DescargaJosé Ricardo Martins
Doutorando em Sociologia
Universidade Federal do Paraná, Paraná, Brasil.
ricardo@brazil-one.net
Recibido 19 Septiembre – Aceptado 06 Octubre

 

Resumo: Baseado na obra de Immanuel Wallerstein, que estuda a formação do sistema-mundo e a divisão do mundo em três níveis hierárquico – centro, periferia e semi-periferia -, este artigo tem como objetivo explicitar a Teoria do Sistema Mundo (TSM) de Wallerstein, fazendo um aggiornamento em sua validade para a compreensão da estrutura do mundo atual, bem como o de verificar em que medida a TSM é ainda válida como categoria analítica à sociedade global hodierna em suas relações sócio-político-econômicas. É de nosso entender que toda teoria social, como esta de Wallerstein, tem a contribuir para a compreensão da realidade, especialmente as relações assimétricas do mundo globalizado. Assim, baseado na TSM, verificamos que o mundo foi estruturado para reproduzir o sistema-mundo, através de instituições como o Banco Mundial, FMI, BID, ONU, entre outras, e analisamos as consequências dessa estrutura manifestadas na divisão internacional do trabalho, na exploração dos recursos naturais, mão de obra, capital e mesmo no modelo de paz liberal da ONU.

Palavras-chaves: Sistema-mundo, globalização, divisão internacional do trabalho, terceirização, paz liberal.

Abstract: Based on the work of Immanuel Wallerstein, who studied the formation of the world system, and the world’s division into three hierarchical levels – central, periphery and semi-periphery -, this article aims to explain Wallerstein´s World System Theory (WST), making an aggiornamento in its validity for understanding the structure of today’s world, as well as to verify the extent to which WSM is still valid as an analytical category in today’s global society in its social, political and economic relations. It is our view that all social theory, as this of Wallerstein´s, has to contribute to the understanding of reality, especially the asymmetrical relations of the globalized world. Thus, based on TSM, we found that the world has been structured to replicate the world-system, through institutions such as the World Bank, IMF, IDB, UN, among others, and we analyzed the consequences of this structure manifested in the international division of labor in exploitation of natural resources, labor, capital and the liberal peace model.

Keywords: World-System, globalization, international division of labor, outsourcing, liberal peace.

 

Introdução

Immanuel Wallerstein desenvolve sua obra – O Sistema Mundial Moderno, vol. I, II e III – a partir do conceito de divisão internacional do trabalho produzida pela estrutura capitalista. A partir desse conceito elabora a tese central de sua obra, enunciando que a componente central dessa estrutura internacional resulta na divisão do mundo em três estamentos hierárquicos: centro, periferia e semiperiferia (Sarfati, 2005, p. 140). Nessa divisão, formada a partir dos primórdios do capitalismo ocidental, os países ocupam uma função na ordem produtiva capitalista, sendo que os países centrais ocupam-se da produção de alto valor agregado, os periféricos fabricam bens de baixo valor e fornecem commodities e matérias-primas para a produção de alto valor dos países centrais e, por fim, os países da semiperiferia, ora comportam-se como centro para a periferia, ora como periferia para os Estados centrais, tendo um papel intermediário.

Esse padrão de troca desigual cria uma relação de dependência entre os países periféricos e os do centro, acentuando essa diferença econômica e fazendo com que esses Estados periféricos se tornem dependentes de empréstimos e de ajuda financeira e humanitária dos países centrais. Neste quesito, a Teoria do Sistema Mundo (TSM) de Wallerstein se aproxima da Teoria da Dependência[1]. Esta coloca sua ênfase na criação de relação estrutural de dependência.

Este artigo tem como objetivo explicitar a TSM de Wallerstein, fazendo um aggiornamento em sua validade para a compreensão da estrutura do mundo atual, bem como de verificar em que medida a TSM é ainda válida à sociedade global hodierna em suas relações sócio-político-econômicas. É de nosso entender que toda teoria social, como esta de Wallerstein, tem a contribuir para a compreensão da realidade, especialmente acerca das relações assimétricas do mundo globalizado.

Para atingir o objetivo proposto partimos da própria obra de Wallerstein, lançamos mão de bibliografia especializada e fazemos análise da atuação de organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), as Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Ademais, analisamos as relações de recursos e capital e a divisão internacional do trabalho no sistema-mundo.

Este artigo está estruturado da seguinte forma: iniciamos com a presente introdução, seguida de duas seções: a primeira apresenta a obra de Wallerstein, como foco no tomo I onde o autor define e detalha o surgimento e consolidação do sistema-mundo, sendo finalizada por uma síntese apreciativa da obra; a segunda seção verifica a atualidade e aplicação da análise do sistema-mundo e suas implicações para com o mundo atual. Nesta segunda seção são abordados temas como o sistema de Bretton Woods e o Consenso de Washington; as Nações Unidas e a paz liberal; os recursos naturais, mão de obra e capital; a nova divisão internacional do trabalho; e, por fim, o passado e presente na análise do sistema-mundo, que inclui um aporte epistemológico atualizado de Wallerstein a respeito de sua própria obra. Por último, apresentamos sucintamente as considerações finais.

