DescargaMargarida Martins Barroso
Investigadora associada do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Insituto Universitário de Lisboa, Lisboa, Portugal.
Doutorada em Sociologia pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Lisboa, Portugal.
margarida.barroso@iscte.pt

 

Resumo: Neste artigo analisamos as principais transformações que a sociedade do conhecimento trouxe para a qualidade do trabalho. Passadas várias décadas sobre as primeiras previsões do que seriam os efeitos da globalização nos mercados de trabalho, propomos uma reflexão sobre a natureza ambígua dessas mudanças, com recurso à literatura existente nesta temática. Atendemos especificamente às transformações ocorridas no campo das qualificações, demonstrando como as expetativas de que o trabalho se tornaria mais satisfatório e compensador se concretizaram de forma fragmentada e polarizada, a par do surgimento de novos riscos, novas desigualdades e novas incertezas, que vieram reconfigurar o debate sobre a qualidade de vida no trabalho no mundo atual.

Palavras-chave: Globalização, competências, condições de trabalho, qualidade de vida no trabalho, sociedade do conhecimento.

 

Abstract: In this article we analyse the main changes brought by the knowledge society to the quality of working life. After several decades over the first forecasts of the effects of globalization on labour markets, we propose a reflection on the ambiguous nature of these changes, making use of the existent literature on the field.With a specific focus on qualifications, we show how the expectations that work would become more fulfilling and rewarding were achieved in a fragmented and polarised way, bringing new risks, new inequalities and new uncertainties that changed the debate on the quality of working life in today’s world.

Key words: Globalization, skills, working conditions, quality of working life, knowledge society.

Recibido 17 de marzo – Aceptado 4 de abril

 

Introdução

Durante o período de crescimento e estabilidade económica e social que marcou os ‘trinta anos gloriosos’ que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, as preocupações com o bem-estar dos trabalhadores puderam concretizar-se de forma relativamente generalizada no mundo ocidental, através de programas públicos e empresariais de melhoria das condições de trabalho (Gallie, 2007; Green, 2006; Rubery, Grimshaw, 2001). A consolidação do estado social e dos direitos dos trabalhadores pôde ser feita sem que a produtividade das empresas e o crescimento económico dos países fossem postos em causa (Boyer, 2006).

A crise petrolífera da década de setenta veio, contudo, transformar a lógica de intervenção na área do trabalho, marcando uma viragem para uma abordagem mais quantitativa, muito centrada na necessidade de criação de emprego, dinamização da economia e aumento da produtividade (Green, 2006). Neste contexto, a intensificação das trocas comerciais, muito alicerçada no crescimento do investimento direto estrangeiro, na propagação de empresas multinacionais, e na formação de redes de produção internacionais – comumente associados ao processo de globalização – ao permitir a rentabilização de condições de produção vantajosas em diferentes partes do mundo, surgiu como meio privilegiado para a maximização do lucro e obtenção de produtividade (Castells, 2007[1996]). A maior exposição dos mercados à competitividade internacional obrigou a uma maior diversificação dos produtos e à alteração dos padrões de consumo, que passaram a estar mais associados à variedade e personalização, e menos a uma lógica de estandardização (Lallement, Lefevre, 1994). A falência do modelo de desenvolvimento industrial assente na produção em série, que alguns autores associam às causas da crise (Piore, Sabel, 1984) e que resultou desta mudança no consumo, mas também da maior amplitude do mercado, acabaria por determinar a implementação de novos modos de produção e consequente valorização de um sistema produtivo mais flexível (Castells, 2007[1996]).

A disseminação de novas tecnologias de informação e comunicação e a sua introdução no processo produtivo determinaram um novo modo de desenvolvimento assente na criação, no processamento e na transmissão de informação e de conhecimento como principais fontes de produtividade (Castells, 2007[1996]). Embora estas tecnologias não tenham, isoladamente, desencadeado a reestruturação global do modo de produção estandardizado, foi neste contexto de reorganização do modelo produtivo que a sua expansão ocorreu, e a eficácia desta reestruturação beneficiou, por sua vez, das novas tecnologias, levando a que as sociedades que resultaram destes processos interdependentes se caracterizassem por serem, simultaneamente, capitalistas e informacionalistas (Castells, 2007[1996]). Assim, o conceito de globalização, que remete para a intensificação e complexificação das relações comerciais, económicas, sociais e culturais, à escala mundial, é absolutamente interdependente da noção de sociedade do conhecimento, entendida como aquela que privilegia o conhecimento e a informação como fatores de produção que tornam possíveis estas trocas globais.

