DescargarCarlos Bonfim.
Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.
Educador, pai do Pedro e docente do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia. Orientador de Bruna Hercog no doutorado.
latitudea@gmail.com

Bruna Hercog.
Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.
Comunicadora, poeta, ativista cultural e doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia. Integram, ambxs, a equipe do projeto Reder ao Redor: cartografia de iniciativas juvenis em arte, cultura e comunicação em Salvador.
bhercog@gmail.com

Recibido: 01/04/2019 – Aceptado: 18/05/2019

 

Resumo: Entre o poder das grandes corporações midiáticas e as diversas iniciativas hoje em curso nestes lugares batizados de periferias (mas que se percebem, vivem, atuam como outros centros), buscamos neste texto apresentar algumas destas muitas iniciativas – idealizadas e lideradas fundamentalmente por jovens.  Além de discutir outros sentidos possíveis para “comunicação” e “emergências”, propomos uma agenda de trabalho, uma mobilização em rede que permita amplificar esta potente produção de contranarrativas.

Palavras chave: comunicação, emergências, periferias, juventudes.

 

Abstract: Between the power of the big media corporations and the many initiatives that are taking place today in these places baptized as peripheries (but perceived, lived, acted as other centers), we seek in this text to present some of these many initiatives – idealized and led fundamentally by young people. In addition to discuss other possible meanings for «communication» and «emergencies», we propose a work agenda, a network mobilization that aims to amplify this powerful production of counter-narratives.

Keywords: communication, emergencies, peripheries, youth.

 

E então ele mobiliza o pessoal todo
Pra aprender cantar sua música
E poder cantar pro outro
E este então pra mais um outro
Até chegar na amiga 

(Luiz Tatit, Grupo Rumo)

 

Conhecida e cantarolada com entusiasmo por quem acompanhava a cena artística que ficaria conhecida como “vanguarda paulistana”, a “Canção bonita” cujo trecho vai como epígrafe deste texto, foi composta por Luiz Tatit e gravada pelo Grupo Rumo, que Tatit e um enorme e inquieto time de artistas haviam fundado nos anos 70 na cidade de São Paulo.  “Canção bonita” passou a ser conhecida entre xs fãs da banda como uma espécie de hino dxs artistas independentes. E a canção vem à memória agora porque neste texto buscamos discutir algumas questões relacionadas ao tema central desta edição de Iberoamérica Social: a comunicação. Ou melhor, a emergência da comunicação. E para isto gostaríamos de explorar ao menos dois dos sentidos possíveis para o termo “emergência”.

Antes, no entanto, apresentamos alguns elementos que pretendem subsidiar estas discussões. O primeiro deles é, digamos, um episódio que terminou funcionando como uma espécie de disparador para pensar nossa relação com o que vem sendo feito-pensado-vivido longe dos holofotes, por exemplo, nesse enorme e potente “abajo” por onde transitamos muitxs. Neste caso, a história vem da cidade de Salvador, Bahia. Mais exatamente, do Subúrbio Ferroviário, território que abriga algo em torno de 25% da população da capital baiana e que há tempos vem se destacando na cena cultural local. Ali, entre diversas outras iniciativas, José Eduardo Ferreira e Vilma Santos criaram em 2011 o Acervo da Laje. Trata-se de uma dessas iniciativas que costumam chamar a atenção da grande mídia pelo “inusitado” ou pelo “exótico” da proposta: um museu na periferia… Um museu vivo, dinâmico e que trabalha com uma estratégia altamente transformadora, posto que em suas ações colocam-se em xeque abordagens estereotipadas sobre bairros populares, sobre as pessoas que ali habitam e sobre nossas próprias aproximações às artes. Tal como é descrito por seus idealizadores, o Acervo da Laje é sobretudo um “espaço de memória artística, cultural e de pesquisa sobre o Subúrbio Ferroviário de Salvador.”((Tal como também se informa no site do Acervo, o projeto participou em 2014 como espaço expositivo da 3ª Bienal da Bahia e da 31ª Bienal de São Paulo no Simpósio Usos da Arte. Cfr. www.acervodalaje.com.br))