O escopo de abrangência desse estudo se justifica pelo fato que Wallerstein não vê sua teoria do sistema-mundo apenas como um avanço na epistemologia interpretativa do mundo. Como cientista social engajado, quer que seja antes “um movimento social, uma força de mudança social” (Wallerstein, 2012, p. 17). Mais adiante, em sua obra, ele assim expõe tal engajamento:

A marca do mundo moderno é a imaginação dos seus beneficiários e a contra-afirmação dos oprimidos. A exploração e a recusa em aceitar a exploração como inevitável ou justa constituem a perene antinomia da era moderna, unidas numa dialética que está longe de alcançar seu máximo no século XX (Wallerstein, 1974a, p. 346).

A obra “o sistema mundial moderno

O Sistema Mundial Moderno é uma obra verdadeiramente monumental e está dividida em três volumes. Publicada na década de 70 do século passado, condensa os seguintes títulos: “A agricultura capitalista e as origens da economia-mundo europeia no século XVI”, “O mercantilismo e a consolidação da economia-mundo europeia, 1600-1750” e “A segunda era de grande expansão da economia-mundo capitalista, 1730-1840.”

O primeiro volume ocupa-se “das origens e das condições iniciais do sistema mundial” (Wallerstein, 1974a, p. 22). E estas se circunscrevem à Europa do período de 1450 a 1640, que engloba a passagem do feudalismo ao capitalismo. No segundo volume o autor analisa a consolidação desse sistema que acontece no período de 1640 a 1815 e no volume III estuda a “conversão da economia-mundo num empreendimento global” (Id.), tornado possível pelo rápido avanço tecnológico-industrial no período de 1815 a 1917. O quarto volume, não publicado, iria analisar a consolidação desta economia-mundo capitalista pós 1917 até a atualidade, incluindo as tensões, até mesmo revolucionárias, que esta consolidação provocou[2].

A passagem do feudalismo ao capitalismo insere-se num longo processo sócio-político-econômico-religioso que passava a Europa. “A Europa feudal foi uma ‘civilização’, mas não um sistema mundo” (Wallerstein, 1974a, p. 28), sendo civilização aqui a cristandade. Wallerstein não concebe o feudalismo existindo com duas economias, uma de subsistência (rural) e uma de mercado (nas cidades), não podendo o feudalismo ser pensado como antitético ao comércio, pois ambos evoluem de par. Contudo, o feudalismo podia apenas suportar um volume limitado de comércio longínquo, pois a logística era cara, devendo, por isso, ser composto apenas por especiarias e bens de luxo, em contraposição ao comércio local que era de alimentação e artesanato (Wallerstein, 1974a, p. 30).

Wallerstein, na sequência, elabora uma análise sobre as razões da crise do feudalismo. Para o autor, a crise medieval é produto de tendências cíclicas – ponto ótimo/ápice de uma tecnologia havia sido atingido – ou mesmo como produto de uma tendência secular: após mil anos de apropriação feudal do excedente, atingira-se um ponto de rendimentos decrescentes; e argumenta também com a explicação climatológica: alterações das condições meteorológicas fez baixar a produtividade dos solos, agravada pelo estado primitivo da tecnologia agrícola e artesanal, enfim o aumento das epidemias que causam saturação populacional. Essas razões foram agravadas por uma economia de guerra que é instaurada, o que fez elevar o fardo fiscal que, por sua vez, levou à redução da produção e da circulação monetária. Os empréstimos régios em muitos casos conduziram à insolvência da corte, que por sua vez fez aumentar a crise de crédito, causando entesouramento do ouro. Tal fato produziu alteração nos padrões do comércio internacional: houve aumento de generalizado de preços e a consequente redução de clientes que acarretou a estagnação do comércio.

Segundo o autor, com a estagnação do comércio e dilemas monetários e financeiros causados pelas despesas crescentes, surge o conflito social, “clima de revolta endêmica” (revoluções camponesas, séc. XIII-XIV) e revolta camponesas em toda a Europa (repúblicas camponesas por volta de 1525 na Alemanha agora tornando-se luteranas). Por outro lado, não havia investimentos na agricultura para aumentar a produtividade e sair das limitações tecnológicas e a falta de fertilizantes. Wallerstein ressalta que a organização social da produção não era idêntica por toda a Europa, havendo domínios maiores na Europa Ocidental onde existia maior densidade populacional. Na Europa Central houve abandono de terras na crise que foram mais tarde adquiridas pelos senhores (Wallerstein, 1974a, p. 36).

Foi justamente nesse colapso e estagnação que aconteceu, segundo o autor, a passagem para a economia-mundo capitalista: no século XV aparecem restauradores da ordem interna na Europa, como foi o caso de Luís XI na França, Henrique VII na Inglaterra e Fernando de Aragão e Isabela de Castela na Espanha. Nesse processo de restauração, ou seja, de organização do Estado, advém a base para tributação que poderia financiar funcionários para cobrar impostos e tropas assalariadas, pois houve crescimento da população, renascimento do comércio, circulação monetária mais abundante e impostos são cobrados.

