DescargaMabel Freitas
Departamento em difusão do conhecimento.
Universidade Federal de Bahía, Salvador de Bahía, Brasil.
mabel_freitas@hotmail.com

Recibido: 18/05/2017 – Aceptado: 25/06/2017

 

Resumo: Este artigo objetiva evidenciar a importância dada à música pelo Bando de Teatro Olodum em seus espetáculos como mais um elemento dramático de comunicação com o público. Inicialmente, delineia-se uma breve linha do tempo com a história dessa companhia de presença e discurso negros e, em seguida, apresenta-se a utilização da linguagem musical em suas montagens. Percebe-se, assim, que a força dos tambores e o diálogo com outros ritmos contribuem para o desenvolvimento comunicativo por apresentar e intensificar o texto dramático numa orquestrada polifonia cênica((Coro de vozes que compõem espetáculos do qual a música, no Bando de Teatro Olodum, faz parte como mais um elemento cênico.)).

Palavras-chave: Bando de Teatro Olodum, música, polifonia cênica.

 

Abstract: This article shows the importance given to music by the Covey of Theater Olodum in its theatrical assembly as another dramatic element of communication with the public. Initially, a brief timeline is outlined with the history of this company of black presence and speech, and then the use of musical language in its montages is presented. It is thus perceived that the strength of the percussion and the dialogue with other rhythms contribute to the communicative development by presenting and intensifying the dramatic text in an orchestrated scenic polyphony.

Keywords: Covey of Theater Olodum, music, scenic polyphony

 

Oni saurê((Saudação iorubana para Oxalá, Hino do Bando de Teatro Olodum.))

Oni saurê
Aul axé
Oni saurê
Oberioman
Onisa aurê (…)

Baba saurê
aul axé
Baba saurê
oberioman

Baba saurê (…)

Ao dar voz e vez ao movimento social negro através das Artes Cênicas, o debate – atual e necessário – do Bando de Teatro Olodum rememora criticamente as falácias contadas sobre os negros na historiografia brasileira para desmitificar a perversa lenda criada pelo eurocentrismo sobre o escravismo brando e conformismo negro. O grupo oferece múltiplas informações que transcendem estereótipos livrescos aos seus espectadores (artistas, críticos, estudantes, militantes, pesquisadores e público em geral) e, por conseguinte, amplia nossos respectivos repertórios culturais com sua dramaturgia regida por uma afroforça percussiva.

O teatro artístico-militante de presença e discurso negros do Bando é um difusor de questões étnico-raciais que trazem à baila as nossas orientações cognitivas de heranças culturais africanas ressignificadas desde o século XVI com vistas às (des)continuidades e reinterpretações culturais diaspóricas – legítimas traduções contemporâneas de resistência negra. Em seus espetáculos e demais atividades (fóruns, laboratórios, oficinas, seminários dentre outras), observa-se um misto de informações vocais e corporais com diversidade de linguagens e saberes científicos e empíricos.

Essas atividades – com ou sem chancela universitária – tem a participação de artistas que também produzem teatro negro((Teatro negro é “o conjunto de manifestações espetaculares negro-mestiças, originadas na Diáspora, que lança mão do repertório cultural e estético de matriz africana, como meio de expressão, recuperação, resistência e afirmação da cultura negra” (LIMA, 2011, p. 82).)) engajado, mestres da sabedoria popular, militantes, estudantes e pesquisadores interessados pelas temáticas da negritude((Negritude é aqui entendida na perspectiva de Aimé Césaire (MOORE, 2010, p. 37) como “uma tentativa específica do mundo negro de compreensão teórica desse fenômeno poderoso que é o racismo e da articulação de respostas para contê-lo em suas ramificações socioeconômicas, combatê-lo no imaginário social e destruí-lo nas estruturas através de medidas políticas, culturais e econômicas concretas”. )) e possibilita (re)construção e difusão de memórias e saberes devido aos cruzamentos culturais e trocas significativas com repercussões para além das práticas cênicas. A formação acadêmico-profissional e vivência artística desses partícipes robustecem substantivamente esses momentos multirreferenciais de aprendizagem.

A militância cênica do Bando, que já comemorou bodas de prata (1990 a 2017), utiliza as bagagens culturais multiétnicas trazidas do além-Atlântico, ressemantizando a nossa cultura afrodiaspórica, uma vez que, desde o diálogo dos tumbeiros entre as etnias,

Nenhum grupo, por mais bem equipado que esteja, ou por maior que seja sua liberdade de escolha, é capaz de transferir de um local para outro, intactos, o seu estilo de vida e as crenças e valores que lhe são concomitantes. As condições dessa transposição, bem como as características do meio humano material que a acolhe, restringem, inevitavelmente, a variedade e a força das transposições eficazes (MITZ; PRICE, 2001, p. 19).

Aliando criatividade e consciência política, o Bando é considerado o maior grupo teatral de expressividade da militância negra baiana por abrir um espaço de discussão e preservação da cultura negra pelo viés das artes cênicas. As temáticas político – filosóficas discutidas nos espetáculos através do contra discurso da historiografia hegemônica e eurocêntrica sobre os negros são os pilares deste grupo, uma referência nacional como teatro popular de qualidade que bebe na suculenta fonte da sonoridade negra e traz à tona questões contemporâneas e locais (BANDO, 2015).

Ao visibilizar as histórias dos negros, o elenco reafirma que, desde a chegada aos portos brasileiros, eles são agentes construtores da sua história intelectual, dotados de capacidade cognitiva. Desta maneira, contrapõe-se aos atributos negados desde o período colonial até a contemporaneidade em que foram considerados outrora como não-humanos e ainda na contemporaneidade como não-[ou quase]cidadãos (GILROY, 2001). Primando pela dignidade e altivez sem o folclorismo etnocêntrico, o corpo – máscara do ator nos brinda com seu manancial histórico-social de memórias presentificadas em seu corpo (LIMA, 2008).

Em se tratando de manifestações artísticas da cultura((Para efeito deste trabalho, leva-se em consideração a perspectiva de cultura apresentada por Pinho (2004, p. 231), como “a constante produção de significados e o processo de conferir esses significados às coisas, na medida em que as classificamos dentro de uma ordem simbólica”.)) negra, muitas vezes, o mercado capitalista industrial dá ênfase apenas ao seu caráter artístico-musical, desprezando-o como estratégia político-social “apesar do forte discurso étnico que carregam” (Pinho, 2004, p. 218). Antigamente, elas eram consideradas – pela visão superficialista – uma variante da ibero-americana sem identidade própria nem originalidade. Atualmente, apesar de terem alcançado autonomia intelectiva, ainda são aviltadas pela indústria cultural capitalista. Vistas pelos especuladores que só visam ao lucro como meros produtos e/ou objetos culturais, são consideradas produções folclóricas de um povo exótico e primitivo.

Sobre essa mercadorização, Pinho (2004, p. 211) assinala que esse processo “reduz a cultura negra a um conjunto limitado de ‘expressões’ ou ‘símbolos culturais’, a objetos que podem ser trocados, comercializados e consumidos, interferindo portanto em seu sentido político.” Assim, estigmatiza essas manifestações culturais e, além de ser alienante, corporifica a hegemonia da ideologia dominante. Além disso, essa abordagem eurocêntrica reforça estereótipos, pois “como no tempo da escravidão, corpos negros são selecionados, de acordo com tamanho, silhueta e habilidades” (Ibidem, 2004, p. 217).

Com elementos (in)traduzíveis, imprevisibilidade de interpretações e multiplicidade de sentidos que ultrapassam as dimensões auditivas, olfativas, orais e térmicas, o Bando – contradizendo essa supracitada visão sobre a cultura negra – transforma a caixa cênica num lócus de difusão de conhecimentos através das relações semântico – discursivas dos seus textos dramáticos com temática político – filosóficas banhadas em sua peculiar afro musicalidade. É um convite para toda a equipe e os espectadores refletirem sobre “uma linguagem teatral própria como frutos de um discurso estético que se transmutou, aos poucos, em ferramenta de transformação social e política” (MEIRELLES apud BANDO, 2015).

