Em texto publicado em junho de 2019, contextualizei as medidas governamentais da gestão Bolsonaro no que diz respeito à educação superior brasileira. Argumentei que os diversos esforços empreendidos em defesa da universidade pública eram imprescindíveis, mas necessitavam transcender as categorias coloniais para que não acabassem justificando o próprio fim dessa instituição. Como Mignolo (2017, p. 17) ressalta em sua crítica decolonial, “se nos dirigirmos à modernidade, permaneceremos presos à ilusão de que não há outra maneira de pensar, fazer e viver”.
Embora o principal alvo dos ataques – a universidade pública – já estivesse definido, até recentemente nenhuma reforma abrangente havia sido implementada. As medidas alcançaram outra proporção quando, em junho de 2019, o Ministério da Educação anunciou o “Future-se: Programa Institutos e Universidades Empreendoras e Inovadoras”, voltado a fortalecer a ‘autonomia’ das universidades e dos institutos públicos federais (IFES) por meio do fomento à captação de recursos próprios e por vias da parceria com Organizações Sociais (OSs): empresas privadas que recebem subvenção do Estado para prestar serviços de interesse público (como saúde e educação).
Três eixos – 1. Gestão, Governança e Empreendedorismo; 2. Pesquisa e Inovação e 3. Internacionalização – compõem o Programa, cujo desenho tem aflingido de forma significativa as instituições a que ele se dirige. Entre as reações observadas até o momento, constam grupos de trabalho que têm subsidiado debates sobre o tema (como na Universidade Federal de Santa Catarina) e manifestações preliminares coletivas (como do Fórum das Instituições Públicas de Ensino Superior de Minas Gerais; das Instituições Federais de Ensino Superior do Estado do Rio de Janeiro; das Instituições Federais de Ensino Superior de São Paulo e da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior). A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por meio nota emitida pela reitoria, rejeitou o Programa em seu atual formato. Entre os argumentos expostos, consta:
«Estamos abertos ao diálogo permanente para fortalecer o ensino público, gratuito e de qualidade, porém, concluímos que há riscos no Programa Future-se relacionados à possibilidade de mudança futura da personalidade jurídica das Ifes, que são atualmente autarquias federais com a prerrogativa do autogoverno, além dos riscos à nossa integridade administrativa, pedagógica, científica e patrimonial. É nosso entendimento que o debate contínuo com os poderes federativos é capaz de constituir uma proposta que atenda as necessidades e o desenvolvimento efetivo das Ifes. Mas os princípios que elencamos devem estar assegurados, o que não é o caso nos termos propostos no Future-se. Ao contrário, o programa aponta numa direção diversa que não aborda os problemas centrais do financiamento do ensino superior em um contexto de profundo desgaste para as IFES submetidas à profunda instabilidade orçamentária» (UFRJ, 2019).
Como Elaine Tavares argumenta, muito embora a participação das instituições federais ao Future-se seja por ‘adesão’, muito provavelmente elas serão pressionadas a participar, como aconteceu no caso dos Hospitais Universitários em relação à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Há, portanto, “muito a debater, muito a esclarecer” (ANDIFES, 2019, p. 3). Neste texto, concentro-me no eixo de ‘Internacionalização’ que o Programa Future-se propõe. Na forma como se apresenta, constitui-se como a mais nociva forma de inserção internacional na educação superior.
‘Internacionalização da educação superior’ para quem?
No Brasil, aquilo que convencionou-se chamar de ‘internacionalização da educação superior’ tem se desenvolvido mediante o fomento do Estado, com maior projeção nas universidades públicas. A partir de 2010 – com o impulso de programas como o Ciência sem Fronteiras (CsF) (2011-2015), o Idiomas sem Fronterias (IsF) (2012-atual) e, sobretudo, o Programa Institucional de Internacionalização (Capes-PrInt) (2018-atual) – esse fenômeno adquiriu maior abrangência e intencionalidade no domínio da gestão universitária dessas instituições.
Em reflexões anteriores, tenho buscado demonstrar como embora a perspectiva ‘internacionalização’ presente nas agendas contemporâneas seja frequentemente enquadrada como um ‘bem incondicional’, capaz de elevar a ‘qualidade’ acadêmica, de formar ‘cidadãos globais’ e de induzir a uma participação ativa junto à ‘economia global do conhecimento’, há uma série de questões éticas e políticas em seu entorno que são contraditórias e contestáveis. A maioria das críticas ao fenômeno não ultrapassa os limites da Modernidade/Colonialidade1, todavia, se observa um crescente reconhecimento da necessidade de que a internacionalização não seja guiada (somente) por motivações econômicas/mercadológicas2.