Segundo Chabol (1958, apud Wallerstein, 1974a, p. 40), “A par do poder do príncipe, outro poder crescia também: o do `corpo` burocrático.” A burocracia era o principal aliado do príncipe, emergindo como um grupo social distinto, com características e interesses especiais, mas que permanecia como um grupo social ambivalente: era um corpo composto majoritariamente por nobres que os reis tentavam usar contra a nobreza e esta contra o rei.

O autor se pergunta por que nações-estados e não impérios se formavam na Europa ao final do feudalismo, entre os séc. XII e XIV? Wallerstein pondera que na Europa da Baixa Idade Média existia uma “civilização cristã, mas não existia nenhum império-mundo nem uma economia-mundo” (Wallerstein, 1974a, p. 44). A maior parte da Europa feudal consistia em nódulos econômicos pequenos e autossuficientes com pequenos excedentes agrícolas apropriados por uma pequena classe nobre. Contudo, o autor afirma que coexistiam na Europa duas pequenas economias-mundo: uma baseada nas cidades-estados do norte da Itália e a outra nas cidades-estados da Flandres e do norte da Alemanha, tendo seu período de expansão (de 1150 a 1300) e de retração (de 1300 a 1450).

É fundamental reconhecer na obra de Wallerstein quais foram os três pilares essenciais para “o estabelecimento de uma tal economia-mundo capitalista: (i) uma expansão com a dimensão geográfica do mundo; (ii) o desenvolvimento de métodos diferenciados de controle do trabalho para diferentes produtos e diferentes zonas da economia-mundo; e (iii) a criação de aparelhos de Estado relativamente fortes naqueles que viriam a tornar-se os estados centrais desta economia-mundo capitalista.” (Wallerstein, 1974a, p. 45-46).

Para descrever as origens das condições iniciais do sistema mundial e funcionamento inicial por meio da passagem do feudalismo ao capitalismo, Wallerstein formula uma concepção de um sistema mundo, seu conceito teórico:

Um sistema mundo é um sistema social, um sistema que possui limites, estruturas, grupos associados, regras de legitimação e coerência. A sua vida é feita das forças em conflito que o mantém unido por tensão e o dilaceram na medida em que cada um dos grupos procura eternamente remodela-lo a seu proveito. Tem as características de um organismo, na medida que tem um tempo de vida durante o qual suas características mudam em alguns aspectos e permanecem estáveis noutros (Wallerstein, 1974a, p. 337).

Por “sistema social”, Wallerstein compreende que a vida neste sistema mundo seja “auto-contida” e que a “dinâmica de seu desenvolvimento seja em grande medida interna” (id.). Isto quer dizer que mesmo que fosse – hipoteticamente – isolado, o sistema iria continuar a funcionar, pois possui estrutura, grupos associados, regras de legitimação e é dinâmico: está em constante remodelação, mas também numa constante tensão, na qual os diferentes Estados participantes o remodelam a seu favor. É um organismo vivo.

As regras de legitimação são fornecidas pelos próprios Estados. Contudo, o sistema não se contém dentro de um ou alguns Estados; possui um escopo maior, tal como os antigos impérios; por isso é chamado de mundo, conclui Wallerstein (Wallerstein, 1974a, p. 338).

Esse sistema não se restringe apenas ao econômico. Se fosse o caso, diz o autor, seria chamado de “economia-mundo” e não de “sistema-mundo”, como advoga. Wallerstein chama atenção para a peculiaridade que esse sistema econômico já perdura por cerca de 500 anos e não se transformou em um império-mundo. E “esta peculiaridade é o aspecto político da forma de organização econômica chamada capitalismo”. E acrescenta:

O capitalismo foi capaz de florescer precisamente porque a economia-mundo continha dentro dos seus limites não um mas múltiplos sistemas políticos […. e porque] baseia-se na constante absorção das perdas econômicas pelas entidades políticas, enquanto os ganhos econômicos se distribuem entre as mãos ‘privadas’” (Wallerstein, 1974a, p. 338).

Dessa forma, para o autor, o capitalismo baseia-se e conta com o político, apesar de sua ideologia dizer o contrário, que quer a mínima ou nenhuma interferência do Estado.[3] Nosso autor prossegue afirmando que o capitalismo – “como modo econômico” – baseia-se no fato de que os fatores econômicos operarem numa “arena maior do que qualquer entidade política pode controlar totalmente”, fornecendo uma grande margem de manobra aos capitalistas e tornando constantemente possível “a expansão econômica do sistema mundial” (id.), apesar de distribuição desigual de seus resultados.

Wallerstein ressalta que não há um sistema mundial alternativo capaz de concorrer com este sistema econômico mundial e realizar uma melhor distribuição econômica, pois não há governo mundial. E este deveria ser um governo socialista, segundo o autor, para que fizesse a redistribuição das riquezas geradas e produzidas, o que, nas suas palavras, seria uma terceira forma de sistema-mundial. Não houve sistema-mundial em outras épocas, pois este demanda certas condições para sua gênese e expansão, especialmente o estado da tecnologia, que inclui as possibilidades de transporte e comunição dentro de seus limites. Como a tecnologia e as possibilidades tecnológicas são fluidas, os limites do sistema-mundo também o são.