Sobre esse ato comunicativo consigo e com outrem na caixa cênica, Hall (2003, p. 346) considera que “é somente pelo modo no qual representamos e imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber como nos constituímos e quem somos.” Assim, ratificam-se a importância e a força dessas representações de concepções particulares da vida e do mundo no processo de afirmação das identidades em grupos culturais. Essas vozes de narrativas cotidianas e locais – de uma maioria negra –, ao se tornarem inaudíveis, configuram-se como “um terreno de luta pelo poder, de consentimento e de resistências populares” (Ibidem, p. 349), descentralizando a hierárquica cultura hegemônica dominante.

O Bando de Teatro Olodum, ao desvelar a cultura negra, quebra esse paradigma folclorizante através dos seus espetáculos que interpenetram as vertentes ideológica e artística. Essa companhia há 26 anos revela talento e resistência, intervém na vida pública e legitima a negritude. Em todas as suas montagens que mesclam teatro, dança, música e poesia dá visibilidade a relatos de vozes ainda inaudíveis nos mais diversos canais de debate social e político e recalcadas dentro do movimento artístico brasileiro hegemônico e eurocêntrico.

Cientes de que “para o africano, a palavra é pesada” (KI-ZERBO, 1980, p. 28), preocupados em fugir da superficialidade e com o compromisso de não enveredar pelo viés folclorizante, os atores fazem pesquisas de campo com o intuito de coletar os dados que serão transformados em texto. Além disso, “na tradição ancestral africana a coletividade é elemento central, seja nas decisões cotidianas, nas construções rituais ou nas produções culturais e simbólicas” (BANDO, 2015). Baseando-se nesse prisma, o Bando busca também a participação ampla dos integrantes na criação dos espetáculos.

Desde a entrada em cena, o grupo já estreita a sua relação com a cultura africana através de um ritual de celebração. Ainda no camarim, todos os atores repetem três vezes a saudação iorubana Oni Saurê (epígrafe deste artigo), utilizada como um chamamento a Oxalá – pai de todos os orixás. Como “Oxum, deusa das águas, é a entidade feminina que rege o Bando” (UZEL, 2003, p. 59), é sempre uma voz feminina quem puxa o coro. O ritual possui três momentos, a saber: inicialmente, faz-se o chamamento; depois, os orixás cantam com Oxalá; no final, acontece a despedida.

Após esse (aqui, simbólico) rito inicial, desvelar-se-á uma breve linha do tempo com a história do Bando de Teatro Olodum que desde 17 de outubro de 1990 até o presente momento apresenta um mundo negro com uma afro musical polifonia cênica em palcos nacionais e internacionais. Em seguida, entoar-se-á um canto singelo e divino de sonoridade negra – escolha ideológica do grupo para nortear o seu trabalho lastreado por sua indiscutível negra razão.

“É o mundo negro que viemos mostrar para você…”((“Que bloco é esse?”, canção do Ilê Aiyê.))

O Bando, inicialmente, era mais uma ação educativa do Grupo Cultural Olodum – bloco afro-baiano conhecido internacionalmente pelos tambores que ecoam um discurso antirracista, sediado desde a sua criação, em 1979, no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador. De um lado, “o Olodum, que já valia como um grande referencial de autoestima da juventude negra da cidade, havia decidido se aproximar do teatro como forma de conquistar mais um espaço de formação ideológica e fortalecer seu prestígio” e criar “um espaço precioso de crítica, reflexão e militância” (UZEL, 2003, p.34) e, de outro, Marcio Meirelles((Diretor teatral, cenógrafo, figurinista e ex-Secretário de Cultura da Bahia (2007 a 2010). Começou a fazer teatro militante universitário como atividade política em 1972. Pela larga experiência no fazer teatral que inclui estudos nova-iorquinos, o Bando é considerado a síntese mais madura e integrada à sua identidade cultural (BANDO, 2015; MEIRELLES, 1995; UZEL, 2003).)) idealizou um projeto estético de teatro popular em que lhe interessava

A teatralidade dos rituais sagrados e das festas de rua da Bahia. Apesar de serem ricas do ponto de vista cênico e dramático, essas manifestações ainda não haviam sido estruturadas a partir de uma linguagem teatral própria e independente do rito, como aconteceu com o teatro no Japão, na Índia e na Grécia. O objetivo do diretor não era criar essa estrutura, mas sim investigar de que maneira um material solidificado de forma tão espontânea, ao longo de várias gerações negras, poderia servir de veículo para histórias contemporâneas (Ibidem, p. 37).

Meirelles propôs um trabalho cênico partindo da realidade cotidiana do povo baiano e teve seu projeto aceito por João Jorge Rodrigues (presidente do Grupo Cultural Olodum) que firmou uma parceria com autonomias financeira e temática para esse grupo teatral. Caetano Veloso (apud MEIRELLES, 1995, p. 13) considera o resultado desse encontro “muitíssimo feliz”, pois considera maravilhoso o Olodum ter juntado seu nome à palavra teatro: “tudo o que se vê, tudo o que se ouve tem a marca da verdade, no entanto, tem também o dom de produzir belezas que apontam para um enriquecimento da vida”.

Em outubro de 1990, mês da audição, jovens negros e não negros dos mais diversos bairros periféricos de Salvador com e sem experiência artística, lotaram a Casa do Benin, no Pelourinho, para se inscreverem na oficina que seria ministrada, almejando o ingresso no elenco definitivo. Segundo Dantas (apud MEIRELLES, 1995, p. 44),

Cem pessoas inscritas, 30 escolhidas para uma seleção final de vinte. Vindos de todos os pontos da cidade, a formação inicial do grupo – cuja diversidade se mantêm até hoje – reunia jovens negros do subúrbio, do centro da cidade, trabalhadores, alguns com experiência de teatro de militância sindical ou associativa, outros que nunca haviam feito teatro e outros ainda que jamais tinham visto uma peça ou sequer entrado num teatro.

Sob a égide de Marcio Meirelles (direção), Chica Carelli (codireção e preparação musical), Maria Eugênia Milet (improvisação), Leda Ornelas (preparação corporal) e Hebe Alves (preparação vocal), surgia um teatro de tríade popular – temática, público-alvo e origem dos atores – batizado mais tarde com o semanticamente polêmico nome de BANDO a que se acresceu os vocábulos TEATRO e OLODUM. Esse quinteto, experiente desde a década de 80 no cenário artístico baiano, deu suas primeiras aulas e ministrou seus primeiros ensaios no antigo prédio da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, no Pelourinho (UZEL, 2003). Chica Carelli((Diretora teatral, atriz, professora de teatro e coordenadora das Oficinas Vila Verão do Teatro Vila Velha. Trabalhou como atriz e assistente de direção no grupo Avelãs e Avestruz e como atriz/estagiária do grupo Théâtre Du Soleil, na França. Foi aluna na Academia de Música Atual, vocalista do grupo Ilu Batá e gravou com Jimmy Cliff. No Bando, encenou os espetáculos Um tal de Dom Quixote, Ópera de Três Reais (1998), Sonho de Uma Noite de Verão (1999), Fatzer (2001), Oxente, Cordel de novo? (2003) e O Muro (2004). Em 2007, dirigiu Áfricas, seu primeiro espetáculo à frente do Bando (MEMORIAL, 2011).)) é a única que permanece até hoje na direção.

Dantas (apud MEIRELLES, 1995, p. 45) esclarece que os atores faziam “aulas de dança, música, voz, interpretação, confecção de cenários, figurinos, carpintaria, iluminação” e, como havia heterogeneidade na formação profissional do elenco, a direção utilizava “a diversidade de técnicas e de ofícios para fazer vicejar o talento natural de cada um”. Sobre o pioneirismo popular do grupo na dramaturgia baiana, Bião (2009, p. 262) esclarece que

O Bando de Teatro Olodum, o primeiro, desde os elencos profissionais mestiços com predominância negra do século XIX que proliferaram no Brasil, a reunir um elenco e – apenas no seu caso – também temáticas, marcantemente negras, contribuiria para a criação de um teatro com a cara, o espírito e o corpo mais tipicamente baianos. Negritude, muito humor e autorreferências [a vida cotidiana da população afro-baiana] identificariam assim a baianidade e o próprio teatro mais evidentemente característico dessa cultura.

