Em tempos de reconfiguração do papel exercido pela educação superior no mundo, esforços direcionados à internacionalização se intensificam e se manifestam nos discursos como imperativo; como caminho para que os sistemas educacionais respondam a um contexto global complexo e incerto. Ao enaltecerem suas virtudes e suprimirem suas contradições, tais discursos acabam por neutralizar um fenômeno que envolve motivações e interesses distintos, um fenômeno que legitima determinados países, universidades e indivíduos como naturalmente superiores em relação a outros.
Os relatórios sobre educação superior no mundo revelam um flagrante descompasso na colheita dos benefícios proporcionados pela internacionalização. Enquanto o Sul, amparado em um imaginário global dominante, mimetiza estratégias exógenas e se consolida como cliente de produtos educacionais, é o núcleo do sistema mundial, por meio da hegemonia do poder, do saber e do ser, que polariza os fluxos da mobilidade acadêmica, detém os centros de P&D e comanda os rumos do ensino e da pesquisa mundial, determinando, inclusive, o que é “boa ciência”.
Os maiores receptores de estudantes internacionais de mestrado e doutorado são os Estados Unidos, o Reino Unido, a Austrália, a França e a Alemanha. Em 2015, 3,3 milhões de estudantes estiveram matriculados nos países da OCDE, mais da metade deles na União Europeia. Estudantes internacionais em universidades norte-americanas contribuem com mais de 35 bilhões de dólares anuais para a economia nacional (OECD, 2017). O Times Higher Education, ranqueamento de universidades centrado na produtividade da pesquisa nas formas de publicação e citação, demonstra que das cem primeiras classificadas, 41 são norte-americanas. Nenhuma delas situa-se na América Latina (THE, 2017). Segundo a Clarivate Analytics, os autores mais citados na Web of Science em 2017 provêm principalmente dos Estados Unidos, com 1644 pesquisadores, enquanto que os números relativos à América Latina são um da Argentina, um do Brasil, um do Chile, um da Colômbia e um do Panamá (CLARIVATE, 2017).
Esses e outros dados demonstram que o discurso em torno da internacionalização como bem incondicional para todas as nações caminha ao lado de dilemas como a hegemonia do Norte em termos de privilégio acadêmico e fornecimento de serviços; a crescente desvalorização das especificidades contextuais das instituições universitárias e das agendas de pesquisa; um “produtivismo acadêmico” que nada acrescenta às demandas sociais periféricas; a homogeneização cultural decorrente da internacionalização do currículo e das políticas linguísticas e, sobretudo, uma forte ameaça à concepção de educação superior como bem público e social.
Tratando-se de um fenômeno integrado à estrutura do capitalismo como sistema social histórico, a internacionalização da educação superior reflete interesses capitalistas. Compreender seus desdobramentos a partir dessa perspectiva implica em situá-la dentro de uma história colonial; em enxergar as assimetrias de oportunidades e a hierarquização de saberes que lhe são adjacentes como reflexos da desigualdade e da violência historicamente evidenciadas nas relações Norte-Sul.
A educação superior latino-americana tem sido particularmente funcional ao atual estágio de capistalismo acadêmico global e à perpetuação de relações neocoloniais nesse domínio. Além de um imperialismo orientado a transformar sistemas educacionais em um grande negócio, o imaginário em torno da internacionalização tem induzido políticas nacionais e institucionais a negligenciarem suas próprias especificidades.
A decolonização desse processo implica em contemplá-lo de uma perspectiva contextual; em situá-lo em seu próprio tempo e espaço e resgatar aquilo que faz sentido às sociedades nas quais ele se integra. No caso latino-americano, o centenário da Reforma de Córdoba, movimento no qual levantaram-se bandeiras em defesa da democratização da universidade, fornece pistas nessa direção. A extensão universitária em sentido amplo, associada à ideia de autonomia condicionada à sociedade, é central à construção de perspectivas contra-hegemônicas de internacionalização da educação superior: ao mesmo tempo em que diz respeito a um fenômeno “tipicamente latino-americano”, trata-se, possivelmente, do aspecto mais negligenciado pela internacionalização neoliberal.
Referências
Clarivate. (2017). Highly cited researchers – 2017. Retrieved December 19, 2017, from https://publons.com/blog/2017-most-cited-researchers-announced-2017//
OECD. (2017). Education at glance 2017: OECD Indicators. Paris: OECD Publishing.
THE. (2017). World University Rankings 2016-2017. Retrieved November 3, 2017, from https://www.timeshighereducation.com/world-university-rankings/2017/world-ranking#!/page/4/length/25/sort_by/rank/sort_order/asc/cols/stats
Ótimo artigo! Nossas questões não são as mesmas do Norte. Homogeneizar o sistema educacional (comprando deles) acaba deixando de lado nossas especificidades. Sinto que às vezes a internacionalização (e não só na educação) mais descaracteriza do que integra.
Obrigada pelo comentário, Andréia. De fato, a internacionalização da educação superior tem se construído segundo uma perspectiva hegemônica, de caráter exógeno, uma vez que manifesta a partir do incentivo direto de atores e interesses extra-regionais que historicamente guiaram as assimétricas políticas entre o Norte e o Sul. Por outro lado, há que se pensar em formas de se contrapor a essa hegemonia. O pensamento decolonial, que demanda uma revisão crítica dos conceitos hegemonicamente definidos pela racionalidade moderna em termos históricos, ontológicos e epistêmicos, é crucial nessa tarefa, pois possibilita pensar em outras formas de pensar, viver e fazer.