Lyotard (1989[1979]) fala de uma condição “pós-moderna” para se referir às consequências das novas tecnologias de comunicação e informação na redefinição do estatuto do saber. Sennett (2001[1999]) refere-se a um “novo capitalismo”, com características que vieram reformular a forma como o trabalho, a vida pessoal e o carácter dos indivíduos se estruturam. Beck (2000), por sua vez, fala da emergência de uma “segunda modernidade” que, mais do que transpor o modelo industrial ou fordista, é caracterizada pela passagem de um contexto de certeza e segurança, centrado nos estados nacionais, para um sistema aberto, assente no risco, na insegurança e na incerteza. Na metáfora de Bauman (2000), passou-se de uma sociedade “sólida” para uma “modernidade líquida”, sujeita a mudança constante nos diferentes domínios da vida e a uma maior fluidez nas relações pessoais. Como resultado deste processo de transformação, as novas sociedades passaram a ser dotadas de um carácter reflexivo, expresso na necessidade de confronto crítico sobre as consequências das transformações do mundo e reflexão sobre elas próprias (Beck, Giddens & Lash, 2000[1994]; Giddens 1992[1990]).

Neste artigo analisamos a qualidade de vida no trabalho na sociedade do conhecimento, recorrendo à literatura existente neste domínio. Começamos por identificar as principais transformações trazidas pela sociedade da informação às condições de trabalho, especialmente quanto ao seu conteúdo, organização e relações de emprego, focando depois o papel das qualificações formais e das competências na segmentação do mercado de trabalho. Concluímos com uma reflexão sobre a natureza ambígua que as transformações do mercado de trabalho tiveram sobre a qualidade de vida e sobre as implicações desta mudança para a forma como se desenvolve o debate nesta matéria.

A qualidade do trabalho na sociedade do conhecimento

Numa visão por muitos considerada otimista, a sociedade do conhecimento trouxe implicações positivas para a qualidade de vida no trabalho por oferecer aos trabalhadores a possibilidade de utilizarem um conjunto mais alargado de saberes no exercício das suas atividades profissionais (Freire, 2001; Green, 2006). Para além de atributos elementares, como saber ler e escrever, a introdução de tecnologias de informação no processo produtivo obrigou ao desenvolvimento de outras capacidades, nomeadamente técnicas, matemáticas, criativas, de resolução de problemas, de relacionamento interpessoal e de comunicação (Green, 2006; Moniz, Kovács, 1997; Moniz, Kovács, 2001), com maior evidência do que acontecia nos regimes de produção em massa. Do mesmo modo, a transformação constante dos processos de produção, dos produtos ou dos mercados passou a implicar atualizar e renovar sistematicamente as qualificações, levando a uma valorização da aprendizagem ao longo da vida que oferece aos trabalhadores a possibilidade de aprenderem e desenvolverem cada vez mais o seu potencial (Green, 2006).

Por comparação com o regime de produção em massa, o uso do conhecimento e da informação como principais fatores de produtividade passou a implicar um maior grau de complexidade nas tarefas desempenhadas e maior envolvimento dos trabalhadores na sua conceção, levando a que a probabilidade de estes se sentirem “alienados” face às suas atividades profissionais diminuísse (Green, 2006). Mas, para além de estarem implicados na conceção da tarefa, a diminuição da “alienação”, como esta era entendida por Marx, passou a residir também no facto de, ao contrário do que acontecia nos regimes anteriores, os trabalhadores deterem os meios de produção: o conhecimento e a informação (Drucker, 1994). Consequentemente, passaram também a estar aptos para usufruir de maior autonomia e liberdade no desenvolvimento do seu trabalho, na escolha das suas trajetórias e na melhoria da qualidade de vida face a um número mais alargado de oportunidades (Moniz, Kovács, 2001; Supiot et al., 2001).