Dantas (apud MEIRELLES, 1995, p. 45) corrobora:

Depois de um teatro ideológico, um teatro estético. Agora um teatro vital. Decidido a transformar em produto teatral a riqueza dos gestos, sons, ritmos e significados da baianidade, Marcio Meirelles encontrou naquele grupo de jovens atores negros a substância para uma dramaturgia particular, única, resultado de uma estreita cumplicidade entre a vida e a arte. No palco, vozes, corpos e sons que parecem – e que verdadeiramente são – saídos da vida real. Mas aqui, diferentemente de outras tentativas históricas de teatro popular – onde o povo era tema de investigação ou objeto de culto – o povo é artista e é criação.

A primeira sugestão para a estreia foi o espetáculo Santa Joana dos Matadouros (Bertolt Brecht), depois As bacantes (Eurípedes), em seguida um Auto de Natal, mas todos foram sucumbidos pela comédia musical Nós no Pelô que mais tarde passou a se chamar Essa é Nossa Praia. Desde esse primeiro espetáculo, o grupo começou a exercitar suas características mais genuínas: a pesquisa de campo e a criação coletiva. Após a investigação do cotidiano dos moradores do Pelourinho, os discursos foram construídos, os personagens corporificados e as falas já conhecidas pelos atores no seu dia a dia foram representadas no palco sob a direção meirelliana (UZEL, 2003).

Em 1991, o Bando estreou a peça Essa é Nossa Praia, numa das salas da antiga Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus, no Centro Histórico de Salvador, contando com a participação da Banda Mirim do Olodum. No palco, desvelava-se o quadro social dos moradores do Pelourinho. A força da simbologia dos tipos humanos desse território deflagrava: “viver no Pelourinho como um fator de identidade fundamental no entrelaçamento daqueles destinos” (DANTAS apud MEIRELLES, 1995, p. 46).

Muitos dos personagens de Essa é nossa Praia (1991) reapareceram em outros espetáculos nessa mesma década, como Ó Paí, Ó! (1992), Bai bai Pelô (1994), Zumbi (1995), a obra brechettiana Ópera de três mirréis (1996), Ópera de três reais e Um tal de Dom Quichote (1998). Compuseram também a produção dessa década de 90 os espetáculos Onovomundo (1991), Zumbi está vivo e continua lutando (1995), Erê pra toda vida – Xirê (1996), Cabaré da Rrrrraça (1997) e Já fui (1999). Além desses, os atores encenaram alguns textos da dramaturgia mundial, como Woyseck, de George Büchner (1992), Medeamaterial, de Heiner Müller (1993) e Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare (1999) (BANDO, 2015).

Os espetáculos Essa é nossa Praia (1991), Ó Paí, Ó! (1992) e Bai bai Pelô (1994) formam a chamada Trilogia do Pelô (1995). Esses textos foram editados e publicados no livro homônimo que também reunia outros textos. Sobre o grupo, Bião (apud MEIRELLES, 1995, p.16), reverbera que,

Desde 1990, é o bando anunciador dessa nova (velha) civilização baiana, da qual o teatro que incorpora consciente e definitivamente tipos, personagens e formas de negritude faz parte. Aí, novas tecnologias e tradição vêm gerando novos valores éticos e estéticos. Sua trilogia de espetáculos “Essa é nossa praia”, “Ó Paí, ó” e “Bai, bai, Pelô” (…) evidenciam esta tendência no seio de um grupo cultural como o Olodum, que atraiu artistas de teatro de formação nitidamente europeia e que aí se transformaram em artistas de um novo tipo: tipicamente baiano, genuinamente universal e tradicionalmente contemporâneo.

Através da experiência com os clássicos Woyseck (1992), Medeamaterial (1993) e Sonho de uma noite de verão (1999), ao interpretarem textos que não foram criados nem vivenciados pelo elenco, o grupo deixou claro que “não estava estilisticamente limitado ao universo da baianidade” (DANTAS apud MEIRELLES, 1995, p. 48). Decidiu, assim, ousar sem perder a identidade e nas três obras internacionais mantiveram o estilo do Bando.

Em 1994, o Bando tornou-se um dos grupos residentes do Teatro Vila Velha; até então, os atores ensaiavam em qualquer sala disponível da Faculdade de Medicina. Antes, entretanto, o grupo transitou por outros palcos soteropolitanos. Alguns teatros serviram de sede provisória em algumas temporadas para ensaios e apresentações das suas peças como o Teatro Gregório de Matos e Teatro do ICBA (Instituto Goethe) e outros – Teatro Castro Alves, Teatro Expresso Bahiano (Clube Bahiano de Tênis) e Teatro Santo Antônio (atual Teatro Martim Gonçalves) – apenas para apresentações (UZEL, 2003).

Esta nova casa do Bando – Teatro Vila Velha, situado no Passeio Público, em Salvador – na época, passava por uma reforma e contou com o apoio de todos do Bando (atores e diretores) no processo de revitalização do espaço; como voluntários, todos que tinham alguma disponibilidade de tempo, assumiram tarefas administrativas e de apoio técnico. Já que nem sempre encontravam salas disponíveis ou em condições adequadas para os ensaios. Essa migração aconteceu concomitantemente ao rompimento com o Grupo Cultural Olodum.

Esse cisma se deu devido à ideologia do Bando e do Olodum sobre o binômio patrimônio/turismo, reforma do Pelourinho e a relação direta com as indenizações e/ou induções para a saída dos moradores não coadunarem. Através do espetáculo Bai Bai Pelô (1994), o elenco colocou nos palcos possíveis respostas – “teriam sido expulsos, indenizados ou induzidos a sair? (…) Quem ficou, quem saiu, quem voltou?” (MEIRELLES, 1995) – das vozes dos seus tipos humanos encenados em Essa é nossa Praia e Ó Paí, Ó! sobre as suas locomoções e/ou permanências. Para isso,

A partir de um trabalho de investigação e intensivos contatos com moradores do lugar – que permaneceram e que saíram – líderes comunitários, entidades culturais, além de debates com a presença de órgãos públicos, da sociedade civil organizada, da universidade, de comerciantes e moradores, surgiu o texto da peça que, além de evitar maniqueísmos apressados para explicar um fato social complexo, consegue esboçar as primeiras respostas para aquelas questões que hoje os baianos se fazem (MEIRELLES, 1995, p. 50).

Paralelo a isso, o Grupo Cultural Olodum lançou a canção Cartão Postal (1994) em que os versos reverberam que “O Pelourinho não é mais aquele/ Olha a cara dele/ Você não fica à toa/ Tem muita gente boa”, esclarecem que “Negros conscientizados/ Cantam e tocam no Pelô”, asseveram “Pelourinho, primeiro mundo/ Cartão Postal de Salvador” e finalizam num convite “Ê! Passa lá, passa lá, passa lá que eu vou/ Ê! Passa lá, passa lá, passa lá no Pelô.” Destarte, manifesta a sua posição sobre o destino cultural e artístico da área.

Em apenas quatro anos, a parceria entre o Bando de Teatro Olodum e o Grupo Cultural Olodum chegou ao fim. O Bando perdeu o apoio institucional do Olodum, embora permanecesse homônimo ao grupo. Com isso, a Banda Mirim do Olodum também deixou de participar dos espetáculos do grupo e os meninos voltaram-se apenas para as atividades da Escola Criativa do Olodum. Vale ressaltar, todavia, que o livro Trilogia do Pelô foi publicado pela Editora Olodum.

