]s homens passaram a crer que eram os autores de seu próprio caráter, que cada acontecimento de suas vidas precisava ter uma significação em termos da definição do que eram eles; mas aquilo que era essa significação, as instabilidades e contradições de suas vidas tornavam difícil dizer. Ainda assim, a mera atenção e o envolvimento em questões de personalidade aumentaram cada vez mais. Gradualmente, essa força perigosa, misteriosa, que era o eu, passou a definir as relações sociais. Tornou-se um princípio social. Neste ponto, o terreno público de significação impessoal e de ação impessoal começou a diminuir. (id., ibid., p. 485)

Com tal diminuição da impessoalidade constituímos uma esfera privada hipertrofiada e que possui como eixo central o narcisismo. Em síntese, nas palavras de Lipovestky (1986):

[…] o narcisismo designa o surgimento de um perfil inédito do indivíduo em suas relações com ele próprio e seu corpo, com os demais, o mundo e o tempo, no momento em que o capitalismo autoritário dá espaço a um capitalismo hedonista e permissivo, acaba com a idade de ouro do individualismo, competitivo em nível econômico, sentimental em nível doméstico, revolucionário no nível político e artístico, e se estende a um individualismo puro, desprovido dos últimos valores sociais e morais que ainda coexistiam com o reino glorioso do homo economicus, da família, da revolução e da arte; emancipada de qualquer marco transcendental, a própria esfera privada muda de sentido, estando exposta unicamente aos desejos mutáveis dos indivíduos. [tradução própria] (p. 50)

O autor (ibid.) afirma, posteriormente, que

[…] o narcisismo surge da deserção generalizada dos valores e finalidades sociais, provocada pelo processo de personalização. O abandono dos grandes sistemas de sentido e o hiperinvestimento no Eu ocorrem simultaneamente […] tudo promove um individualismo puro […] liberado dos limites da massa e focado na valorização generalizada do sujeito. [tradução própria] (p. 53)

Esta deserção((Isto a que Lipovetsky chama de deserção corresponde homologamente à crise ou deslegitimação dos metarrelatos que, segundo Lyotard (1988), caracteriza a pós-modernidade.)) dos valores sociais pode ser perfeitamente compreendida como a deserção do indivíduo dos espaços de deliberação pública; ou, analisando-se de outro modo, da transformação de espaços de visibilidade irrestrita – critério relevante para a distinção das esferas pública e privada, como mencionamos acima – em espaços de expressão e afirmação de si. Tem-se, com isto, o paradoxo de um ambiente público que possibilita visibilidade, mas que, ao fim e cabo, não promove a coletividade (cf. Papacharissi, op. cit., p. 41).

Outra expressão desta hipertrofia é o enfraquecimento do sentido de tempo histórico, conforme apresentado por Christopher Lasch em sua também seminal obra A Cultura do Narcisismo – A Vida Americana numa Era de Esperanças em Declínio, publicada originalmente em 1979. Segundo o autor (1983):

Viver para o momento é a paixão predominante – viver para si, não para os que virão a seguir, ou para a posteridade. Estamos rapidamente perdendo o sentido de continuidade histórica, o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e que se prolongarão no futuro. É o enfraquecimento do sentido do tempo histórico — em particular, a erosão de qualquer preocupação maior com a posteridade […].

Esta perda do sentido de continuidade histórica está diretamente relacionada com a ideia de que o os vínculos inexoravelmente sociais entre os indivíduos são tão somente uma condição para que se exerça a liberdade dentro de limites privados e com o objetivo de satisfazer interesses que não sejam coletivos. Isto é, o fato de convivermos em sociedade e de estarmos em constante relação de dependência com o próximo – visto não ser nenhum indivíduo isolado capaz de produzir tudo o que é materialmente necessário para sua subsistência – é a condição para a realização dos interesses pessoais. Tais interesses são a finalidade da sociabilidade; não o inverso. A manutenção ou transformação da estrutura social é fruto da ação histórica, ao passo que a satisfação dos interesses pessoais é fruto das ações privadas. Privilegiando-se estes, erode-se a preocupação com os nossos semelhantes que ainda virão.

Com base no exposto até então, tratemos de esclarecer de que forma o FB pode ser compreendido como um suporte semiótico discursivo e por meio de quais elementos que lhe sejam constitutivos esta é promovida.