Também do ponto de vista das condições físicas do trabalho, as tecnologias de informação, ao fomentarem a utilização da máquina nas tarefas mais repetitivas e de maior risco para os trabalhadores, vieram possibilitar a diminuição do esforço físico e das patologias a ele associadas, assim como dos acidentes laborais (Green, 2006).

É, no entanto, sabido que os efeitos da globalização não se fizeram sentir de forma regular entre países, organizações e pessoas, e que as vantagens trazidas se fizeram acompanhar por um conjunto de transformações com consequências nefastas, nomeadamente na área do trabalho (Beck, 2000; Gorz, 1988, 1997; Rifkin, 1995).

Por consequência do aumento do investimento direto estrangeiro e da agilização da economia, foram estabelecidas condições para a criação de emprego e para o aumento relativo de salários (Robertson et al., 2009; Stiglitz, 2002), mas esta dinamização da economia deveu-se, em grande medida, à diminuição da regulação do mercado de trabalho, considerada como uma barreira à livre circulação do capital, e traduziu-se em maior flexibilidade para empresas e trabalhadores, maior descontinuidade nas carreiras profissionais, e destruição da proteção da relação de emprego (Supiot et al., 2001; Moniz, 1998). Portanto, o desmantelamento destes ‘obstáculos’, ao permitir criar emprego com mais facilidade, possibilitou, também, a demissão mais ágil e, nesse sentido, aumentou as possibilidades de desemprego (Beck, 2000; Murteira, 2003). A criação de emprego, o crescimento económico e a inovação, ao contrário do que aconteceu no período de crescimento do pós-guerra, passaram então a ser entendidos como incompatíveis com a melhoria da segurança dos trabalhadores (Boyer, 2006).

As organizações e as empresas tiveram que adaptar o seu funcionamento de forma a acompanharem a constante imprevisibilidade e transformação das lógicas de mercado (Drucker, 1986). Uma das principais mudanças identificadas neste processo de adaptação organizacional foi a passagem de uma estrutura predominante de burocracias verticais, para a preponderância de empresas horizontais, caracterizadas, entre outros aspetos, pela gestão em equipa, por um sistema de avaliação de desempenho associado à satisfação do cliente e por recompensas resultantes do desempenho do coletivo (Castells, 2007[1996]). Ao contrário do que se verificava com as estruturas empresariais tradicionais, geralmente geridas pelo proprietário ou familiares, as empresas “modernas” passaram a ser compostas por diferentes unidades operacionais e a ser geridas por uma hierarquia de gestores assalariados para suprimir as necessidades de coordenação trazidas pela disseminação das novas tecnologias e pela expansão dos mercados (Chandler, 1977). Intensificou-se, assim, a descentralização da tomada de decisões nas organizações e as funções de gestão intermédia passaram a ser essenciais nas empresas, num processo já observado nos anos sessenta e setenta(por exemplo, Drucker, 1995[1969]; Drucker, 1986).

Mas a adaptabilidade das organizações implicou, ainda, a ativação de outras estratégias com profundo impacto na qualidade do trabalho, como a subcontratação de serviços, o recurso a trabalho temporário ou parcial, ou a condições de trabalho mais restritivas como forma de manutenção dos empregos, num quadro de desestabilização da relação de emprego (Beck, 2001[1986]; Supiot et al., 2001). A estas estratégias organizacionais acresceu o contexto de desregulamentação do mercado de trabalho, ativado pelos governos nacionais também como fator competitivo e de atração do investimento direto estrangeiro, naquela que foi denominada como a “race to the bottom”, trazida pela globalização, em termos de proteção laboral (Brown, 2009).

Se as empresas, para fazerem face à nova competição, tiveram de se tornar mais flexíveis, também os trabalhadores tiveram de se adaptar a este aumento da flexibilidade, não só na gestão dos tempos e espaços de trabalho, como no que respeita às relações contratuais e salariais, e ao próprio conteúdo do trabalho.