Nessa década de 90 houve também substituições na direção (preparação vocal e musical) do Bando. Com exceção do diretor, idealizador e “pai biológico” Marcio Meirelles e da codiretora Chica Carelli, as fundadoras Maria Eugênia Milet (improvisação), Leda Ornelas (preparação corporal) e Hebe Alves (preparação vocal) saíram do grupo. Em 1993, o bailarino José Carlos Arandiba (Zebrinha)((Bailarino profissional com experiências internacionais em Holanda, Mônaco, Nova Iorque, Paris e Suécia. Especializou-se em jazz em dança clássica e moderna. Ensinou na Stadeliyk Conservatoriam en dans Academie te Arnhem, na Academie Internationale de Paris na França, no Project Studio em Munich e na Federatie Friy Tiyed na Bélgica. No cinema, coreografou para o filme Wild Orchid (1990), de Zelman King e, como ator, participou de Besouro (2009). Atualmente, é também coreógrafo da Companhia dos Comuns e diretor artístico do Balé Folclórico da Bahia (BANDO, 2015; TEATRO, 2015; UZEL, 2003).)) tornou-se o coreógrafo do grupo e, em 1996, assumiu a direção musical da companhia Jarbas Bittencourt((Músico, compositor, cantor e coordenador de atividades de música no Teatro Vila Velha, fundou em 1993 a Confraria da Bazófia – banda que lançou o primeiro coletivo de compositores em Salvador na década de 90. Produziu o CDs Sou Bamba e Rock`n`Roll (Sandra Simões), Trilhas do Vila, Da Ponta da Língua a Ponta do Pé, 3x Novos Novos e Alvoradas e Ouras Canções do Arraial (BANDO, 2015; TEATRO, 2015; UZEL, 2003).)) (UZEL, 2003). Nesse ínterim, alguns atores saíram do elenco devido a dificuldades financeiras do grupo, insatisfações com a direção e/ou colegas e também por priorizar outros interesses pessoais. Através de novas oficinas e audições, outros artistas ingressaram.

Outras realizações artísticas marcaram significativamente esses primeiros dez anos de existência: a exibição do espetáculo Essa é nossa praia na Televisão Educativa (TVE – Bahia); as participações, em 1991, no clip internacional Samba Reggae (Jimmy Cliff), em 1993 no clip Jesus Cristo (Mara Maravilha) e em 1994 no filme Jenipapo (Monique Gardenberg); as exposições de máscaras em 1991 e de fotos dos espetáculos em 1993; a publicação de Trilogia do Pelô (livro composto pelas peças Essa é nossa praia, Ó Paí, Ó! e Bai Bai Pelô além de outros textos) em 1995 (UZEL, 2003). Esses trabalhos ratificaram a aceitação do público e da crítica ao grupo que ganhava cada vez mais visibilidade.

Bião (apud MEIRELLES, 1995, p.19) considera que a criação, produção e circulação dos espetáculos do Bando pelo país além dessa publicação pela Editora Olodum marcaram uma mudança quantitativa e qualitativa na história cruzada da negritude e do teatro na Bahia e no Brasil. Dantas (apud MEIRELLES, 1995, p. 43) corrobora:

Para o mundo do teatro baiano o aparecimento do Bando já é um fato de consumada importância. Escapando à solidão de um teatro por muito tempo distanciado dos valores da nossa cultura, o Bando surge com uma proposta de mergulho nessa identidade cultural a que, não sem uma ponta de orgulho, denominamos baianidade.

No século XXI, as montagens do Bando continuaram a todo vapor: Material Fatzer, de Brecht (2001), Um pedaço de sonho (2002), Relato de uma guerra que (não) acabou (2002), Oxente, cordel de novo?, de João Augusto (2003), O Muro, de Cacilda Povoas, e Autorretrato aos 40 (2004), Áfricas (2006) – primeiro espetáculo infantojuvenil, Bença (2010), (2012), criação conjunta do Bando com o mestre do Butoh (estilo de dança-teatro japonês) Tadashi Endo e Erê (2015), com direção de Fernanda Júlia (fundadora e diretora do NATA – Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas) e dramaturgia de Daniel Arcades (ator e dramaturgo do NATA) (TEATRO, 2015).

As atividades artísticas, no corrente século, foram bastante relevantes para a história e projeção nacional e internacional do Bando, a saber: a adaptação homônima do espetáculo Ó Paí, Ó! para o cinema, em 2007, e para a minissérie da Rede Globo também homônima, em 2008 e 2009, participação do filme Jardim das Folhas Sagradas (Póla Ribeiro), lançado em 2011, Projeto “Outras Áfricas” em que se realizaram oficinas de teatro em escolas públicas soteropolitanas em 2010, Projeto “Respeito aos mais velhos” em que ministraram-se oficinas de memória, identidade, dança e música nas cidades pelas quais fez-se pesquisa de campo para o espetáculo Bença, Oficinas de Performance Negra; Fóruns Nacionais de Performance Negra (BANDO, 2015) .

Nesses fóruns, pesquisadores e artistas nacionais e internacionais discutiram “o poder e o vigor da criação artística da população negra deste país” e “companhias negras de todo o país (…) troca[ra]m experiências e debate[ra]m sobre sua capacidade criativa e transformadora”. (BANDO, 2015) Na primeira edição do evento, foi redigida a Carta de Salvador, um manifesto que elencou as estratégias dos participantes, a saber:

Criação de formas, permanentes, de comunicação e intercâmbio nacional e internacional, que possibilitem a ampla disseminação de informação e conhecimento; Articulação política no enfrentamento conjunto de questões afins; Criação de redes de interlocução e de um banco de dados que facilitem o trânsito de informações de mútuo interesse, inclusive as relativas aos meios de acesso ao patrocínio e aos fomentos públicos e da iniciativa privada. Criação de uma rede de comunicação para fortalecer regionalmente e nacionalmente o Fórum Nacional de Performance Negra; Mapeamento dos grupos; Realização de fóruns regionais, municipais e estaduais; Utilização da Lei 10.639/03; Extensão de atividades do 20 de novembro ao longo do ano; Capacitação dos grupos para sua melhor participação em editais e afins; Efetiva participação dos grupos em espaços de decisão de políticas culturais; Constituição de espaços físicos para apresentação de produções das artes negras; Utilização do selo do Fórum Nacional de Performance Negra em todo material promocional dos Grupos e das Companhias que o compõem  (MELLO, 2005, p. 15).

Em parceria com a Companhia dos Comuns((Companhia teatral carioca, composta apenas por atores negros, que também aborda a temática da negritude nos seus espetáculos e tem como referência o Teatro Experimental do Negro (TEN).)) desde a fundação e apoio das Secretarias da Cultura e da Promoção da Igualdade do Estado da Bahia, Fundação Nacional de Artes, Fundação Cultural Palmares e Petrobras em algumas das edições, nos Fóruns, realizaram-se “palestras, mesas redondas, debates, oficinas, grupos de trabalho (encontros dos representantes regionais) e apresentações de teatro e dança” (BANDO, 2015). Os participantes compartilharam

Uma série de realizações e valores, comprometidos com uma prática artístico-cultural que, nos seus modos de criação e de reflexão, reafirma a dimensão dinâmica das matrizes afro-brasileiras (…) Todos têm em comum a disposição e o empenho de viabilizar manifestações artísticas autônomas. Ou seja, livres das imposições culturais e financeiras que privilegiam ideais e valores eurocêntricos, os quais tentam negar e restringir o pleno direito de expressão da identidade negra e de nossa cidadania (MELLO, 2005, p. 15).

Outra frente de ação do Bando é a atuação em comunidades desprivilegiadas economicamente. Com o comprometimento social como uma espinha dorsal do seu repertório, o grupo ministrou/ministra oficinas de teatro, dança e música em escolas públicas e em cidades brasileiras locus de pesquisa de investigação das suas montagens ou outras em que tiveram o apoio da Prefeitura e de suas respectivas Secretarias. Destacam-se aqui os Festivais “A cena tá preta!”, organizados pelo grupo em parceria com o Coletivo de Produtores Culturais do Subúrbio, que buscam dar mais visibilidade às artes negras e o Projeto Tomaladacá que abre espaço para artistas de escolas públicas, igreja e teatro de bairro visibilizem seus trabalhos através de apresentações no Teatro Vila Velha.

“O canto singelo e divino traz simbolizando essa negra razão”((“Raça Negra”, canção do Olodum.))

A teatralidade peculiar do Bando tem matrizes estéticas, étnicas, históricas, linguísticas e religiosas da cultura africana, da historiografia da escravidão atlântica e da situação atual do negro brasileiro. Com suas produções artísticas despidas da visão hegemônica e eurocêntrica da sociedade brasileira ensinada em escolas e academias, o grupo utiliza as bagagens culturais multiétnicas trazidas do além-Atlântico, “o negro e sua tradição sociocultural como matéria-prima de seus espetáculo” (BANDO, 2015). Durante toda a sua trajetória, reverbera a cultura negra nos âmbitos históricos, antropológicos e comunicacionais.