Entre as muitas e tantas ações realizadas pela equipe do Acervo da Laje, destaca-se o Ocupa Lajes, projeto que promove a circulação das artes visuais e que inclui encontros de formação em artes em diversos equipamentos culturais situados nas periferias da cidade. Pois bem, numa das reuniões de avaliação do Ocupa Lajes algumas/alguns de seus colaboradores apontaram um aspecto que interessa de modo especial para a discussão que se busca propor com este texto: ocorre que naquela edição, elxs haviam enviado boletins informativos para diversos meios de comunicação. Notaram, no entanto, que havia ali uma questão crucial. Se por um lado, os coletivos de comunicação parceiros (estes também localizados majoritariamente nas periferias) tinham tido uma atuação acorde aos objetivos que movem estes coletivos – isto é, realizaram cobertura e matérias sobre as ações, por outro, os veículos hegemônicos de comunicação dedicaram escassa atenção, publicando, quando muito, uma discreta nota em sua agenda cultural.

E isto nos conectou tanto com o que nós mesmxs experimentávamos nas ações que vínhamos realizamos junto ao Latitudes Latinas, projeto de extensão dedicado à difusão da música e da cultura latino-americana, quanto ao que vínhamos ouvindo de outrxs parceirxs de artivismos. Ou seja, ao que parece, mesmo sendo altamente críticxs com o que chamamos genericamente de mídia hegemônica, acontece que continuamos alimentando alguma esperança de que nossas ações sejam acolhidas com entusiasmo por essa mesma mídia… Afinal, precisamos ocupar todos os espaços, nos repetimos – e com toda razão. Ter algum destaque num desses espaços hegemônicos é também disputar narrativas, é reiterar de modo amplificado nossos dissensos. Portanto, não se trata de pura e simplesmente renunciar a eles. Mas ocorre que nesta batalha pelo lugar ao sol, nesta luta pela visibilidade do que andamos gerando, terminamos por priorizar o hegemônico em detrimento dessa pletora de espaços e modos outros de comunicar(-nos) – muito embora estes estejam evidentemente em estreita sintonia com nossas agendas, posto que pensados-vividos-realizados a partir desses muitos outros centros que são nossas periferias. Este é um dos primeiros elementos que destacamos para esta discussão. Isto é, abordamos até aqui particularmente o ponto de vista de quem produz / consome artes, por exemplo.

Mas, que ocorre com o ponto de vista de quem pensa a comunicação? Entre os diversos projetos, observatórios, coletivos dedicados à pesquisa e à discussão sobre a comunicação (democratização, direitos, marcos legais, alternativas etc) destaca-se outro aspecto que deveria receber uma atenção mais acurada. E aqui vale recordar o papel fundamental que têm instituições dedicadas à formação e à pesquisa, como é o caso de universidades (e com elas, os cursos, congressos, encontros e as pesquisas ali geradas), mas também de muitos coletivos que, dadas as tragédias e as urgências cotidianas, terminam deixando de publicizar, de difundir, de produzir reflexões a partir das muitas outras histórias que dão conta da potente produção de contra-narrativas que são contraponto mais propositivo sobre o que andamos vivendo.

Falamos aqui de uma longa e bastante consolidada tradição que parece ter definido o diagnóstico e a denúncia como ponto de chegada. Isto é, há muita energia, muita criatividade, muitos recursos dedicados a projetos cujo objetivo é a crítica, a análise aguda, a denúncia – mais que necessárias, evidentemente. Afinal, seria impossível, além de um enorme equívoco, prescindir de estudos que apontam / analisam a banalização, a espetacularização, as distorções, as assimetrias, a fabricação de narrativas que atendem aos interesses dos agentes, das corporações, dos poderes que representam de modo ventríloquo. E é justamente a partir destes subsídios que podemos ter uma dimensão mais precisa do foco prioritário de nossas ações.

Mas por que deter-se no diagnóstico, na crítica? Por que tamanha disparidade entre estes estudos/pesquisas/matérias e aqueles dedicados ao que ocorre longe desses holofotes? Não estaremos – involuntariamente – atuando como agentes a serviço dessas assimetrias? Ao eleger como tema prioritário de nossas discussões/reflexões sobre comunicação (ou sobre qualquer outro tema) apenas os espaços hegemônicos não estaremos precisamente contribuindo com a perpetuação daquilo que condenamos? Que ocorre neste processo com o que vem sendo gerado a partir desses espaços outros, desses territórios marginalizados, desses lugares aos quais – talvez por conta das muitas demandas, talvez pela força do hábito – dedicamos muito esporádica atenção?