Este sistema-mundo, como mencionado acima, comporta uma divisão funcional e geográfica do trabalho, em função da organização social do trabalho, “que legitima a capacidade de certos grupos dentro do sistema explorarem o trabalho dos outros, isto é, receberam uma maior parte do excedente” (Wallerstein, 1974a, p. 339). A má distribuição do capital acumulado e do capital humano fornece uma “forte tendência” para a automanutenção do sistema-mundo moderno. Ou seja, são forças que contribuem para a manutenção de um centro (com predominância de capital acumulado e de alta capacitação da força de trabalho) e de regiões periféricas (onde predomina a baixa poupança, por conseguinte, baixos investimentos e baixa qualificação da força de trabalho, e com Estados débeis com baixo nível de autonomia).

A ideologia construída e mantida nos países do centro e a homogeneização cultural também contribuem para proteger a manutenção da divisão dispare do mundo. Em síntese, a economia-mundo moderna é essencialmente capitalista.

Como síntese apreciativa, avaliamos que a obra de Wallerstein é original, vasta e envolve conceitos de variadas ciências, sobretudo da História, Economia, Sociologia e Ciência Política. A despeito da diversidade epistemológica, a obra é desenvolvida dentro de um conceito central: o do sistema-mundo como um sistema social. Trata-se de uma teoria sistêmica[4] e estruturalista[5], como o fizeram Raúl Prebisch, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, André Gunther Frank e Theotônio dos Santos com a Teoria da Dependência a respeito do atraso econômico da América Latina entre os anos 1950 e 1970. Por seu turno, Wallerstein assume o intento de explicar a formação do sistema-mundo do século XVI – início do sistema capitalista – até nossos dias, analisando o sistema capitalista como sistema mundial, incorporando estudo histórico. A unidade de análise é o sistema “mundo” e não os países. E dentro desse sistema, analisa as esferas econômicas, política e sociocultural como intrinsecamente conectadas, e não como tradicionalmente separadas.

O autor estuda a evolução do sistema capitalista, como este vai ampliando suas fronteiras até atingir o mundo todo. Existiram outros sistemas, políticos e econômicos, que propunham ser mundiais, porém apenas o capitalismo o foi. Na sua teoria, Wallerstein divide o mundo em três níveis hierárquicos, não sendo uma classificação fixa, pois países do centro podem tornar-se semi-periferia ou periferia e vice-versa. Aspectos econômicos, políticos e culturais são importantes para caracterizar e definir se um país faz parte do centro, semi-periferia ou da periferia do sistema-mundo. Abaixo retomamos, na forma de um quadro, os elementos que constituem e definem se uma nação faz parte do centro, periferia ou semi-periferia, a partir dos aspectos econômico, político e cultural.

Quadro 1 – Aspectos definidores do Sistema-Mundo.

NívelAspecto EconômicoAspecto PolíticoAspecto Cultural
CentroPaíses com produção de alto valor agregado tecnológico; produtor e exportador de tecnologia; mão de obra especializadaPaíses que são Estados fortes, tendo a capacidade de ampliar seu domínio para além de suas fronteirasPossuem forte identidade nacional e ampliam sua identidade como referencial para além das fronteiras
Semi-periferiaPaíses de industrialização de baixo valor tecnológico agregado; não produz tecnologia, mas a absorve; mão de obra semi-especializada e não especializadaEstados que têm o controle de sua política interna, mas não exercem influência externaPossuem identidade cultural e nacional média
PeriferiaPaíses que produzem produtos primários apenas; mão de obra não especializadaEstados que nem possuem o controle da sua política interna, nem exercem influência externaNão possuem identidade nacional ou é fragmentada, prevalecendo identidades étnica ou religiosa

Fonte: O autor, baseado na obra de Wallerstein.

A semi-periferia não é apenas um fator residual, ou seja, aquele fator que não se encaixaria nem em um, nem em outro nível. Ao contrário, ela possui função específica e serve como amortecedor, como tampão para assegurar que os problemas da periferia não cheguem diretamente ao centro. Países como México, Brasil, África do Sul e China possuem tais funções de “amortecedores” em relação à sua respectiva periferia.

As relações internacionais entre os países são, nesta visão wallersteiniana, relações de forças sociais se expandindo em classes mundiais, acompanhando o interesse do capitalismo. Com relação à religião, esta desempenha um papel importante na expansão do capitalismo, conforme demonstrou Marx Weber (2004) em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Do mesmo modo o Confucionismo, pelo seu princípio da “reverência” e respeito aos mais velhos e aos patrões, desempenhou papel importante na expansão do capitalismo na Ásia.

A seguir, na segunda seção, fazemos uma análise da atualidade da Teoria do Sistema-Mundo e como ela se manifesta hoje.

Atualidade da teoria do sistema-mundo

Marx e Engels (2006) no Manifesto Comunista, analisando a tendência do capitalismo, afirmam que este é mundial. Tal assertiva não deixa de ser também profética, pois há época desse escrito, o capitalismo não possuía a amplitude mundial que conhecemos hoje. Cerca de um século e meio depois Wallerstein verifica que de fato não existe fronteira política que limita o capitalismo, apesar de existirem países com fronteiras nacionais. O capitalismo não se restringe a um país, sendo essa sua grande vantagem. Por sua vez, o socialismo, para Wallerstein, está integrado ao sistema capitalista.