A emergência de novas formas de contratação, naquela que é designada como flexibilidade numérica (Atkinson, 1986), reduziu a probabilidade de um trabalhador permanecer na mesma ocupação e/ou organização ao longo da sua vida profissional, aumentando a descontinuidade das carreiras e trazendo maior fluidez às trajetórias laborais (Valenduc et al., 2006). A alternância entre emprego e desemprego e entre atividade e inatividade, tornou-se mais frequente (Supiot et al., 2001), levando ao aumento da insegurança e da incerteza, tanto ao nível do trabalho e do emprego, como ao nível do rendimento (Murteira, 2003). Esta fragmentação da carreira profissional leva também incerteza e insegurança à esfera do privado (Sennett, 2001[1999]), agravadas pela fraqueza, cada vez mais evidente, das salvaguardas institucionais capazes de minimizar estes efeitos (Valenduc et al., 2006). Acresce que a globalização e a integração dos mercados fazem com que países, empresas e trabalhadores, num dado contexto nacional, estejam mais expostos a choques económicos globais (Robertson et al.,2009) ou a movimentos especulativos do capital (Murteira, 2003), portanto, a todo um conjunto de novos riscos (Beck, 2001[1986]). A crise financeira e económica que se iniciou em 2007/8 e cujos efeitos continuam a fazer-se notar tem vindo a demonstrar de forma concreta como a interdependência dos mercados coloca os trabalhadores de várias partes do mundo numa situação de maior vulnerabilidade face a contextos de crise anteriores.

A emergência de novas formas de trabalhar, como o trabalho em equipa, por objetivos ou projetos, entendida como flexibilidade funcional (Atkinson, 1986), trouxe o aumento da autonomia e da liberdade dos trabalhadores, mas também o aumento dos seus níveis de responsabilidade e responsabilização pelo trabalho desenvolvido, sem que a subordinação deixasse de existir (Sennett, 2001[1999]; Flecker et al., 2006; Supiot et al., 2001). A preponderância do trabalho desenvolvido por projetos e por objetivos tem também o efeito de transformar as lógicas de compromisso do trabalhador, fazendo com que, muitas vezes, este se estabeleça em relação ao projeto e não em relação à empresa (Sennett, 2001[1999]; Valenduc et al., 2006). Do mesmo modo, embora o trabalho em equipa promova o desenvolvimento de relações sociais benéficas para o trabalho, as constantes mudanças de emprego trazem, cada vez mais, um grau de instabilidade às relações sociais, fazendo também com que as capacidades de relacionamento interpessoal se tornem “portáteis” de equipa para equipa, e de contexto para contexto (Sennett, 2001[1999]).

A maior flexibilidade na gestão do tempo e do espaço de trabalho acarretou, em certa medida, maior liberdade para os trabalhadores, especificamente na conciliação entre as várias esferas da vida. O trabalho a partir de casa ou com horários flexíveis pode facilitar a gestão da vida pessoal nos seus diferentes domínios. No entanto, foi possível verificar que esta maior autonomia se fez acompanhar do desenvolvimento de mais mecanismos de controlo por parte dos empregadores, concretamente pelo uso de novas tecnologias de informação para monitorizar a realização do trabalho (Sennett, 2001[1999]). No mesmo sentido, tem sido observado que, face à conjugação da vida privada com instituições ainda muito alicerçadas em horários fixos, como a escola ou outros serviços públicos, a flexibilidade horária que se traduz em incerteza horária, nem sempre se revela como a melhor opção para a conciliação entre trabalho e família (Eiken, 2008).