Em síntese, consideramos que estamos hoje ante a possibilidade de gerar dinâmicas que nos permitam amplificar o dissenso, dinâmicas que nos permitam conectar criativamente esta gigantesca e potente rede que pulsa nos entornos, que vibra e move estes nossos muitos outros centros. Podemos, neste sentido, considerar a possibilidade de abordagens mais propositivas, sem com isto renunciar ao diagnóstico, à crítica? Ou, dito de outro modo: que aconteceria se tentássemos fomentar coletivamente, em rede, enlaces, conexões entre as muitas e tantas ações que visam justamente produzir narrativas outras, a partir de perspectivas e sensibilidades outras, ações que buscam escrever alguns dos tantos capítulos faltantes de nossa história (social, cultural, humana), ações que se empenham em fazer circular nomes, cânones outros a partir dos quais pensar-nos, entender-nos, querer-nos?

Ora, não é exatamente isto que vêm realizando iniciativas como a Agência de Notícias das Favelas, que além de um site, de páginas em redes sociais, edita ainda o jornal impresso “A voz da favela”, cujas matérias são produzidas de forma colaborativa por moradorxs e ativistas das favelas da cidade do Rio de Janeiro, Baixada Fluminense e Niterói?((Entre seus diversos projetos, vale destacar ainda o curso de formação da Rede de Agentes Comunitários de Comunicação (RACC), bem como a realização do Encontro Latino-americano de Comunicação Comunitária.)) Ou ainda, a Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Repórter da Quebrada (esta, criada pelo coletivo Periferia em Movimento), que na cidade de São Paulo geram informações das quebradas para outros centros? Não é acaso o que vêm fazendo (em rede) coletivos como o Portal Geledés, iniciativa do Geledés, Instituto da Mulher Negra que há 30 anos realiza ações em torno às questões raciais, de gênero, Direitos Humanos, educação, saúde e comunicação? Ou ainda a Alma Preta, uma agência de jornalismo dedicada à produção de conteúdo sobre temática racial no Brasil?

Não é isto que fazem coletivos como o Nós, mulheres da periferia, que no contexto das eleições de 2018 publicaram a matéria “fakenews! 11 veículos periféricos para seguir e apoiar” – que não apenas apresenta, como se enuncia no título, veículos alternativos a partir dos quais se informar, mas corrobora a relevância e a potência destas outras vozes, leituras, perspectivas? E a propósito da circulação dessas muitas outras vozes e saberes que dizer, por exemplo, da Rádio Yandê, que trabalha a partir da noção de etnomídia indígena brasileira e que agrega em rede representantes de diferentes nacionalidades indígenas do país? Ou ainda iniciativas como a TV Preta, uma plataforma dedicada à produção de conteúdo sobre a diversidade, com recorte prioritário sobre “conteúdos nacionais e internacionais produzidos por afrodiaspóricos ao redor do mundo e realizadores do sul global.” Projeto idealizado pela Preta Portê Filmes, a TV Preta produz curtas e programas diversos, como a excelente série Afronta, que “lança luz sobre a potente juventude negra brasileira contemporânea que contam suas trajetórias e oportunidades geradoras da sua constituição como indivíduo e expressadas pelos seus trabalhos”. Ao longo de mais de 20 episódios, que têm duração média de 15 minutos, é possível ouvir histórias, reflexões, propostas, pensadas por figuras como a educadora, artivista e hoje deputada transexual Erika Malunguinho, o cineasta André Novais e a atriz, diretora e dramaturga Grace Passô, entre diversxs outrxs.

E, também a propósito da circulação de diversas outras vozes, outras histórias, que dizer de iniciativas vinculadas ou não à International Network of Street Papers (INSP), que em mais de 30 países apóia projetos de jornais como Aurora da Rua, em atuação em Salvador desde 2007, e que se define como ”um jornal de rua que dá visibilidade para aqueles que muitas vezes são pouco vistos e pouco ouvidos na sociedade”? Trata-se de uma rede mundial que, no caso da América Latina inclui ainda: Ocas (São Paulo), Hecho en Buenos Aires (Buenos Aires), Mi valedor (Cidade do México), entre outros. As publicações destes coletivos são vendidas por pessoas em situação de vulnerabilidade social que ficam com a maior parte do valor das vendas e que também participam como produtorxs de conteúdo da publicação. Ou ainda, como não considerar, por exemplo, o trabalho realizado por coletivos de coletivos, como os Jornalistas Livres e a Mídia Ninja, que se caracterizam pela capilaridade, pela atuação em rede e, sobretudo, por uma forma de produção de conteúdos que vai de encontro às abordagens da “indústria midiática”?