Nessa seção analisamos como o mundo foi estruturado para reproduzir o sistema-mundo, através mesmo das instituições mais caras que temos, como o Banco Mundial, FMI, BID, ONU, entre outras. Em seguida, analisamos as consequências desta estrutura manifestada na divisão internacional do trabalho, na exploração dos recursos naturais, mão de obra e capital.

Instituições de Bretton Woods e “Consenso de Washington”. O mundo em seu aspecto econômico-financeiro, com viés político e social, incluindo aqui a divisão mundial do trabalho, está estruturado em torno das instituições criadas a partir dos acordos de Bretton Woods, quando os ministros das finanças dos principais países (44 ao todo) se reuniram em 1944 neste balneário de New Hampshire nos Estados Unidos para estabelecer as regras de funcionamento do comércio e da economia mundial e evitar uma nova depressão econômica, como aquela da crise de 1929. Estas regras e acordos – muitos deles sobre questões de política monetária e câmbio – ficaram conhecidos como Sistema Bretton Woods que indexou as moedas estrangeiras ao dólar americano, tornando os Estados Unidos o grande comandante e beneficiário da dolarização do mundo.

A partir dos princípios da economia liberal, foram criadas, por meio dos acordos de Bretton Woods, instituições como o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD, mais tarde passou-se a chamar-se Banco Mundial), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e recomendou-se a criação de uma instituição que garantisse o funcionamento do comércio mundial nos moldes liberais. Não houve acordo na reunião de Havana em 1947-48 sobre a colocação em funcionamento de uma ampla instituição com esta finalidade, mas optou-se em por em prática uma parte do que seria essa instituição, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, conhecido na sigla em inglês por GATT (General Agreement on Trade and Tariffs). O GATT vigorou até 1995, quando finalmente entrou em vigor uma grande estrutura que estabelece as regras do comércio do mundo, chamada Organização Mundial do Comércio (OMC)[6]. Somente países de economia de mercado podem participar da instituição.

Neste sentido, o funcionamento atual do sistema-mundo é mantido através dos empréstimos concedidos pelo FMI e outras instituições sediadas em Washington (Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento e Tesouro Americano), que são condicionados à aplicação dos princípios neoliberais ou ao que se cunhou “Consenso de Washington”. Este termo foi estabelecido pelo economista John Williamson em 1990, após seminário de estudiosos e representantes de governos latino-americanos, e por observadores das instituições financeiras mencionadas acima, reunidos em Washington para debater o porquê do insucesso das economias desta região após a “década perdida” de 1980. Chegou-se à conclusão que havia necessidade de mais mercado e menos governo interferindo na economia (Batista, 1994). Williamson (1993) via as políticas do Consenso de Washington como a melhor expressão do pensamento econômico então disponível e, portanto, deveria haver uma convergência em torno desses princípios, bem como serem universalizados, independente das particularidades do país.

O “Consenso de Washington”, segundo Batista (1994), designa um mínimo denominador comum de recomendações de políticas econômicas feitas por instituições financeiras baseadas em Washington (FMI, Banco Mundial e Departamento do Tesouro Americano), a serem aplicadas especialmente pelos países da periferia, como a América Latina e África. Essas recomendações, de cunho liberal, tornaram-se a doutrina oficial dessas instituições e fazem parte do “receituário” e condicionalidades para empréstimo aos países em desenvolvimento com crises fiscais e econômicas: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado, abertura comercial, investimento estrangeiro direto (com eliminação de restrições), privatização das estatais, desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas) e direito à propriedade intelectual.

Contrariando a obrigatoriedade de adoção universal dos princípios do Consenso de Washington, especialmente nos países em desenvolvimento, o economista sul-coreano e professor da universidade de Cambridge, na Inglaterra, Ha-Joon Chang (2004) demonstra em sua obra, Chutando a escala: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica, que todos os países atualmente desenvolvidos usaram mecanismos de proteção de mercado e de incentivos governamentais para desenvolver sua indústria nascente. Os países desenvolvidos pressionam os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos a adotar “boas práticas e boas instituições”, tal qual preconiza o receituário do Consenso de Washington. As boas instituições seriam a democracia, poder judiciário que assegure o direito de propriedade e Banco Central independente. Esses mesmos países, após terem atingido o nível de desenvolvimento usando políticas restritivas e protecionistas, ou seja, não praticando as “boas políticas e instituições” que preconizam, impõem sua ideologia liberal e afirmam que tais políticas não são adequadas ou que não podem ser usadas pelos países em desenvolvimento. Os dados históricos que Chang apresenta em sua obra faz desmoronar o mito que os países ricos sempre foram liberais, mas que, na verdade, constroem estas instituições e ideários (como o Consenso de Washington) para se defenderem e se manterem como ganhadores desse sistema construído por eles mesmos, assevera o autor. Este fato tem a finalidade e faz perpetuar o sistema-mundo tal como exposto por Wallerstein.