A destituição das barreiras entre a esfera do trabalho e do não trabalho (Beck, 2001[1986]; Beck, 2000) e a invasão do trabalho na vida privada (Webster, 2004), associadas à pressão que a integração do mercado traz ao nível dos requisitos de qualidade dos produtos e rapidez e inconstância da produção, tem vindo ainda a tornar o trabalho cada vez mais intenso (Gallie, 2002; Stoleroff, Casaca, 1998). Esta intensificação resulta também de um conjunto de tensões e preocupações acrescidas que estas formas de organização do trabalho proporcionam, nomeadamente, o trabalho por projetos, as recompensas em função dos resultados, e a responsabilização individual (Gallie, 2002; Green, 2006). As melhorias relativas que se verificaram ao nível do aumento dos salários e da autonomia foram, assim, em grande medida, conseguidas à custa da intensificação do trabalho e consequente aumento da fadiga e do stress (Askenazi, Caroli, 2001; Green, 2006), e da sua precarização, dada a fragilização das relações de emprego, a exclusão de certos segmentos de trabalhadores, ou o aumento do desemprego (Moniz, 1998).

O período que se seguiu à crise do início dos anos setenta, marcado pela urgência da criação de emprego e pela deterioração das condições de trabalho de um grande número de trabalhadores, intensificou, como se disse, as preocupações com a qualidade de vida profissional (Begega, Guillén Rodriguez, 2009). Nos Estados Unidos e na Europa estas manifestações começaram a sentir-se de forma mais evidente com o aparecimento de trabalhos instáveis e mal remunerados a partir da década de oitenta e sobretudo no sector dos serviços (Begega, Guillén Rodriguez, 2009), e foi ao longo dos anos noventa e início de dois mil que mais se disseminaram as preocupações com a qualidade de vida no trabalho. Do ponto de vista organizacional, começaram a ser também desenvolvidas diferentes abordagens sobre de que forma poderiam as organizações responder aos desafios trazidos pela globalização, conciliando as necessidades individuais de bem-estar dos trabalhadores e da sociedade em geral, com a eficácia organizacional.

A disseminação de empresas multinacionais foi uma das principais marcas do processo de globalização dos mercados e da economia. Uma consequência esperada desta transformação do tecido produtivo seria a homogeneização das práticas de recursos humanos pelos vários países. Deste ponto de vista, se a globalização permitiu a disseminação e transferibilidade de práticas, a diversidade jurídica, institucional e cultural dos países não deixou de criar resistências à homogeneização e estandardização das condições de trabalho. Do mesmo modo, a complexificação da cadeia produtiva, concretizada pela necessidade de articular relações entre empresas-mãe, subsidiárias e fornecedoras, mas também por novos regimes de contratação de pessoas e serviços, veio reconfigurar as relações de emprego e as estratégias organizacionais. Como tal, mesmo que possa ter ocorrido algum tipo de homogeneização das condições de trabalho como consequência da expansão de empresas multinacionais, estas não se distribuíram de forma homogénea entre países,continuando a existir trabalhadores do mesmo grupo empresarial que gozam de condições significativamente diferentes, na base do país onde trabalham. As trocas comerciais entre países levaram a uma especialização geográfica com impactos profundos na diferenciação do trabalho à escala global, persistindo uma demarcação entre as dos países ocidentais, desenvolvidos, especializados na conceção de produtos e serviços, e as dos países subdesenvolvidos, geralmente fornecedores do trabalho manual (Castells, 2007[1996]; Robertson et al., 2009).

Competências, expetativas e polarização do mercado de trabalho

No quadro de todas estas transformações, houve espaço, no plano das organizações, para a criação de novas empresas, mas também se assistiu ao fim das que não conseguiram responder às exigências deste novo modelo, o mesmo se tendo passado com os trabalhadores, que não se encontraram homogeneamente preparados para a mudança. Aqui, recursos individuais ou características pessoais, como as qualificações escolares, os saberes profissionais, a classe social, o sexo ou a idade podem explicar parte da variedade de efeitos da globalização (Castels, 2007[1996]; Michon, 1994).

A análise das consequências da sociedade do conhecimento sobre o aumento ou diminuição da posse e do uso de competências individuais não é independente dos vários debates que têm ocorrido em torno da definição do conceito de competências. Sem negligenciar diferentes tradições linguísticas ou opções de tradução que podem trazer algumas imprecisões à forma como as competências são analisadas, neste artigo adotámos a definição de Green (2011), segundo a qual as competências são atributos e qualidades pessoais produtivas (porque produzem valor), expansíveis (porque podem aumentar com a educação ou com a formação) e sociais (porque são socialmente determinadas).