E que dizer ainda de coletivos como os pernambucanos da Caranguejo Uçá e da Favela News, os cariocas da Marginal e do Jornal O Cidadão, os baianos do Instituto Mídia Étnica e do Coletivo Baiano pelo Direito à Comunicação (CBCom), os paraenses da Rede Mocoronga, entre outros coletivos que se reuniram entre abril e maio de 2018 em São Paulo, para tecer juntxs táticas que, vistas em conjunto, terminam por evidenciar que é mesmo “nas bordas que a vida pulsa”?((Título do artigo de Mariana Belmont, publicado em http://periferiaemmovimento.com.br/artigo-e-nas-bordas-que-vida-pulsa/. Neste artigo, Mariana (integrante do coletivo imargem) informa que o encontro foi realizado a partir de um mapeamento de coletivos de comunicação em diferentes estados brasileiros feito pelo Imargem, coletivo parceiro da Periferia em Movimento.))

Porque se mantivermos os sentidos postos tão somente no que circula pelos espaços / canais hegemônicos, se dedicarmos parte considerável de nossa atenção e de nossas energias apenas a monitorar/denunciar factoides ou distorções que circulam pelos conglomerados que historicamente monopolizam a comunicação, estaremos não apenas contribuindo para que as pautas e as narrativas continuem sendo definidas por eles, mas estaremos também renunciando ao convite a participar ativamente desta potente rede outra que aos poucos vai se ampliando e consolidando, muito apesar das assimetrias todas.

Que é fundamental que estejamos atentxs aos movimentos das grandes corporações, aos escusos e criminosos acordos entre estados e transnacionais, às fusões que terminam sendo etapa preliminar de um processo de criação de monopólios e/ou oligopólios, aos lobbys que emperram qualquer tentativa de discussão mais ampla sobre a comunicação como um direito humano básico, sobre democratização da comunicação etc, não resta dúvida alguma. Mas, insistimos: talvez junto com a atenção urgente que demandam todas estas questões, poderíamos considerar também a possibilidade de uma interlocução mais cotidiana com estas redes outras.

Notícias com CEP((Tomamos emprestada a expressão que encontramos no texto de Mariana Belmont, citado acima. E, dado que Iberoamérica Social circula por diversas outras latitudes, talvez valha a pena informar que “CEP” aqui é o código postal utilizado, por exemplo, pelos correios.))

Parte considerável dos coletivos e das iniciativas que mencionamos neste texto tem, com algumas variantes, uma história bastante similar. São filhxs, muitxs delxs, da indignação. Ora, se a grande mídia continua empenhada em seus crônicos e perversos exercícios alquímicos a partir dos quais transforma, por exemplo, “meninos” em “elementos”((Evocamos aqui a dissertação de mestrado De “menino” a “elemento”: onde trajetórias se cruzam, defendida por Bruna Hercog junto ao Programa Multidisciplinar de Pós Graduação em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia em 2016.)), se os canais hegemônicos continuam com sua campanha estigmatizadora e com seu antigo projeto de produzir não apenas invisibilizações, mas sobretudo visibilidades negativas, ocorre que do outro lado ouvem-se vozes que se negam a perpetuar essa história única((Por “história única” nos referimos à hoje viralizada conferência TED da escritora nigeriana Chimamanda Adichie: Os perigos de uma história única.)) com a qual nos alfabetizaram. Falamos aqui de coletivos que não são (jamais o foram) “subalternos”. Afinal, assim como existe uma diferença substancial entre “pobre” e “empobrecido”, entre “escravo” e “escravizado”, há, do mesmo modo, um abismo entre “subalterno” e “subalternizado”.((Aqui talvez valha a pena fazer um parêntese para evidenciar algumas das consequências dessa prática tão estendida e ao mesmo tempo tão nefasta que é a adoção acrítica de categorias da moda… Ou seja, não se trata aqui de uma crítica à categoria de “subalternidade” tal como discutida por Gayatri Spivak, por exemplo, mas – vale reiterar – ao seu emprego indiscriminado por (ah, as modas “intelectuais”…) quem entende que fazer pesquisa se reduz a colar etiquetas…)) Tal como discutimos em outro momento (BONFIM, 2019), o que se adverte nestas iniciativas é mais do que uma resistência: trata-se de re-existências, trata-se de uma fecunda e potente ofensiva cultural que dá conta do poder de agência de quem habita os chamados “subsolos sociais” do mundo.