A música, em seus espetáculos, é mais um elemento dramático de comunicação com o público a partir da força dos tambores e de possíveis diálogos com axé music, rap, reggae dentre outros ritmos populares. A sua utilização dentro desse princípio estético contribui para o desenvolvimento comunicativo por apresentar e intensificar o texto dramático. São textos falados e/ou cantados, músicas rigorosamente selecionadas pelo elenco ou especificamente compostas para espetáculos, relação dialógica intensa com o operador (também ator) de som e – devido à formação musical dos atores – toques ao vivo de instrumentos que compõem uma orquestrada polifonia cênica.

O recurso musical faz parte do processo criativo da montagem e através da supracitada polifonia cênica – base conceitual dos espetáculos dessa companhia – a percussão dá cadência ao texto dramático. Como um elemento estético do grupo, a música ao vivo com “a percussão no palco [é] marca característica de quase todas as encenações do Bando ” (UZEL, 2003, p. 46). Essa escolha ideológica para nortear o seu trabalho metodológico já evidenciava a importância da música de ascendência africana como mais uma possível catalisadora de emoções da plateia. A proposta era que, em cada espetáculo, o corpo – máscara do ator, utilizando em cena o seu manancial histórico-cultural,

Invada o imaginário de quem o assiste, mas, de tal modo que possa o espectador ser tocado em sua humanidade e desarmado em suas expectativas. Que como estandarte apreenda o espectador pelo que é e representa, e que o permita vivenciar em sua inteireza o ato, o espetáculo apresentado (LIMA, 2008, p. 110).

Desde a estreia nos solos soteropolitanos em Nós no Pelô, que mais tarde passou a se chamar Essa é Nossa Praia (1991), “a música, já nesse primeiro momento, desponta como elemento dramático fundamental: as batidas dos tambores da Banda Mirim do Olodum, em cena, conduzem o espetáculo” (DANTAS apud MEIRELLES, 1995, p. 46). Nessa montagem, o quadro social dos moradores do Pelourinho foi desvelado por alguns tipos humanos: o militante negro engajado na luta contra a discriminação racial, o anônimo que sonha ser artista, o gari que queria ter um salário mais digno, o traficante de drogas, o policial corrupto dentre outros (U ZEL, 2003).

Esse rufar dos tambores já delineava seus traços identitários com a ancestralidade africana, uma vez que para Tinhorão (2008, p.60),

Ao se defrontarem os batuques de africanos e crioulos da colônia e do vice-reino com a diversidade de sugestões de cantos e danças de negros, de alguma forma desestruturados – em parte por influência das condições locais, e, parte por mudanças ocorridas na própria África –, os brancos e mulatos brasileiros não encontraram nenhuma  dificuldade em se apossar dos elementos a que mais se adaptavam, para com eles compor novas formas de danças e de cantos, logo tornados nacionais.

Ao ser utilizada como uma forma de comunicação com o público e uma catalisadora de emoções da plateia, a afro musicalidade, que faz parte da dramaturgia negra, também reinterpreta o legado cultural africano. Em cena, têm-se “códigos culturais partilhados” (HALL, 1996, p. 68) que contribuem efetivamente para manter vivo o vínculo com a África e a ligação com a ancestralidade apesar da hegemonia cultural eurocêntrica na sociedade brasileira como um todo e até mesmo nas artes cênicas desta Roma Negra. Nesse continente tão rico e plural a que devemos origens abissais, os instrumentos são veículos sagrados utilizados na narrativa oral.

O interesse do Bando pela formação musical dos atores ratifica o que Ki-Zerbo (1980, p. 30-31) nos ensina sobre a importância dos instrumentos musicais quando esclarece que se incorporam

Ao artista, e seu lugar é tão importante na mensagem que, graças às línguas tonais, a música torna-se diretamente inteligível, transformando-se o instrumento na voz do artista sem que este tenha necessidade de articular uma só palavra. (…) A música encontra-se de tal modo integrada à tradição que algumas narrativas somente podem ser transmitidas sob a forma cantada.

Esse viés identitário foi ao mesmo tempo simultâneo e complementar, pois, logo ao ingressarem no grupo, os atores já faziam aulas também de música. Dessa forma, após o rompimento com o Grupo Cultural Olodum quando de retirou do palco os tambores dos meninos talentosos da Banda Mirim, o elenco evidenciou, aliado à utilização de um operador (também ator) de som, o seu próprio talento percussivo. Nas palavras do diretor musical Jarbas Bittencourt (apud UZEL, 2005, p. 144):

Quando eu encontrei o grupo, a força dos tambores já estava ligada ao canto deles. Até então, eu não tinha trabalhado com percussão no sentido de ter a preocupação de me aproximar da musicalidade afro-baiana e também nunca tinha feito trilha sonora para teatro. O que eu faço no Bando é colocar a música a serviço do que se pretende como encenação, discurso e, na parceria com Zebrinha, o que se busca com o corpo.

A busca pelas raízes africanas e a religiosidade do cotidiano baiano foram encenadas a partir do segundo espetáculo: Onovomundo (1991). Neste, o Bando abordou as “origens do povo baiano segundo as quatro nações do candomblé: bantu, jêje, nagô e candomblé de caboclo, esta última criada na Bahia pela mistura das influências africanas com a mitologia religiosa indígena”. (DANTAS apud MEIRELLES, 1995, p. 46) No palco, foram sonoramente encenados

Contos sobre a criação do mundo, de acordo com as tradições africanas. Os atores formaram rodas no palco para narrar cada lenda, abordaram a vinda dos escravos para a América e reafirmaram o rito como elemento de resistência da identidade negra. (…) Trabalhou[-se] com os quatro elementos básicos da natureza: ar (associado à nação bantu), fogo (nagô), terra (jêje) e água (candomblé de caboclo) (UZEL, 2003, p. 55-56).

Segundo Dantas (apud MEIRELLES, 1995, p. 47), “com ‘Onovomundo’, o Bando de Teatro Olodum aprofunda a sua relação com as raízes da baianidade e também avança na definição de uma estética que vem se afirmando a cada espetáculo”. Em seu terceiro espetáculo Ó Paí, Ó (1992), os personagens de Essa é nossa praia voltaram ao palco acompanhados de outros tipos humanos – também moradores do Pelourinho – para discutir temas como o modismo da Terça da Bênção((Evento tradicional das noites de terças-feiras em que missas e shows artísticos privados e públicos reúnem baianos e turistas no Centro Histórico de Salvador.)), a questão do extermínio de menores, a discriminação, a pobreza, a exploração entre outros (TEATRO, 2015). O elenco, ao desvelar essa realidade no palco causou impacto, a saber:

Autoridades políticas, a classe média e artistas renomados como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Regina Casé, entre outros, ficaram impressionados com o talento e ousadia do Bando em representar as alegrias e tristezas de uma localidade marginalizada e pouco conhecida, porém que preservava, no seu dia a dia, fortes elementos da identidade afro-baiana, como a musicalidade e o sentido de comunidade (MEMORIAL, 2011).

Através da experiência com os clássicos Woyseck((Adaptação do clássico texto homônimo do alemão Georg Bücher em que um soldado raso comete um crime passional. Através de cenas curtas com diálogos tensos, aborda-se a opressão da miséria cotidiana com humor e ironia (UZEL, 2003).))(1992), Medeamaterial((Versão moderna da obra “Medeia”, do dramaturgo alemão Heiner Müller, em “uma combinação muito peculiar de vivência germânica, tragédia grega, niilismo urbano e afro-baianidade” (UZEL, 2003, p. 90).)) (1993) e Sonho de uma noite de verão ((Adaptação do clássico homônimo, do inglês William Shakespeare, em que se mesclam toques da cultura negra à história de encontros e desencontros amorosos entre humanos e fadas num bosque (BANDO, 2015).))(1999), ao interpretarem textos que não foram criados nem vivenciados pelo elenco, o grupo deixou claro que “não estava estilisticamente limitado ao universo da baianidade” (DANTAS apud MEIRELLES, 1995, p.48). Decidiu, assim, ousar sem perder a identidade e, nas três obras internacionais mantiveram o seu próprio estilo. Bião (2009, p.297) acrescenta que

O Bando de Teatro Olodum, com os espetáculos Essa é nossa praia, Ó pai ó, Onovomundo, Woyseck e Medeamaterial, tem aproximado o teatro da música e das temáticas afro-baianas, com excelente receptividade de público e crítica em todo o país, envolvendo parceiros internacionais, como Heiner Müller, e atores de teatro e televisão do eixo Rio-São Paulo, como Vera  Holtz e Guilherme Leme.