Tal como a folha de nosso exemplo na seção anterior, o FB é um espaço com limites próprios e dotado de uma estruturação interna que determina os tipos possíveis de interação entre ele e o usuário. Diferentemente da folha, no entanto, estamos lidando aqui com uma materialidade de ordem distinta. O fato de se tratar de uma estrutura virtualmente situada não apresenta, no entanto, maiores problemas para nossa análise((É evidente que, se fosse impresso um screenshot de uma de suas páginas, estaríamos a lidar com algo completamente distinto. No entanto, o conjunto de pixels que são exibidos em um monitor e que constituem a interface gráfica da rede social são tão reais quanto as menores partes de uma folha de papel. Ainda que a materialidade “concreta” desta possa ser diferente da materialidade “elétrica” dos feixes de elétrons que atingem a tela de um monitor gerando as imagens, estamos a lidar igualmente com um fenômeno observável da realidade e que se submete às mesmas conhecidas leis da física e da química.)). Deve-se tão somente não se perder de vista as especificidades e implicações deste tipo de materialidade virtual e em que cadeia de práticas sociais ela se insere.

Neste sentido, é preciso levar em conta ainda o meio pelo qual a rede social é acessada, visto que a prática de utilização do FB por meio de um smartphone é distinta daquela por meio de um computador de mesa ou notebook((O acesso por meio de um tablet apresenta uma versão de página similar àquela que seria acessada por meio de um computador de mesa ou notebook, por esse motivo não nos aprofundaremos nas especificidades do uso do tablet.)). E esta distinção também se observa em termos estatísticos. Segundo dados da pesquisa TIC Domicílios((Disponível em: https://cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2017_coletiva_de_imprensa.pdf Acesso em 30 de março de 2019.)), realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) junto ao Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR(NIC.br) e do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), observa-se uma predileção por parte dos usuários por se utilizar o smartphone para se conectar à internet.

Gráfico 1. Proporção de usuários de Internet, por dispositivo utilizado de forma exclusiva ou simultânea – Percentual sobre o total de usuários de Internet

Proporção de usuários de Internet, por dispositivo utilizado de forma exclusiva ou simultânea – Percentual sobre o total de usuários de Internet
Fonte: CGI.br/NIC.br, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros – TIC Domicílios 2017.

Esta tendência expressa o grau de inserção na vida social que os smartphones vêm adquirindo não somente no Brasil, mas em boa parte do mundo; sobre o que dados similares podem ser facilmente encontrados em rápida pesquisa. Justifica-se assim, portanto, que dediquemos uma maior atenção à prática de acesso ao FB por meio do smartphone.

Tomemos a imagem abaixo como referência:

Imagem 1. Página inicial do Facebook – Acesso por meio de computador

Página inicial do Facebook – Acesso por meio de computador
Fonte: facebook.com, acesso com perfil do autor

Esta é a imagem a que se tem acesso quando acessamos a rede social. Identificam-se, sem maiores dificuldades, seis seções: uma coluna esquerda com menu, caixa com o título “Criar publicação”, caixa com o título “Stories”, uma caixa sem título com uma lista de eventos, caixa com o título “Grupos sugeridos” e a seção central que dentro da plataforma é chamado de Feed de Notícias. Cada uma destas seções determina o tipo de interação que o usuário terá com cada uma delas. Além disto, observa-se ainda o menu superior e o mesmo espaço dedicado à seção dos grupos sugeridos pode apresentar anúncios comerciais((Não se observa nesta imagem a seção dedicada ao chat da plataforma. Dados os limites de nosso trabalho, deixaremos esta funcionalidade de lado na medida em que nos interessa mais aqui os espaços da plataforma onde se verifica a produção de conteúdos que se pretendam públicos, ao menos em seus limites online.)).

Quando acessado por um smartphone, temos o seguinte:

Imagem 2. Página inicial do Facebook – Acesso por meio de smartphone

Página inicial do Facebook – Acesso por meio de smartphone
Fonte: facebook.com, acesso com perfil do autor

Em ambas as imagens, podemos perceber a centralidade do Feed de Notícias (FN) para a plataforma. Também chamada de linha do tempo, esta seção é a principal responsável por fornecer conteúdo a seus usuários, que não raramente são vistos em espaços públicos descendo a barra de rolagem para percorrerem uma lista infinda de publicações feitas por outros usuários.

O FN depende essencialmente da constante publicação de conteúdo na plataforma por parte de seus usuários. Com esta finalidade, temos a caixa com título “Criar publicação” com a convidativa sentença “No que você está pensando”, complementada com o vocativo que será o nome do usuário. Mais do que isto, em termos da diagramação das seções na página, ela ocupa a posição central e superior. Esta disposição tem por efeito situar a posição do usuário como produtor de conteúdo em um nível acima da posição de consumidor\receptor. A sentença, por sua vez, estruturada em forma de pergunta, simula um interlocutor e o usuário sente-se de alguma forma compelido a respondê-lo; produzindo assim não somente mais um conteúdo para o FN, mas um conteúdo de natureza absolutamente particular e subjetiva.