Portanto, as condicionalidades implícitas nos empréstimos das instituições financeiras internacionais reproduzem o caráter de dependência, a divisão internacional do trabalho e a estrutura do sistema-mundo (centro, periferia e semi-periferia).[7]

Nações Unidas e a paz liberal. A base do modelo de operações de paz constituído pelas Nações Unidas (ou imposto a esta instituição) e de reconstrução de países invadidos por potências ocidentais é o mesmo das instituições como o Banco Mundial, FMI e BID e contém em si a mesma problemática: pressupostos liberais ocidentais – democracia liberal e mercado. Bellamy e Williams definem tal problemática da seguinte maneira: “O objetivo principal das operações de paz se torna, assim, não tanto a criação de espaços para a resolução de conflitos negociados entre os Estados, mas sim a contribuição ativa para a construção de políticas, economias e sociedades liberais” (Bellamy & Williams, 2008, p. 4-5).

A partir desse modelo cunhou-se o conceito de “Paz liberal” para designar as práticas de missão de paz e de reconstrução, seja por parte da ONU, seja pelos governos americano e europeus. Segundo a pesquisadora portuguesa Teresa Almeida Cravo, “paz liberal reflete os valores hegemônicos e as necessidades políticas, econômicas e geoestratégicas dos Estados Ocidentais” (2013, p. 27). Essa constatação vem a reforçar a atualidade da teoria do sistema-mundo, pois são os valores dos Estados do centro que, levados de forma embutida em sua “ajuda humanitária” e nos empréstimos financeiros, reforçam a estrutura do sistema-mundo.

Recursos naturais, mão de obra e capital. Os países da periferia possuem recursos naturais e mão de obra em abundância, mas não possuem o capital para aproveitar produtivamente esses dois itens. A disponibilidade de capital para investimento (especialmente produtivo) é elemento crucial para o desenvolvimento de uma nação (Salm, 2010, p. 14). Por isso, os países da periferia, no afã de maior desenvolvimento, abrem suas portas para o capital estrangeiro para compensar o baixo nível de poupança interna e de investimento[8]. Tal abertura se dá numa relação desigual, estando o capital estrangeiro numa posição de superioridade, o que faz com que as condições de entrada ou as condições que são negociadas sejam inferiores ou desfavoráveis ao país receptor, especialmente no que refere-se ao uso dos recursos naturais de forma exploratória, sem a devida proteção ao meio-ambiente, além de pouco respeito aos trabalhadores. Os países da periferia ou semi-periferia que querem impor restrições ambientais ou trabalhistas estão perdendo esses investimentos para países onde essas restrições são inexistentes ou muito baixas.[9]

A carência em mão de obra qualificada, em ciência e tecnologia e em capital social básico (como saneamento, saúde e segurança), além de deficiências em infraestrutura (seja, em rodovias, ferrovias, portuárias ou de mobilidade urbana) constituem obstáculos, condicionam a estratégia de desenvolvimento e fazem com que países como o Brasil e outros permaneçam na periferia ou semiperiferia do sistema-mundo (Salm, 2010, p. 16). O autor observa ainda que historicamente esses obstáculos não são resolvidos somente pelas “forças” do mercado. Para serem superados faz-se necessário a atuação do Estado como indutor e produtor de mudanças e de superação dessas limitações, com políticas públicas adequadas, sendo o Estado o promotor da superação e do desenvolvimento.

Não obstante, vários elementos evidenciam que há uma estrutura internacional estabelecida (como o Consenso de Washington e as condicionalidades embarcadas nos empréstimos do FMI e Banco Mundial ou mesmo a OMC) para que o Estado não seja o elemento central de superação dessa estrutura, mas que seja realizado pelo mercado, mesmo que até o presente não se tenha notícia que o mercado tenha resolvido tais questões (Ibd., p. 16-17).

Do mesmo modo, não serão as forças do mercado que impedirão que os países da periferia tenham sua agricultura dependente de grandes corporações de países do centro. Mesmo o avanço tecnológico da agricultura nos países da semi-periferia e periferia reflete o sistema-mundo, conforme mostra Filomeno (2012). As tecnologias e propriedades intelectuais pertencem às grandes corporações do centro que atuam nesse setor, como a Monsanto, Syngeta e Bayer ScienceCrop. Essas empresas usam todos os meios ao seu alcance para construir e manter seu oligopólio (e em algumas áreas, monopólio) para manter fazendeiros e agricultores dependentes de suas sementes, por meio da manipulação genética, tornando essas sementes estéreis. Ou seja, essas sementes só produzem uma vez, fazendo com que os produtores tenham que comprar apenas dessas empresas suas sementes para cada plantação. Outro dano importante que esse processo de dependência cria é a eliminação da diversidade de espécies de cada cultura agrícola. Por exemplo, em vez de desenvolver sementes para cada espécie de milho, essas empresas trabalham com apenas uma. Tal fato constitui em ganhos maiores, devido ao fator escala, para as empresas da genética de sementes e do agronegócio, mas perda ao consumidor que não pode mais se beneficiar da variedade de produtos.[10] No caso que ainda é possível a reprodução das sementes, como na cultura da soja geneticamente modificada, os fazendeiros e agricultores são obrigados a pagar royalties à Monsanto, mesmo sobre sementes reservadas de sua própria produção (Filomeno, 2012, p. 310).