Em Bai Bai Pelô (1994), os personagens de Essa é nossa praia e Ó Paí, Ó! retornam ao palco – além de outros moradores do Centro Histórico de Salvador – para manifestarem as suas opiniões sobre suas locomoções e/ou permanências devido à reforma do Pelourinho em 1992 (DANTAS apud MEIRELLES, 1995), sendo a baianidade trazida à baila na cena com muita percussão. Essa tradição de ascendência africana também conduziu o espetáculo Zumbi (1995), em que um líder do movimento de resistência à ação da polícia na derrubada de barracos representa um Zumbi contemporâneo na luta pela sobrevivência. Depois, ele foi ampliado para Zumbi está vivo e continua lutando (1995) – chamado pelos atores de Zumbizão – através de uma homenagem itinerante e alegórica ao herói negro de Palmares, líder de resistência à escravidão, que remonta as trajetórias negras desde as saídas das tribos africanas até a destruição do Quilombo.

Participaram desse projeto estudantes de escolas públicas, representantes dos blocos afro Olodum, Ilê Aiyê, Ara Ketu, Malê Debalê, do bloco de índio Apaxes do Tororó e pessoas dos terreiros de candomblé Axé Opô Afonjá e do Gantois (além do seu coral). Cada bloco e candomblé integrou os moradores e frequentadores das suas entidades ao projeto para que participassem das oficinas e, em parceria com a Fundação Cultural do Estado da Bahia e apoio do Ministério da Cultura, na área livre do Passeio Público, foi apresentado por 120 atores negros um

Espetáculo itinerante e alegórico [que] levou o público a acompanhar as cenas em cinco palcos diferentes, num burburinho que lembrava o clima bem baiano das festas de largo, mas com aquela atmosfera de celebração da resistência, cuja narrativa partia das tribos africanas e chegava até o Brasil para contar a formação, o apogeu e a destruição do Quilombo dos Palmares (UZEL, 2003, p. 136).

Os movimentos do espetáculo Erê pra toda vida – Xirê (1996) representaram orações para os deuses africanos. Através da canção composta por Carlinhos Brown, “estabeleceu-se uma relação entre a cosmogonia africana e o desamparo infantil nos grandes centros urbanos brasileiros” (UZEL, 2003, p. 144), uma referência à chacina dos oito meninos na Igreja da Candelária, Rio de Janeiro, em 1993. Nesse espetáculo

Os rituais do candomblé, que já haviam inspirado Onovomundo, voltaram a dar base criativa para a realização da nova montagem, que num contexto dramático, mas também poético, quis associar a imagem de cada menor assassinado no massacre do Rio a um orixá. Em cena, cada menino seria um erê (criança, nos cultos afro-brasileiros). (…) O diretor também evocou as figuras mágicas dos ibejis africanos, transmutadas no sincretismo religioso nas imagens de Cosme e Damião, os dois santos gêmeos que têm forte relação como o universo infantil (Ibidem, p. 141-143).

O elenco deu toques de brasilidade a clássicos que foram adaptados para a realidade sociocultural brasileira (opressão policial contra meninos de rua, o drama dos sem-terra e sem-teto, a violência contra as mulheres e os crimes ecológicos) bem como seus outsiders (malandros, trapaceiros, miseráveis, prostitutas, traficantes etc.) em Ópera de três mirreis (1996), Um tal de Dom Quixote (1998), Ópera de três reais (1998) e Material Fatzer (2001). Para tal, convidaram diversos músicos, como Pedro Amorim Filho, André Borges, Karina Seixas entre outros (BANDO, 2015; UZEL, 2003).

Em 1997, o grupo montou Cabaré da Rrrrraça – a peça mais assistida, aplaudida e comentada de todo o seu repertório. É uma espécie de musical, com estética de desfile de moda e formato de programa de auditório, em que, através da linguagem direta, discute-se a questão racial pelos vieses do comportamento, religião, sexualidade, profissão, discriminação e posturas políticas, interagindo com depoimentos da plateia (TEATRO, 2015). O Bando iniciou com a mesma uma atuação político-cultural de resistência especificamente em favor da negritude, discutindo e refletindo sobre a cultura afrodescendente e o racismo no Brasil.

Esse espetáculo “didático, fashion, panfletário, interativo, pop”, considerado “o maior sucesso de público da história da companhia” (UZEL, 2003, p. 175)

Buscou inspiração na Raça Brasil, periódico nacional lançado nos anos 90 como «a revista dos negros brasileiros». A identidade da raça em suas várias possibilidades de discussão formou a espinha dorsal da peça, uma combinação de passarela de desfile de moda com talk-show televisivo (MEMORIAL, 2011).

Com uma trilha sonora, que inclusive virou CD, Cabaré da Rrrrraça traslada por diversos gêneros musicais, a saber: axé music (cantado pela personagem Flávia Karine, o Melô do Super Negão ironiza o mito da virilidade dos negros: “ou é bom de bola ou é bom de samba/ ou é pai-de-santo ou é dez na cama”); rap (cantado pelo personagem Abará, o Rap do Nêgo Fodido delata o tratamento dado aos negros em abordagens policiais após um dia de trabalho: “o Nêgo Fodido voltando pra casa, isso é real/ ô vagabundo, mão na cabeça, o que você está fazendo aí uma hora dessa?/ calma aí, meu senhor”); reggae (cantado pela personagem MC Nega Lua interpela a presença negra nas mídias: “e se o Brasil se olhar no espelho?/ E ver-se impávido narciso/ Em seu reflexo impreciso”) dentre outros.

Uzel (2005, p. 186) assevera que

Sob a direção musical de Jarbas Bittencourt, criador de parte do repertório (…), a musicalidade do Cabaré não só elevou a encenação, como também reforçou os discursos com um tratamento que chegou a lembrar Brecht devido à forma como as letras comentavam e até contradiziam de propósito certas posturas dos personagens.

Graças ao prestígio e reconhecimento da importância político-cultural dessa companhia, representantes dos EDUTRAN (Departamento de Educação para o Trânsito do DETRAN – BA) encomendaram a Marcio Meirelles uma peça que seria porta-voz de uma campanha educacional para o trânsito, bancada por esse órgão público da Bahia. Assim, surgiu a peça Já fui (1999) com a linguagem e contundência habitual do grupo e presença de alguns músicos convidados, como Dennis Leoni, Gilmário Celso, Leonardo Bittencourt. As apresentações foram realizadas na capital e no interior para associações, empresas, corporações e escolas. Após o espetáculo, os espectadores participavam de debates com o elenco e um representante do DETRAN (UZEL, 2003).

Em Relato de uma guerra que (não) acabou (2002), o Bando trouxe para o palco um coral harmônico de vozes recalcadas da periferia soteropolitana. Para isso, colheram-se depoimentos dos moradores de seis bairros pobres sobre a repercussão local da greve de policiais que ocorreu na capital baiana. Essa montagem “teve o episódio da greve como fio condutor, (…) [ampliou] a discussão sobre a violência urbana” e mostrou “o desespero e a animosidade que a violência provoca nas relações humanas” (Ibidem, p. 244-249). No teatro, ampliaram e aprofundaram a reflexão policiais grevistas, acadêmicos, moradores de bairros pobres, líderes comunitários, políticos, artistas, jornalistas e grupos teatrais.