Ora, se nossas quebradas são notícia apenas quando se quer perpetuar estigmas ou quando se pretende romantizar ou exotizar a pobreza e a periferia, acontece que o mundo ganha outros matizes quando é de dentro e não de longe que se olha, que se sente, que se vive, que se fala. Difícil e ingrata, no entanto, a tarefa de ensaiar uma breve (e sempre incompleta) compilação destas iniciativas… Mas, cientes da incompletude deste esforço que fica entre a tentativa de evitar um catálogo infinito e a necessidade de nomear – como exemplos concretos – ao menos algumas destas iniciativas, mencionamos a seguir mais alguns dos projetos que corroboram nestas latitudes o esforço coletivo por imaginar “un territorio del nosotros”, um território a partir do qual se possa “pensar futuro e produzir memória” (Martín Barbero, 2009, p. 6).

Parte das iniciativas que apresentamos a seguir foram contatadas a partir de um mapeamento que iniciamos em 2016: trata-se do projeto Reder ao Redor: cartografia de iniciativas juvenis em arte, cultura e comunicação em Salvador. Este projeto, que contou inicialmente com o apoio da Pró-reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE), da Universidade Federal da Bahia, busca – tal como o nome indica – ter um panorama atualizado do que vem sendo realizado em diferentes regiões da cidade, com foco prioritário nestes espaços chamados de periferias – espaços que vêm colocando sistematicamente em xeque os sentidos pejorativos do termo. O levantamento inicial – atualmente em fase de sistematização – permitiu ter contato com mais de cem iniciativas em diferentes bairros de Salvador. Vale destacar, no entanto, que, em função do tema central desta edição de Iberoamérica Social, o recorte que fazemos aqui incide fundamentalmente em iniciativas em Comunicação, muito embora – como se vê – muitas delas não estejam desvinculadas de intervenções artísticas, ativismos políticos, comunitários etc.

Assim, numa cidade como Salvador, por exemplo, não é muito difícil perceber que há muitas outras cidades pulsando em torno da mundialmente conhecida alegre capital do carnaval e do verão. E se nessa mesma cidade, nesse mesmo estado, que está entre os que ostentam os mais elevados índices de assassinato de jovens (negros e de bairros periféricos em sua maioria), se vivem cotidianamente os efeitos do que o camaronês Achille Mbembe (2011) chamou de necropolítica, há, por outro lado, apostas diversas por difundir olhares outros sobre essas vidas.

Feito o Nordeste Eu Sou, iniciativa de jovens de bairros que fazem parte do Complexo que abriga, além do Nordeste de Amaralina, os bairros de Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho e Vale da Pedrinhas, em Salvador. Seu portal, que funciona como uma revista eletrônica, reúne “esporte, lazer, entretimento e notícias culturais com um modelo de website diferenciado, visando o respeito e buscando mostrar o outro lado da moeda”. Nascido no mesmo bairro e com propósitos afins, o projeto Desabafo Social se define como “uma organização que utiliza a comunicação e novas tecnologias para promover Educação em Direitos humanos através de formação e produção de conteúdo”. Busca promover com suas ações, “uma imersão em Direitos Humanos e Produção de Mídias”, além de atuar em diversas outras frentes.((Como, por exemplo, a rede colaborativa Ubuntu, que busca “conectar pessoas, ocupar espaços, estabelecer uma rede de relacionamento com foco nos direitos humanos, sobretudo na participação social e política” (http://desabafosocial.com.br).))