Além de dizermos “o que estamos pensando”, o FB possibilita que compartilhemos vídeos, fotos e links para outros sites. Quanto às fotos, vale a pena destacar que cada usuário possui uma página que tem por função ser seu álbum pessoal. No entanto, para se ter acesso a estes álbuns, pelo menos três cliques ou toques são necessários: primeiro precisamos clicar na foto ou no nome do perfil, em seguida clicamos em Fotos e por fim em Álbuns. Ademais, na seção fotos de cada usuário, há três abas: “Fotos com [nome do usuário]”, “Fotos de [nome do usuário]” e por último “Álbuns”. Se tomarmos por referência a lógica “plug and play”, isto é, que a interação que temos com dispositivos tecnológicos deva ser a mais facilitada e intuitiva possível (cf. Fabris, op. cit., p. 24), podemos argumentar que a efemeridade das postagens constantes de imagens possuem importância estrutural maior do que o registro tradicional em um álbum. Enquanto suporte semiótico, o álbum é limitado e pressupõe uma seleção mais criteriosa das fotos contidas.

No FN ocorre precisamente o oposto. Não havendo também qualquer hierarquia – ao menos de modo mais aparente((Conforme será exposto nas próximas linhas, há um sutil mecanismo de seleção entre conteúdos que serão exibidos e aqueles que não o serão. Conquanto seja possível que o usuário filtrar a posteriori conteúdos que lhe sejam indesejáveis, cabe aos algoritmos do FB determinar o que lhe é exposto na FN; ainda que com base em dados fornecidos pelo próprio usuário.)) – entre tais conteúdos, todos são igualmente relevantes e ao mesmo tempo absolutamente irrelevantes. O hábito comum do scrolling, mencionado acima, indica que apenas uma pequena fração do que nos é exibido na tela do celular ou do smartphone ganharão algum nível de nossa atenção. Este hábito compartilha algumas características que são próprias do checking habit (hábito de checagem) (cf. Reid, 2018, p.81 et seq.).  Entende-se por esse a prática de se estar constantemente verificando um determinado dispositivo e um aplicativo específico de modo a obter uma determinada informação. Este hábito costuma ser comparado ao de uma máquina caça-níquel, em que o simples ato de fazê-la girar já nos fornece algum tipo de gratificação psicológica; independentemente dos ganhos efetivos que se tenha((A comparação é pouco usual no Brasil, mas relativamente comum em textos de língua inglesa. Aplica-se aqui também, por exemplo, a comparação com o hábito de zapear, isto é, alternar continua e rapidamente por entre canais de TV ou mesmo estações de rádio.)). Isto tem por efeito que modifiquemos a nossa percepção temporal na medida em que nos habituamos com a velocidade com que obtemos informações e realizemos tarefas por meio de um dispositivo tecnológico. “Vivemos na era da impaciência. Não aguentamos ficar esperando. Tudo tem de acontecer ‘em tempo real’” (Fabris, op. cit., p. 43). O tempo da História, não obstante, não corre na mesma velocidade do tempo de nossa impaciência e não seria descabido compreender esta distinção como sendo fator que contribui para a perda do sentido de continuidade histórica sobre a qual falávamos anteriormente.

Na seção dos “Stories”, por sua vez, são compartilhadas imagens e vídeos gerados pelo usuário, mas que ficam disponíveis por apenas 24 horas. Trata-se, portanto, de um segundo FN do Facebook. Seus conteúdos são ainda mais individualizados, uma vez que são produzidos pelo próprio usuário e na vastíssima maioria das vezes correspondem a registros de momentos da vida cotidiana. Por não se perderem no FN principal do FB, assumem para si o atrativo de serem transitórios. Atuam, portanto, dentro de uma estruturação que legitima a efemeridade dos conteúdos em circulação. Esta produção constante de conteúdo, no entanto, atende a imperativos narcísicos. Cada publicação é um ato de exposição de si que tem por objetivo atingir a audiência que é a rede de contatos de cada usuário. Satisfaz-se assim, portanto, o indivíduo que, em oposição à posição de passividade que ocupava diante dos meios de comunicação tradicionais, assume o papel de produtor de conteúdos a serem tornados públicos e, de alguma forma, recepcionados por uma audiência.