O elenco foi dividido em grupos para ministrarem as oficinas que geraram painéis de montagens inicialmente encenados nos seus respectivos bairros. Depois, houve uma colagem de cenas desses grupos que participaram dessas oficinas. Em seguida, alguns jovens oficineiros foram selecionados para fazerem parte do elenco definitivo desse espetáculo que levava ao palco a reflexão sobre diversas dimensões da violência, como racismo, desemprego, estupro, corrupção e exploração religiosa. O espetáculo sonoramente questionou posturas e cobrou atitudes significativas de políticos, machistas, policiais e assistencialistas (UZEL, 2003).

Com essa montagem, o grupo ratificou a sua

Tentativa de entender a perversão deste mundo, onde ser negro é um problema, ser negro e pobre, quase um destino, e ser vítima da grande violência de um sistema desumano, imposto pela ditadura do mercado, um fato cotidiano. Mais que entender, o Bando está em cena para discutir estas questões. E, mais que isto, por ter a certeza de que este estado de coisas pode ser modificado, (…) [está] no palco para fazer a (…) [sua] parte, e cobrar dos outros que também façam a sua (BANDO, 2015).

Em Oxente, cordel de novo? (2003), com muita música, dez peças de Cordel – nove de João Augusto e uma de Haydil Linhares – são divididas em três espetáculos diferentes que versam sobre a pluralidade de histórias inspiradas na cultura popular. O Muro (2004) desvela que, numa escola pública, próxima de um lixão, os alunos passavam merenda escolar, por cima do muro, para matar a fome dos familiares. A direção aumenta o muro e, devido às irregularidades da obra, ele desaba. São abordadas – também, musicalmente – a miséria, a exclusão social e a possibilidade de sobrevivência pelo lixo de outrem (BANDO, 2015).

Em Autorretrato aos 40 (2004), baseando-se nos textos do dramaturgo João Augusto e em documentos acumulados desde a sua criação, com cinco autores e 77 intérpretes, o Bando do Teatro Olodum, o Viladança, a Companhia Novos Novos e o Vilavox (grupos residentes do Vila), Chica Carelli, Marísia Mota, Fernando Fulco e convidados como Anita Bueno, Neide Moura, Iara Colina e Viviane Laerte transformam o palco numa grande passarela. Como numa escola de samba, cantam o samba-enredo dos 40 anos do Teatro Vila Velha – um espaço de contestação em que o espírito reivindicatório pulsa intensamente desde a sua fundação (BANDO, 2015).

Em Áfricas (2006) – primeiro espetáculo infanto-juvenil do Bando – através da linguagem comunicativa e popular característica do grupo, valorizou-se a cultura ancestral africana, utilizando de forma sutil e estratégica, histórias, lendas e mitos africanos, como instrumento de resistência e de divulgação da força da cultura afro-brasileira (BANDO, 2015). Essa montagem traz à cena o rico e plural continente do além-Atlântico, abordando o universo mítico africano como uma tentativa de suprir a escassez de referenciais africanos no imaginário infantil, povoado de fábulas e personagens eurocêntricos (MEMORIAL, 2011).

Estudar a África é realizar um “exercício vital da memória coletiva que varre o campo do passado para reconhecer suas próprias raízes” (KI-ZERBO, 1980, p.38). Através de danças, cores e músicas, o elenco desvelou o continente africano de maneira mágica e lúdica. Nas palavras de Chica Carelli (BANDO, 2015), diretora do espetáculo devido ao afastamento de Marcio Meirelles para assunção do cargo de Secretário de Cultura do Estado da Bahia, o Bando objetivou

Levar a imaginação das crianças para a África, que são tantas, que são Áfricas. Trazer sua magia com a exuberância das coreografias de Zebrinha, as cores de Zuarte, a textura sutil da música de Jarbas, a memória do cenário de Hélio Eichbauer, a luz (…) de Rivaldo e de Espírito Santo e a força dos atores que se fizeram Griots. E esses fantásticos Griots não vêm apenas nos contar a Nossa história, vêm nos lembrar que somos serpentes e arco-íris, somos Abdus, Omolus e Nanãs, Yassedis e Suniguês.

O espetáculo Bença (2010) mesclou tradição e modernidade tecnológica na polifonia cênica. Os atores e músicos contracenaram com depoimentos projetados em três telões: dois instalados nas laterais do teatro e outro no chão do tablado; utilizando, assim, o audiovisual como parte da narrativa cênica. A linguagem é não linear através da simultaneidade de falas (ao vivo e por depoimentos nos telões) e a montagem repleta de expressões corporais e musicalidade. Com os ensinamentos de ícones da cultura negra baiana (Bule-Bule, Cacau do Pandeiro, D. Denir, Ebomi Cici, Mãe Hilza e Makota Valdina), a peça investigou a passagem do tempo, o conceito de morte e a religiosidade (BANDO, 2015).

Nesse espetáculo, o Bando homenageou atores negros antepassados como “Xisto Bahia, De Chocolat, Mário Gusmão, Abdias Nascimento, Grande Otelo, Sérgio Guedes, Lázaro Ramos e muitos outros vivos e mortos, anônimos ou não” (MARCELO DE TROI apud BANDO, 2015). Esse “ritual, pontuado por cantos, coros, toques e gestos coreografados, resgate e reafirmação cultural” (BANDO, 2015) celebrou a sabedoria da ancestralidade africana através dos binômios com marcas identitárias da negritude: herança-memória e religiosidade-temporalidade.

(2012), criação conjunta entre o Bando e o mestre do Butoh (estilo de dança-teatro japonês) Tadashi Endo, aborda a transformação da história individual e da identidade em energia. Foi o primeiro diálogo do grupo com a arte nipônica, numa espécie de mix entre a contenção da cultura janonesa e a explosão da afrobaiana. Destacam-se as seguintes canções entoadas pelas belas vozes negras: Dream a little dream of me (Fabian Andre, Wilbur Schwandt e Gus Kahn) com Louis Armstrong e Ella Fitzgerald e Um canto de Ifá (Ythamar Tropicália e Rey Zulu) com Virgínia Rodrigues (TEATRO, 2015).

Para comemorar 25 anos e celebrar em grande estilo suas Bodas de Prata, o Bando montou o espetáculo Erê (2015), que levou ao palco o seu elenco e jovens atores que participaram da mais recente Oficina de Performance Negra para juntos clamarem de maneira uníssona em coro pelo fim do extermínio de jovens e crianças negras e pela garantia de um futuro em que os seus direitos civis, políticos e sociais são dignamente respeitados. Eles evidenciaram dramatúrgica e musicalmente que “o quadro é negro, a história é branca((Trecho cantado pelos atores no espetáculo Erê.))”, uma vez que os números de crianças e jovens negros assassinados da Chacina da Candelária (1993) até hoje infelizmente só aumentam em todos o país (TEATRO, 2015).

Cientes da importância da música em todos os seus espetáculos como mais um elemento dramático de comunicação com o público e mais uma catalisadora de emoções, os atores atualmente propuseram uma audaciosa e inédita parceria aos internautas para uma nova montagem.  Com o avanço tecnológico da contemporaneidade, além da colaboração de todo o elenco, o público – espectadores virtuais dos ensaios do novo espetáculo – foi também convidado para contribuir com sugestões para a escolha da trilha musical do Projeto trilogiaRemix.DOC_aquartapeça.

Essa primeira experiência consiste numa pesquisa musical para esse novo texto dramático que revisita a Trilogia do Pelô com o intuito de mais uma vez estreitar a relação entre teatro, música e afrotemáticas, fundindo “os registros das montagens originais das três peças com cenas ao vivo das mesmas.  Novas cenas e personagens, criados para a quarta, vão dar conta da passagem do tempo” (BANDO, 2015). Através do blog do grupo, o Bando pediu a colaboração dos internautas na construção da trilha musical do Pelô nos últimos 20 anos. As sugestões enviadas são discutidas pela companhia nos dias dos ensaios, juntamente com os responsáveis pela direção.