Não muito distante dali, no bairro de Sussuarana, outro coletivo de jovens fez nascer o projeto Mídia Periférica, que em seu slogan sintetiza seu propósito: periferia de dentro pra fora. E uma de suas primeiras iniciativas foi produzir uma série de postais das periferias, nos quais não apenas se revelaram as muitas outras caras daqueles bairros, mas significaram um modo sensível de atuar – via fotografia, neste caso – na autoestima de quem ali habita.

Também a partir da fotografia e do audiovisual, mas desta vez no complexo de bairros que compõem o Subúrbio Ferroviário de Salvador, jovens artivistas moradores da região criaram o Coletivo Cutucar, que entre suas diversas ações realizou em 2016 “Mocambos marginais”, uma exposição fotográfica com intervenções poéticas na qual algo em torno de oito comunidades do Subúrbio foram retratadas com dignidade, com respeito, com delicadeza. No ano seguinte, estxs mesmxs jovens realizaram o Primeiro Encontro de Fotografia do Subúrbio Ferroviário de Salvador, que além de exposições, contou ainda com rodas de diálogo e oficinas diversas. Parte dxs jovens que integram o Coletivo Cutucar participou dos cursos e oficinas realizados pela Cipó Comunicação Interativa, uma ONG que, desde o final da década de 90, atua junto a jovens de bairros empobrecidos de Salvador. E um dos eixos fundamentais das ações da Cipó é precisamente a Comunicação. Desta forma, dali também saíram diversos outros projetos liderados por essxs jovens, a exemplo do Coletivo de Jovens Comunicadoras e Comunicadores do Subúrbio e da Agenda Cultural do Subúrbio, que busca justamente falar com e a partir desta região da cidade.

Notícias com CEP. Ou seja, comunicação situada, assim como ocorre também com o Correio Nagô, um portal digital de comunicação criado pelo Instituto Mídia Étnica, já mencionado acima, que produz conteúdo sobre a comunidade negra brasileira.Também em Salvador foram criados nestes últimos anos diversos canais em plataformas como o Youtube, por exemplo. Destacamos especialmente aqui o trabalho que vem sendo realizado pela Ouriçado Produções, iniciativa de jovens negros que deram vida a um canal de humor negro. Sim, tomam expressão de conotações pejorativas e subvertem sentidos.((Procedimento, aliás, bastante recorrente entre estes coletivos, entre os quais existem muitos traficantes (de informação, de poesia) que transitam pelas biqueiras (literárias). A este respeito, valeria talvez a pena, ler o poema “Magia negra”, de Sergio Vaz, o colecionador de pedras que concebeu na periferia de São Paulo a Cooperifa.)) Em cada vídeo postado, uma abordagem muito bem humorada e contundente sobre temas delicados e urgentes. Ou, nas palavras dxs integrantes do coletivo, trata-se de produções que buscam “colocar o dedo na maldita ferida denominada racismo, ´desconhecido´ por uns e sentido na pele por outros”. Como se adverte, o sentido de “comunicação” a partir do qual operam estes coletivos (e com o qual este texto coincide) é amplo o suficiente quando o que se tem em mente se distancia muito de ortodoxias taxonômicas e disciplinares.

Ou seja, os coletivos de comunicação que se espalham pelas quebradas mostram o quão potentes são as vozes das juventudes que não se permitem mais aparecer apenas nas páginas policiais dos jornais. São jovens que buscam caminhos para se desatar da espiral da violência que perpassa suas vidas e define-definha seus imaginários desde o nascimento. A comunicação “das quebradas” é uma forma de enfrentar o “discurso autorizado da violência” (Chauí, 2008) que é propagado pela mídia hegemônica. É uma forma de afetar e mobilizar para esses outros tantos centros. Ou, para dizê-lo com as palavras do MC capixaba, Ernauro Feijó: “mobilizar é despertar o olhar de possibilidade no outro”. Produzir e disseminar essas contra-narrativas são formas de contribuir para rasgar a etiqueta de “elemento”, “menor”, “envolvido” e para construir outras referências de jovens negrxs moradorx dessas quebradas, outros imaginários possíveis, para que essas referências “cheguem antes da bala”, como nos diz o poeta e cineasta baiano Giovane Sobrevivente.