A nova divisão internacional do trabalho. O sistema-mundo se caracteriza por uma divisão internacional do trabalho, de modo que alguns países produzem matérias-primas, outros produzem produtos semi-industrializados e industrializados de baixa e média tecnologia e outros de alta tecnologia.

Observa-se, com a economia do conhecimento, uma transformação estrutural do capitalismo: a passagem do capitalismo industrial ao financeiro. Em outras palavras, as grandes corporações não mantêm mais seu foco na produção. Exemplificamos com a empresa norte-americana do estado do Oregon, a Nike. Esta empresa não possui fábricas, nem caminhões ou navios para produzir e executar sua logística; possui apenas o cérebro que controla as atividades da empresa. Suas fábricas são terceirizadas na China, Vietnã e outros países asiáticos de baixo custo de mão-de-obra, bem como alguma produção no Brasil; sua logística é realizada e controlada por uma empresa do Reino Unido; suas atividades de TI (Tecnologia da Informação) estão a cargo de uma empresa da Índia; já o design e desenvolvimento de produto – consideradas atividades mais “nobres”- permanecem nos EUA.

Este não é apenas um exemplo isolado, mas constitui-se numa tendência do capitalismo atual que concentra as atividades de alto valor agregado nos países de origem das corporações multinacionais e terceirizam as outras atividades, especialmente a fabril, aos países da periferia e semi-periferia. A terceirização caracteriza-se, segundo Ricardo Antunes e Giovanni Alves (2004) pela precarização do trabalho. Nenhuma ou pouca garantia é dada ao trabalhador ou mesmo à empresa fabril terceirizada. A pressão por baixos salários resulta em condições desumanas de trabalho e mesmo em condições análogas à escravidão nos ambientes de trabalho, que está aumentando no mundo. Tais condições é a realidade corrente em países como a China, Vietnã, Combodja, Laos e mesmo em algumas regiões do Brasil, incluindo o setor de confecção dentro da cidade de São Paulo.

Nessa tendência, utiliza-se o mercado para a busca de “parceiros” terceirizados e, assim, substituir a hierarquia vertical das fábricas próprias que produziam seus insumos e componentes, com empregos fixos e estáveis, para substituir a produção ou montagem do produto que a empresa comercializa e mesmo usa-se “parceiros” para a distribuição, venda, marketing, cobrança, serviço de atendimento ao cliente (pós-venda), e assim por diante. Tudo é justificado pela busca imperiosa da flexibilidade e competitividade que o mercado lhes impõe. Tais características imperativas de flexibilidade no processo produtivo e de competitividade que a empresa busca a qualquer custo é realizado à custa de perdas ao trabalhador e a consequente precarização do trabalho, como argumentam Antunes e Alves (2004).

Nesta nova divisão internacional do trabalho, observa-se um amplo processo de redistribuição das empresas pelo mundo; as empresas reestruturam-se para adaptar-se às novas exigências de produtividade, agilidade, capacidade de inovação e competitividade; a globalização envolve transformação na esfera do trabalho, na qual modificam-se as técnicas produtivas, as condições jurídicas, políticas e sociais. Ou seja, procura-se destruir o que é próprio de cada povo e sua liberdade de escolha de sistemas mais apropriados à sua realidade e o capitalismo implanta mundo afora os mesmos padrões de racionalidade de técnicas de produção, sistemas jurídico, político, econômico e social em nome do progresso, da produtividade e da competição global. O raciocínio aqui segue a lógica de que se é racional é superior e, portanto, legítimo de ser implantado, mesmo em detrimento da destruição das identidades culturais e especificidades locais.

Beverly Silver (2005) demonstra que há um conflito entre trabalho-capital como processo histórico em escala mundial. Como respostas estratégicas” ou “soluções” a esse conflito e aos movimentos de trabalhadores organizados e fortes, os capitalistas possuem um modelo constituído por quatro tipologias de “soluções” que são postas em prática sempre que necessárias. Estas são: (i) Solução espacial: relocação geográfica da produção. Ao deslocar ou ameaçar a deslocar a competição, os trabalhadores são colocados a competir entre si. (ii) Solução tecnológica/organizacional: introdução de tecnologias para reduzir a mão-de-obra e a reestruturação das organizações (ampliação da terceirização e relações trabalhistas contingentes). (iii) Solução de produto: deslocamento do capital para novas linhas de produção, menos sujeitas à competição e aos conflitos. (iv) Solução financeira: deslocamento do capital da produção para as finanças e especulação. (SILVER, 2005).

Os governos que buscam e implementam um sistema alternativo são classificados como governos ou países exóticos que não querem o progresso para seu povo e que corrompem a democracia e são contrários aos valores liberais (ocidentais), sendo o mercado a única e melhor solução para todo e qualquer país, independente de seu estágio de desenvolvimento e suas carências internas.

A grande mídia e ampla parcela do sistema de ensino, sem apresentar uma reflexão mais ampla e mesmo racional e democrática sobre o assunto, consolidam e legitimam a prática de desconstrução de imagem e de demonização de tais líderes ou governos que persistem em seus projetos anti-hegemônicos[11].