Essa troca cultural teve a participação efetiva da população internauta, pois foi filmada e transmitida na internet ao vivo através do live stream((Live stream é um canal de transmissão em tempo real que permite aos internautas, além de assistirem, digitarem suas opiniões por via de duas redes sociais contemporâneas – twitter e facebook.)). Os espectadores virtuais discutiram ativamente: escreveram opiniões, deram sugestões para o título e a trilha sonora do espetáculo devido à pesquisa virtual criada pela direção e levantaram questionamentos. Marcio Meirelles, em um dos seus depoimentos, elucidava essa visão vanguardista: “nenhum grupo de teatro hoje, nenhum artista é revolucionário se a forma não for revolucionária também. (…) O jeito de discutir esse assunto tem que ser contemporâneo, tem que dialogar com o mundo de agora.”

Essa nova montagem que remixará as peças que compõem a Trilogia do Pelô – Essa é nossa praia (1991), Ó Pai, Ó! (1992) e Bai Bai Pelô (1994) – também mesclará várias linguagens (teatro, música, dança, fotografia e audiovisual) e as tecnologias e ferramentas virtuais disponíveis na contemporaneidade para compor a sua polifonia cênica. Para o elenco (BANDO, 2015),

O processo de construção do espetáculo tem sido colaborativo e a internet, as redes sociais, vídeo, projeções, câmeras, programas de DJ e VJ e moradores do Pelô, ao lado dos artistas do Bando e de outros artistas que se engajaram no projeto, têm se mobilizado pra isso. A sala de ensaio do Bando, no Teatro Vila Velha, vem se tornando um pequeno laboratório de pesquisa tecnológica para novas narrativas cênicas. O que vai resultar numa visão nova sobre o primeiro tema tratado pelo grupo: a violência social e a comunidade que ao mesmo tempo é sujeito e objeto dela.

O grupo iniciou esse Projeto com os “próprios recursos, apoiados pela necessidade de modificar o mundo” (BANDO, 2015). Como o desenvolvimento e a manutenção do mesmo é dispendioso, devido à falta de patrocínio, ele foi momentaneamente suspenso. Infelizmente, desde que findou o apoio do edital Petrobras Cultural, o Bando ainda não firmou uma nova parceria financeira. Otimistamente, o elenco almeja retomar muito em breve essa tetralogia para mais uma vez referendar a importância do seu bairro de origem – o Pelourinho – com um “documento sobre o passar do tempo e [encenar] o que aconteceu naquele território urbano com depoimentos em vídeo e ao vivo de personagens reais” (Ibidem).

Convictos da necessidade de continuar reverberando a sua negra razão que enegrece a visão hegemônica e eurocêntrica como “uma maneira de ampliar e subverter esse ‘olhar branco’” (LIMA, 2008), o Bando, através de uma polifonia cênica da qual a música é um elemento basilar, traz várias questões da negritude para os palcos: o pré e o pós 13 de maio, o preconceito com os herdeiros dos estigmas escravistas, a ideologia do branqueamento, a fábula das três raças, o mito da democracia racial, a (des) valorização da cultura afrodescendente entre outras. Em seus espetáculos, a variedade musical do grupo que continuamente intensifica a sua afroforça percussiva mas também traslada por outros ritmos musicais populares. Afinal,

A percussão em cena é um elemento característico de quase todos os espetáculos do Bando. Mas desde que assumiu os tambores nas encenações, em substituição à Banda Mirim do Olodum, o elenco não se fechou. Gradativamente, sobretudo pela chegada de Jarbas Bittencourt à equipe, outras sonoridades negras foram sendo assimiladas e se somaram ao samba-reggae, a exemplo do funk, do reggae e do flerte com o rap (UZEL, 2005, p. 187).

Enfim, o Bando é mais um espaço social que dissemina a cultura negra, usando o palco como estratégia de resistência. O seu discurso crítico-social quebra o paradigma folclorizante da arte afro-brasileira através dos seus espetáculos político-sociais. Infelizmente, ainda hoje, em pleno século XXI, os herdeiros dos estigmas escravistas sofrem com as discriminações e marginalização social e lutam veementemente pela isonomia social. Felizmente, contudo, “existe um grupo na Bahia insistindo em gritar contra tudo isso através do teatro, com admirável longevidade e autoestima” (UZEL, 2003, p. 252): eis o Bando de Teatro Olodum!

Considerações finais

Desde 1944, com o Teatro Experimental do Negro (TEN), a negritude saiu do mero papel de coadjuvante e protagonizou nos palcos brasileiros e, em Salvador, desde a década de 90, o Bando de Teatro Olodum dá continuidade e contribui para a permanência desse ideal de Abdias do Nascimento, uma referência para o grupo, através das culturas entrecruzadas no território brasileiro. Bião (2009, p. 376) vê essa companhia como um núcleo considerável fora da Escola (de Teatro, da Universidade Federal da Bahia) “que faz um trabalho da maior importância de recriação da matriz afro-baiana”.

Nas palavras do diretor fundador, “o Bando começou a partir de uma ansiedade estética, por ver que uma cidade de maioria negra não tinha negros no palco. Pelo fato de não existir uma dramaturgia negra, sendo que os elementos das tradições africanas são extremamente cênicos e dramáticos” (MEIRELLES apud BANDO, 2015). Mesclando em suas montagens há 26 anos teatro, dança, música e poesia, o grupo “se consolidou como um dos mais importantes coletivos do teatro brasileiro com apresentações em todo o Brasil e também no exterior” (BANDO, 2015).

Ao desvelar a cultura negra e quebrar o paradigma folclorizante da arte negra através de sua epistemologia artístico-ideológica, suas montagens desmitificam as imagens preconceituosas do ator negro sempre ligado a uma estereotipia seja por subserviência e/ou comicidade, ascendendo-o ao papel de protagonista. Além de espetáculos em que se promovem reflexões político-sociais sobre questões étnico-raciais e o universo popular sociocultural, o Bando realiza também outras frentes de ação que nutre substancialmente o capital cultural dos seus partícipes (elenco e público em geral), como debates, fóruns, laboratórios, oficinas, palestras, pesquisas de campo, seminários etc.

A polifonia cênica do Bando tem a música como um elemento dramático de comunicação com o público e uma catalisadora de emoções da plateia. O coro afro musical de vozes desse grupo, que desvela uma cultura afro-baiana e ressignifica o legado da ancestralidade africana, é entoado por textos falados e/ou cantados, músicas rigorosamente selecionadas pelo elenco ou especificamente compostas para espetáculos, relação dialógica intensa com o operador (também ator) de som e a música tocada ao vivo.

A percussão sempre deu cadência ao texto desde a criação do Bando através da participação da Banda Mirim do Olodum (1990 até 1994). Por eleger a música como um elemento estético do grupo, sempre se priorizou a formação musical dos atores que, após o rompimento com o Grupo Cultural Olodum, assumiram o toque de instrumentos ao vivo nos espetáculos. Ao apresentar e intensificar o texto dramático, o recurso musical acentua a força dos tambores de ascendência africana e também traslada pelos mais diversos gêneros populares, como axé music, rap, reggae dentre outros.

Salvador é “a maior cidade africana fora da África” e um ponto de circulação importante de informações vindas de diversos continentes e “da África como um todo” (BIÃO, 2009, p. 374). Assim, “a história do Bando é peculiar e especial dentro da produção teatral de uma cidade onde cerca de 80% da população é negra” (UZEL, 2003, p. 14). Certamente, não foi à toa que esse grupo de presença e discurso negros foi criado nesta Roma Negra, colocando em cena corpos negros (ora coisificados, ora desejados, ora diabolizados, ora elogiados) para discutirem questões da sua própria etnia com uma pulsante força afropercursiva. É mister salientar que, na rica e plural cultura africana, celebra-se com música. Destarte, eis mais um traço identitário!!!

Referências

Bando de Teatro Olodum. Disponível em: http://bandodeteatro.blogspot.com/. Acesso em: 03 jan. 2015.

Bião, A. (2009). Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A Gráfica e Editora.

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Uzel, M. (2003). O Teatro do Bando Negro, Baiano e Popular. Salvador: Ministério da Cultura, Fundação Palmares.

 

Para citar este artículo: Freitas, M. (2017). A afro muscalidade do Bando de Teatro Olodum. Iberoamérica Social: revista-red de estudios sociales VIII, pp. 137 – 159. Recuperado en https://iberoamericasocial.com/a-afro-musicalidade-do-bando-de-teatro-olodum

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