Esta audiência, no entanto, também não está livre das “tiranias da intimidade”. Pois no FB, assim como em outras plataformas, ocorre a chamada filter bubble, sobre o que nos fala Pariser (2011):

O código básico no coração da nova internet é bastante simples. A nova geração de filtros da internet olha para as coisas que você parece gostar – as coisas que você de fato fez, ou coisas que pessoas como você gostam – e tenta extrapolá-las. Estes filtros são mecanismos de predição, que estão constantemente criando e refinando uma teoria de quem você é, o que você irá fazer e o que irá querer depois. Juntos, estes mecanismos criam um universo único de informações para cada um de nós – o que vim a chamar de filter bubble – que altera fundamentalmente o caminho pelo qual chegamos a ideias e informações. [tradução própria] (p. 9)

No caso específico do FB, todo o conteúdo que é exibido no FN é determinado com base em algoritmos que selecionam as publicações que mais se encaixam em seu perfil, com base em informações que os próprios usuários provêm sempre que publicam um determinado conteúdo. A história recente já nos deu exemplos das implicações políticas deste tipo de mecanismo em tempos de eleição, seja nos Estados Unidos, no Reino Unido e mesmo aqui no Brasil. Conforme registram Savazoni & Copello (2016), o filter bubble

[…] do Facebook se fez muito evidente durante as eleições de 2014 no Brasil. Postagens e ‘discussões’ no Facebook parecem ter impedido o desenvolvimento de um debate informado, induzindo ao acirramento dos discursos entre as diferentes partes. Paralelamente, existe forte indicação de que esta dinâmica gerou menos interação social, causando também muito confronto e afastamento entre indivíduos e grupos de discussão. (p. 165)

Passados alguns anos, o que se observou em nosso país foi a manutenção desse cenário ou mesmo sua extrapolação no contexto das eleições em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente. Ademais, “polarização política” tornou-se um lugar comum para se descrever a situação da democracia no país. Estes contextos nos levam a sustentar a ideia de que o mecanismo de filtro de conteúdo baseado no perfil do usuário corresponde a um processo de privatização do espaço virtual do FB. Tal espaço, seria possível ainda argumentar, sequer potencialmente poderia ser convertido em um efetivo espaço público onde uma parcela da esfera pública pudesse se instaurar((Não temos a pretensão de afirmar ou negar que o FB seja (ou deva ser) um espaço da esfera pública. Ademais, nem a negação nem a afirmação dariam conta da complexidade da questão. Entretanto, há quem defenda que a plataforma possa assumir características de esfera pública, como quando da campanha de Barack Obama em 2008 (Smuts, 2010), no contexto greves na Grécia entre 2011 e 2012 (Zervou, 2017), na crise política no Paquistão entre 2007 e 2009 (Yousaf et al., 2012); apenas para mencionar alguns.)). Isto, pois os conteúdos que são exibidos a um usuário são gerados e publicados por outros que de alguma forma estejam a este vinculado. Trata-se, portanto, por definição, de uma conectividade social definida a partir dos interesses de si, e não de interesses comuns a todos.

Uma discussão ainda mais ampla sobre as relações entre a ação política e as redes sociais pode ser feita tomando como elemento central o que em uma linguagem mais descompromissada recebe o nome de “ativismo de sofá”, termo equivalente à expressão inglesa slacktivism. Se por um lado o FB foi fator determinante em importantes momentos eleitorais no Brasil e no mundo, é possível que se argumente, em contrapartida, que a prática pretensamente política levada a cabo nos ambientes virtuais são tão somente uma auto afirmativa expressão de si. Ademais, a ausência de qualquer hierarquia interna a ser aplicada entre os usuários e mesmo aos conteúdos((Sabidamente há outros espaços virtuais com estruturas hierárquicas mais claras. Se tomarmos como exemplo o Orkut, plataforma que apresentou expressivo número de usuários brasileiros conectados entre os anos de 2004 e 2014 e que perdeu seu espaço para o FB, observamos que a estruturação no formato de fórum (message board) é bastante distinta daquela oferecida pelo FB. Conquanto não nos caiba por hora uma análise contrastiva mais detalhada entre o Orkut e o FB, estamos inclinados a crer que o formato de fórum exige que as produções discursivas individuais estejam submetidas não ao imperativo de uma pura e livre expressão de si, mas a um determinado tema ou assunto que, por sua vez, justifica, por exemplo, a existência de uma comunidade na qual estas produções têm lugar. Seja dito, o FB também apresenta espaços tais como os grupos de discussão e mesmo as páginas, que se distinguem dos perfis por apresentarem um conteúdo mais impessoal. Seria, portanto, absolutamente cabível nos questionarmos se um mesmo grau de hipertrofia da esfera privada se observa também nestes espaços; o que, no entanto, não se propõe a ser objeto de análise por hora em nosso texto dados os seus limites.)), nos leva a um cenário onde o conjunto de indivíduos agindo em nome de ideais coletivos dentro do FB corresponderia a uma “multidão desunificada”((A ideia de uma multidão desunificada é um fecundo ponto de partida para a avaliação histórica que se pode fazer dos protestos que ocorreram em meados de 2013, cujos efeitos históricos, é possível sustentar, são sentidos até hoje. Sobre a relação destes eventos e o papel desempenhado pela internet à época, recomenda-se a leitura do aqui citado “Brasil” (Savazoni & Copello, 2016).)) cujas “demonstrações online de ativismo” não corresponderiam a uma “solidariedade coesiva entre as pessoas” (cf. Papacharissi, op. cit., p. 158). Esta perspectiva sobre as práticas políticas nos espaços virtuais insere-se num contexto ainda mais complexo e que diz respeito ao nosso Zeitgeist pós-moderno, caracterizado pela recusa dos grandes sistemas de pensamento que marcaram a modernidade.