Neste sentido, trazemos mais um exemplo de ação em coletivo feita para despertar o olhar de possibilidade no outro. Ainda em Salvador, destacamos o “Ocupa TVE”, uma ação articulada pelo Coletivo Baiano pelo Direito à Comunicação (CBCom), em parceria com o Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (IRDEB), responsável pela TV Educativa e pela Rádio Educadora FM de Salvador. O CBCom nasce com o objetivo de fortalecer as redes, conectar as ações dos coletivos e ativistas que seguem com seus corres diários nos espaços onde atuam. Integram o Coletivo hoje, representantes do Intervozes, do Coletivo Aquilombar, Instituto Odara, Revista Afirmativa, Instituto Odara, entre outros. Uma das mais recentes ações do Coletivo foi a articulação de um programa de TV sobre democratização da mídia e direito humano à comunicação para ser veiculado dentro da programação de uma emissora de TV pública, veiculada no canal aberto, a TVE.

Em rede nacional, num horário de grande audiência, jovens que já possuem seus canais de comunicação na internet tiveram a oportunidade de fazer reverberar suas pautas e lutas, de ocupar as ondas eletromagnéticas com a poesia falada e o audiovisual do Coletivo Cutucar; com a força da rapper e poeta baiana Áurea Semiséria, entre tantas outras vozes que ocuparam o estúdio e entraram nas casas pela TV e pela internet. O incremento do alcance destxs artivistas e de seus coletivos foi imediatamente constatado pelo salto no número de seguidores nas redes sociais digitais após a veiculação do programa, mas, mais do que isso: pelo fortalecimento da atuação em rede dos coletivos que continuaram a unir as quebradas, indo mais uma vez na contramão das dinâmicas da violência e da perpetuação de estigmas.  Ou seja, tal como aponta a jornalista e ativista Sally Burch (2003):

Seguindo a nova lógica dos movimentos sociais, a contribuição particular de cada organização, cada luta específica, cada instituição, adquirem transcendência sobretudo na medida em que se articule com outras para construir uma agenda comum. Neste quadro, trata-se não apenas de criar solidariedade, mas de conseguir que estas diferentes expressões de resistência se enriqueçam com a experiência e a força das demais. O desafio é como somar forças e não diminuí-las; como potenciar-se mutuamente dentro de um âmbito de respeito à diversidade. Isto implica comunicar-se e, em nosso entendimento, é o que dá o verdadeiro sentido à comunicação: ou seja, mais que transmitir mensagens, produzir um tecido comunicacional que articule redes e construa comunidades. (Burch, 2003 – tradução nossa)

Articular redes, construir comunidades, nos recorda Sally Burch; imaginar “un territorio del nosotros”, nos convida Martín-Barbero. “Nós por nós”, entoam diversos coletivos espalhados pelas cidades, pelas quebradas, por estes nossos muitos outros centros – coletivos compostos por sensibilidades que com este lema dão conta, ao mesmo tempo, do crônico descaso com que são tratadas estas vidas, quanto do sentido de comunidade que orienta estas iniciativas. Afinal, como canto-proclama Emicida: “eu e você somos nós. Nós que ninguém desata…”((Yasuke (Bendito, louvado seja), composição de Emicida para o desfile da marca LAB (Laboratório Fantasma) edição 2016 da São Paulo Fashion Week.)) Nós que se trançam em trama potente e se espalham pelas mais diversas latitudes, num gesto que corrobora que, como na frase que circula pelas redes e que foi atribuída a Eduardo Galeano, “muita gente pequena, fazendo pequenas coisas em lugares pequenos podem transformar o mundo”. E assim seguem, então, estes coletivos, estes projetos, estas iniciativas: imaginando, tecendo, anunciando mundos outros.

Mas também ocorre, no entanto, que iniciativas como as que listamos aqui são com frequência desqualificadas como voluntaristas ou românticas, no sentido pejorativo do termo. Não obstante, não poderia esse ceticismo (ou o desprezo?) com o que se avalia estas iniciativas ser também indício de desinformação? Ou de preguiça mental, de atitude blasé de quem se nega a escutar, a confiar em “los abajos”?

No entanto, muito apesar destas suspeitas, é possível afirmar – diante do que pudemos conhecer até aqui – que estamos, sim, ante movimentos que – vistos em conjunto – permitem perceber os sentidos do que Milton Santos (2003) chamou de “revanche da periferia”. Mas não se trata, evidentemente, de um projeto unificado, articulado a partir de um único centro. Antes, tal como adverte Wallerstein, citado por Raúl Zibechi: trata-se de “uma multiplicidade de organizações; cada uma das quais representa um grupo diferente ou uma tonalidade diferente, laxamente vinculadas em algum tipo de aliança”. Trata-se, enfim, não de uma estratégia unificada, mas de “confluências não hierarquizadas em organizações não centralizadas” (Zibechi, 2018, p. 32).