Programas governamentais como o CsF, o IsF e o Capes-PrInt podem ser criticados pela perspectiva hegemônica de internacionalização que promovem. Por exemplo, o CsF representa o fluxo de mobilidade acadêmica Sul-Norte. Por sua vez, o IsF privilegia o Inglês em detrimento dos demais idiomas. Finalmente, o PrInt-Capes legitima a diferenciação entre instituições, funções universitárias e campos do conhecimento. Todavia, tais programas são condizentes com os interesses históricos do Estado brasileiro, seguem um padrão que concebe a educação superior como meio para alcançar objetivos desenvolvimentistas do País.
No caso do Programa Future-se, as diretrizes relacionadas à ‘internacionalização’ são genéricas, o que limita a possibilidade de análises detalhadas sobre os padrões a serem seguidos. Além disso, a proposta está aberta para consulta pública até 15 de agosto, o que poderá induzir a mudanças em seu formato inicial. Ainda assim, o material disponibilizado é revelador. O eixo aparece vinculado ao propósito de “promover as IFES brasileiras no exterior, elevando a posição das instituições nos rankings e índices internacionais, tais como o Times Higher Education e Web of Science” (MEC, 2019a, p. 11), com as seguintes competências designadas às IFES: estimular a mobilidade estudantil e docente no campo de pesquisa aplicada; revalidar títulos estrangeiros de universidades de ‘alta performance’; facilitar o acesso e a promoção ao ensino à distância; estabelecer parcerias com instituições privadas para promover publicações internacionais em journals; e conceder bolsas para mobilidade internacional de estudantes brasileiros com alta performance acadêmica ou atlética.
O vínculo direto da ‘internacionalização’ a uma política que fomenta instituições universitárias a captarem recursos para fins de sua própria sobrevivência, e que explicita objetivos de competitividade e de reputação internacional, sinaliza sua completa imersão em um paradigma mercadológico, que é altamente competitivo e tende a reforçar hierarquias em todos os níveis. Não se trata somente da continuidade de um viés hegemônico de internacionalização, mas de sua consolidação segundo os moldes neoliberais do capitalismo global universitário; “um sistema de valores que promove o interesse próprio, se não um egoísmo descontrolado” (Giroux, 2014, p. 1). Em um país como o Brasil, já marcado por desigualdades sociais históricas e profundas, os riscos se intensificam. Caso o ‘Future-se’ se efetive, as circunstâncias para perspectivas de inserção internacional que busquem por futuros mais inclusivos e sustentáveis; que se distanciem daquela orientada exclusivamente para atender às demandas do mercado mundial capitalista; estarão ainda mais restringidas.
Referências
ANDIFES. (2019). Carta de Vitória. http://www.andifes.org.br/andifes-carta-de-vitoria/. 9 ago 2019.
Brandenburg, U.; De Wit, H.; Jones, E. & Leask, B. Defining internationalisation in HE for society. https://www.universityworldnews.com/post.php?story=20190626135618704. 9 ago 2019.
Giroux, H. (2014). Neoliberalism’s war on higher education. 1 ed. Chicago, Illinois: Haymarket Books, 2014.
MEC. 2019. Consulta Pública do Programa Future-se. https://isurvey.cgee.org.br/future-se/. 9 ago 2019.
Mignolo, W. (2017). Desafios decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, 1(1), 12–32.
UFRJ. (2019). UFRJ se posiciona sobre Future-se, do MEC. http://macae.ufrj.br/index.php/2016-02-22-13-41-10/8-news/2920-ufrj-se-posiciona-sobre-future-se-do-mec. 12 ago 2019.
Notas
↑1 | Em minha tese doutoral (em construção) situo a ‘internacionalização’ em curso na matriz cultural do poder colonial; argumento tratar-se de um fenômeno amparado em imaginários, que somente se materializa por vias de desigualdade. |
---|---|
↑2 | Por exemplo, Brandenburg et al. (2019) fazem uso do conceito de Internationalisation in Higher Education for Society (IHES) para propor que as atividades de internacionalização estejam explicitamente voltadas a beneficiar a sociedade. |
Parabéns Fernanda! Corroboro com suas análises. Precisamos resistir e reagir.