Um último aspecto a ser mencionado diz respeito à gestão econômica por trás do FB. Há uma conhecida frase em língua inglesa que diz “se você não está pagando pelo produto, você é o produto”. Conforme argumenta Fuchs (2018, p. 216), o FB não é uma companhia de comunicação e não vende conteúdo digital ou acesso a plataformas online. O FB é uma das maiores companhias de propaganda e comercializa dados de seus usuários para que outras empresas anunciem na rede social. Mais especificamente, o tipo de publicidade veiculada no FB tem o diferencial de contar com o mesmo mecanismo que promove a filter bubble, sobre o que comentamos acima. De modo que no FB uma empresa tem seu produto divulgado não para uma massa heterogênea de consumidores, mas para um determinado grupo selecionado por meio de algoritmos que se alimentam de dados fornecidos pelo próprio usuário, convertido, por sua vez, em potencial consumidor.

Palavras finais

Nas linhas que se seguiram, tivemos por objetivo sustentar a tese de que, a despeito da especificidade de cada conteúdo postado no FB, sua estruturação interna contribui, a priori, para expressões de traços narcísicos, marcadas pela efemeridade e com limites de contribuição política bastante restritos, ao menos no sentido da composição de um espaço público ideal, conforme foi apresentado a partir das contribuições habermasianas.

A reflexão desenvolvida aqui tem por objetivo não desqualificar em absoluto o uso da ferramenta ou questionar os usos que individualmente cada um faz da plataforma. Não se trata aqui de uma análise com traços personalistas; de modo fundamentalmente oposto buscamos demonstrar que potencialmente, a despeito de seus usuários e suas interações, a ferramenta em si pode contribuir para a hipertrofia da esfera privada na vida social. Isto ganha ainda maior destaque quando observamos quantitativamente a inserção tanto das NTIC quanto do FB no cotidiano de boa parte das pessoas de nosso país e do mundo; o que buscamos apresentar, em alguma medida, em nosso texto.

Ademais, seria absolutamente raso afirmar que o FB se presta exclusivamente a ser um suporte semiótico de uma hipertrofiada esfera privada, atribuindo-lhe um caráter unidimensional que evidentemente não se verifica quando de uma observação mais aprofundada. Entretanto, buscamos destacar aqui algumas de limitações estruturais que permitem imprimem limites de interação e engendram, com isso, práticas discursivas que tendem – também, mas não exclusivamente – a se constituírem como expressões de si e das intimidades. Que o diagnóstico da hipertrofia da esfera privada na vida social seja algo até certo ponto sabido é um fato. Buscamos destacar em nosso texto, não obstante, que os conteúdos discursivos produzidos no FB, observado exclusivamente em sua estrutura formal enquanto um suporte semiótico discursivo, podem engendrar práticas discursivas que tendem a esta hipertrofia, legitimando-a assim.

As conclusões aqui apresentadas não se pretendem exaustivas e nosso maior interesse é promover a produção e a ampla divulgação de pesquisas que investiguem, sob uma perspectiva crítica, a imbricação entre tecnologia, economia e política. Mais do que isto, face ao grande número de usuários do FB na população brasileira, parece-nos desejável que os cidadãos conheçam com o máximo de profundidade possível tanto as limitações quanto as potencialidades das tecnologias das quais fazem uso diariamente, sobretudo quando assumem para si o papel de sujeitos históricos e, inexoravelmente, políticos.

Referências

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