E não são, do mesmo modo, “emergências” no sentido de que são movimentos que emergem agora a uma escala que transcende os entornos locais. Entendemos, evidentemente, quando um autor como Boaventura de Sousa Santos (2010) aborda o que chamou de “sociologia das ausências e sociologia das emergências”. Mas ocorre que quando tratamos de “emergência” de coletivos como os que mencionamos aqui, ressoam ainda inquietações do tipo: “emergência” para quem, cara pálida? Porque estarmos hoje alheixs a iniciativas (que são infinitamente mais numerosas que esta muito breve e incompleta amostra que apresentamos aqui), pode ser uma escolha.

Isto é, talvez estejamos ainda escolhendo não olhar, não ouvir, não ler, não dialogar com estas outras intervenções no mundo. E aqui, sim, poderíamos acionar um outro sentido do termo “emergência”: trata-se talvez de urgências, de tarefas urgentes, de agendas de trabalho. Agendas de trabalho que incluem comunicar-nos a partir destes “abajos” que habitamos, que somos. Uma “globalização das bases”, na formulação de Arjun Appadurai (2007). Agendas que incluem dinâmicas que, como que inspiradas nos versos da canção que vai como epígrafe deste texto, nos comuniquem por vias outras que não aquelas que parecem ter sequestrado os sentidos do que seja Comunicação. Celebrar-viver a “comunicação como imaginação política” (Rincón, 2007, p.10). Comunicar-nos. Em seu sentido pleno. Contar-nos sobre o que andamos fazendo com-por-pelxs nossxs. Comunicação com CEP.

Se você chegou até aqui é bem provável que tenha alguns (ou muitos) reparos a este texto; quem sabe também tenha em mente diversos outros coletivos que não foram mencionados aqui e que precisam ser mais amplamente conhecidos. Pois bem, vamos adorar se você puder deixar seus comentários. Este é um trabalho em processo. Portanto, a ideia é pensá-lo coletivamente. Super obrigadx!

Bruna Hercog e Carlos Bonfim

Referências

Appadurai, A. (2007). El rechazo de las minorías. ensayo sobre la geografía de la furia. (trad. Alberto E. Álvarez y Araceli Maira). Barcelona: Tusquets Editores.

Bonfim, C., Cerqueira, R., Jesus, V., Santana, J. (2019) Salvador >saraus: quilombismos. In: Dalcastagné, R., Tennina, L. (orgs.) Literatura e periferias. Porto Alegre: Zouk Editora (no prelo)

Burch, S.(2003) El reto de articular una agenda social en comunicación. Publicado por Agencia Latinoamericana de Información (ALAI). Recuperado em07 de abril, 2019, de www.alainet.org/es/active/3033

Chauí, M. (2008) Cultura e democracia. In: Crítica y Emancipación, (1): 53-76, junho.

Hercog, B. (2016). De “menino” a “elemento”: onde trajetórias de cruzam. Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bahia, Brasil.

Martín Barbero, J. (coord.) (2009) Entre saberes desechables y saberes indispensables. Bogotá: Friedrich Ebert Stiftung/ Centro de Competencia en Comunicación para América Latina.

Mbembe, A. (2011) Necropolítica. (trad. Elisabeth FalomirArchambaut). Tenerife: Ed. Melusina. (original publicado en 2006)

Rincón, O., Saffon, M. P. (2007)et al. Ya no es posible el silencio. Textos, experiencias y procesos de comunicación ciudadana.Bogotá: Friedrich Ebert Stiftung/ Centro de Competencia en Comunicación para América Latina.

Santos, B. S. (2010) Uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: A gramática do tempo: por uma nova cultura política. São Paulo: Cortez,  93-135.

Santos, M. (2003) Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record.

Zibechi, R. (2018) Los desbordes desde abajo. El 68 en América Latina. México: Bajo Tierra Ediciones, Comunidad Autonomía y Libertad, Cooperativa El Rebozo.

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