Com o surgimento da sociedade do conhecimento, a valorização de um conjunto particular de competências beneficiou quem as possuía, ou quem as conseguiu obter. No entanto, quem não conseguiu adquiri-las, essencialmente por via da escola (Drucker, 1994), experimentou, pelo contrário, desvalorização profissional e exclusão do mercado de trabalho (Castells, 2007[1996]). Do mesmo modo, se, por um lado, a globalização proporcionou um leque mais diversificado de oportunidades, por outro, nem todos os indivíduos conseguiram adquirir os recursos necessários à sua mobilização (Bauman, 1998). As teses da polarização do mercado de trabalho encontram, assim, forte expressão com o desenvolvimento da sociedade da informação. Na realidade, em vários países ocidentais, o número de ocupações a requerer níveis elevados de qualificação formal aumentou de forma mais expressiva do que o número de ocupações menos qualificadas, mas estas foram as que, imediatamente a seguir às mais qualificadas, cresceram mais, ou seja, apesar do grupo de ocupações “intermédias” ter sofrido um aumento nos requisitos qualificacionais, o crescimento das ocupações menos qualificadas foi superior (Green, 2006). Podem, assim, assumir-se duas tendências paralelas que demonstram que a procura de qualificações mais elevadas se fez acompanhar também do aumento do trabalho menos qualificado. Ao crescimento paralelo destes dois segmentos no mercado de emprego estão associadas condições distintas, que podem ser, então, associadas aos ‘maus’ e ‘bons’ trabalhos.

Não obstante, o aumento da população qualificada nas últimas décadas tem sido expressivo (OCDE, 2012). Embora a medição da adequação de competências ao trabalho possa ser problemática, se se considerar a tendência semelhante de crescimento de ocupações mais e menos qualificadas, e o aumento de qualificações formais elevadas em desfavor das mais baixas, verifica-se uma tendência para a desadequação de competências ou, dito de outra forma, para uma falta de correspondência entre a oferta de competências, que aumentou significativamente, e a procura, que não conseguiu acompanhá-la (Beck, 2001[1986]; Green, 2006). Num contexto em que as competências são tão valorizadas, a sobre ou subqualificação revelam ter um impacto muito evidente na qualidade do trabalho. O aumento das qualificações formais, embora não tenha necessariamente correspondência ao nível do aumento das competências, formou expectativas sobre a qualidade do trabalho futura e sobre as recompensas do trabalho, não só salariais, como ao nível da motivação, do desenvolvimento pessoal ou da autonomia (Moniz, Kóvacs, 1997). Perante uma desadequação entre oferta e procura de qualificações, o número de trabalhadores nos “bons” trabalhos tenderá a ser mais reduzido do que o de trabalhadores em trabalhos cujas características não são tão valorizadas. O aumento da distância entre os bem e os mal sucedidos (Murteira, 2003), conjugado com o aumento de expetativas, tornou o fracasso “como acontecimento normal na vida da classe média”, e não apenas como uma “perspetiva normal que só os muito pobres ou muito desfavorecidos enfrentam” (Sennett, 2001[1999], p. 183). No mesmo sentido, a expansão das tecnologias de informação e comunicação não eliminou completamente a rotina das tarefas a desempenhar, levando a que, tanto nos profissionais mais qualificados, como nos que têm menos qualificações, a execução de funções rotineiras continue a constituir uma parte substantiva do trabalho (Autor, Levy &Murnane, 2003; Goos, Manning, 2003; Reich, 1996[1991]).

Discussão

Ao longo deste artigo fomos apresentando um conjunto de considerações sobre os efeitos que a emergência da sociedade do conhecimento trouxe para as condições de vida e de trabalho das populações. Como foi possível verificar, apesar dos contributos positivos verificados ao nível do conteúdo e da organização do trabalho, a sociedade da informação não permitiu, de forma generalizada, a melhoria da qualidade de vida profissional por via do uso e otimização de competências. Persistem diferenças objetivas nas condições de trabalho entre quem possui as competências valorizadas pelo mercado e tem a oportunidade de as aplicar na sua vida profissional, e entre quem não as detém ou não vê as suas competências reconhecidas. No mesmo sentido, as exigências de flexibilidade e a exposição ao mercado global, resultaram no enfraquecimento da proteção dos trabalhadores, intensificando a incerteza e o risco. Os impactos da globalização no mundo do trabalho são, assim “ambíguos” (Boyer, 2006), com consequências diferenciadas, simultaneamente favoráveis e prejudiciais, para a qualidade de vida profissional (Green, 2009), e com tendências de evolução variáveis em função do contexto económico, social ou cultural onde o trabalho se inscreve (Moniz e Kovács, 2001).

A emergência daquela que é considerada a primeira grande crise do mundo globalizado veio intensificar algumas das tendências já verificadas quanto ao sentido que a qualidade do trabalho tem vindo a assumir na sociedade do conhecimento, especialmente no que respeita aos efeitos mais prejudiciais que trouxe ao desenvolvimento da vida profissional. No entanto, a singularidade deste momento socioeconómico abre também espaço para a reconfiguração ou surgimento de novas interrogações, com consequências diretas na forma como se estrutura a pesquisa neste domínio.

Do ponto de vista académico, pode dizer-se que os contributos da emergência da sociedade do conhecimento para o estudo da qualidade de vida no trabalho se fizeram sentir mais como resposta às consequências negativas que esta tem vindo a criar a uma grande parte da população, do que pelo fim da alienação dos trabalhadores por via da valorização de competências, melhoria relativa de salários ou das condições físicas de trabalho. A sociedade do conhecimento reconfigurou também a conceção dos estudos sobre qualidade de vida no trabalho, levantando novas questões por comparação com as que se colocavam ao trabalho industrial. Uma das críticas iniciais às pesquisas sobre qualidade de vida profissional era o seu enfoque exclusivo no trabalho manual pouco qualificado, influência do predomínio do trabalho industrial à data do surgimento destes estudos (Nadler, Lawler, 1983).O aumento das qualificações formais e o desenvolvimento de ocupações dirigentes, técnicas e profissionais que a sociedade da informação permitiu, como resultado de uma transformação das estruturas produtivas no sentido do aumento do sector dos serviços e da reconfiguração das estruturas empresariais (Castells, 2007[1996]), veio também introduzir a preocupação com as condições de trabalho dos mais qualificados.

No mesmo sentido, a evidência de que o número de transições entre atividades profissionais, empregos, organizações, ou períodos de emprego e desemprego, tende a aumentar, veio relevar a necessidade de se considerar o tempo e o espaço no estudo da qualidade, abandonando uma visão mais estática das apreciações da vida profissional (Davoine, Erhel &Guernoat-Lariviere, 2008). O entendimento de que os mercados de trabalho são transicionais (Schmid, 2006) acrescentou uma dimensão temporal e espacial ao estudo da qualidade de vida e acentuou também a importância de se estudarem as transições, já que a perceção de qualidade pode variar ao longo da vida e da trajetória profissional (Begega, Guillén Rodriguez, 2009).

O contexto de crise económica global tem vindo a evidenciar a vulnerabilidade e a incerteza a que largas camadas da população ativa estão expostas, mesmo as mais qualificadas e as que teriam, à partida, mais recursos simbólicos para usufruir de uma vida profissional com qualidade na sociedade do conhecimento. Para um debate compreensivo, é então necessário continuar a considerar a relação, geralmente complexa, entre a qualidade de vida no trabalho e os ciclos económicos, políticos e sociais em que decorre o trabalho.

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Para citar este artículo: Barroso, A. (2014). Qualidade do trabalho e globalização: notas sobre os efeitos ambíguos da sociedade do conhecimento no mundo do trabalho. Iberoamércia Social: revista-red de estudios sociales, II, pp. 81-92.. Visto en: https://iberoamericasocial.com/qualidade-trabalho-e-globalizacao-notas-sobre-os-efeitos-ambiguos-da-sociedade-conhecimento-mundo-trabalho/

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