Assim, como consequência da nova divisão internacional do trabalho, impulsionada por esta nova globalização, conforma a define Boaventura de Souza Santos (2005), a procura por mão-de-obra barata faz com que as grandes empresas busquem força de trabalho em todo o mundo.

Portanto, a passagem do capitalismo industrial – atividade doravante relegada à periferia e semi-periferia, com exceção daquela parcela que possui grande valor agregado na atividade produtiva – ao capitalismo financeiro mantém e reforça o sistema-mundo proposto por Wallerstein. E nesse capitalismo financeiro cada vez mais se prescinde do trabalho humano, visto que não é mais o trabalho comprado pelo capitalista, transformado em lucro e alienado do trabalhador que produz, mas o juro e a especulação financeira, no qual o trabalho perde cada vez mais o sentido, pois as máquinas tendem a fazê-lo de modo mais efetivo (Pochmann, 1999).

Passado e presente na análise do sistema-mundo. Em texto recente, Wallerstein (2012) esclarece que não vê sua teria do sistema-mundo como apenas um avanço na epistemologia interpretativo do mundo. Como cientista social engajado, quer que seja, antes, “um movimento social e do saber, uma força de mudança social”. Assim advoga em favor de sua teoria:

A análise dos Sistemas-Mundo é mais do que uma perspectiva; é também mais do que uma teoria, se é que é uma teoria. É um movimento do saber, e isso é de crucial importância para o desenvolvimento futuro das ciências sociais históricas […, sendo] capaz de afetar a evolução corrente do conhecimento coletivo (Wallerstein, 2012, p. 17-18).

Wallerstein quer romper com o modelo das ciências sociais históricas criadas entre 1850 e 1945, pois este “era o período de auge da dominação política, econômica e cultural do Ocidente sobre o sistema-mundo” (Wallerstein, 2012, p. 18). E este movimento do saber precisa ganhar forma, coesão e não ser mera reprodução dos saberes produzidos no centro que são ainda expressão de domínio sobre o resto do sistema-mundo.

As premissas do sistema-mundo visto pelo seu âmbito de dominação, ainda segundo o autor, foram ganhando força epistemológica com o aparecimento das teorias da modernização (mundo desenvolvido e mundo subdesenvolvido causado por fatores econômicos e políticos e não por socioculturais, como as teorias do centro argumentavam) e da dependência, o que torna esta teoria um movimento do saber. Juntam-se a este movimento, o revisionismo marxista e a teoria da “longa duração da história” proposta por Braudel, “minimizando a importância da história política episódica” (Ibd., p. 19-21). Estes são chamados de movimentos revisionistas e a partir dos quais se origina a análise do sistema-mundo, conforme pondera o autor:

O que a análise dos sistemas-mundo tentou fazer foi tomar elementos de cada uma das quatro tentativas revisionistas e, juntando-os, construir uma ferramenta que fosse capaz de desafiar as premissas epistemológicas até então dominantes e que tinham moldado as assim chamadas disciplinas – como argumentos intelectuais, como aparatos organizacionais e como fenômenos culturais (Wallerstein, 2012, p. 22).

A grande força da teoria do sistema-mundo é que ela não se define a si mesma como estreita e dogmática (Wallerstein, 2012, p. 27), mas, sendo multidisciplinar, dialoga com todos os âmbitos da sociedade, da política, da economia e da cultura. Por isso, se mantém como ferramenta atual de análise da sociedade e do mundo.

Considerações finais

Ao criar instituições internacionais que garantem o funcionamento da economia, comércio e mercados à sua “imagem e semelhança” – instituições criadas por eles mesmos – os países do centro se beneficiam e mantém o status quo do sistema-mundo com pequenas adaptações.[12] Um exemplo é a prática dos pressupostos de liberalização do comércio mundial e serviços pela Organização Mundial do Comércio (OMC), na qual reza que os países da periferia precisam abrir seus mercados domésticos para a importação – sem entraves – de bens manufaturados de alto valor agregado dos países do centro, além de serviços, como o setor bancário, de seguros, telecomunicações, licitações governamentais, entre outros, sem a contrapartida da liberação das importações de produtos agrícolas por parte dos países do centro, especialmente sem o fim dos subsídios à agricultura por esses países.

Verificamos nesse estudo que, para a teoria do sistema-mundo, as fronteiras nacionais não são importantes para pensar o capitalismo como sistema social, pois este, conforme demonstra Wallerstein, nunca se deixou aprisionar dentro destas, desde o século XVI.

O fato da expansão global do capitalismo e dos países do centro usarem as instituições multilaterais para manter o sistema-mundo funcionando, tal qual Wallerstein o descreveu, evidencia que o modelo do nosso autor continua presente nas estruturas e nas relações assimétricas entre os países. A TSM continua válida como categoria analítica para compreender a estrutura da sociedade global hodierna em suas relações sócio-político-econômicas.

Referências

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Notas

[1] A Teoria da Dependência foi gestada no âmbito das pesquisas desenvolvidas junto à CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas) nas décadas de 1960 e 1970 por Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, bem como por Theotônio dos Santos, Andre Gunter Frank, Raúl Prebisch, entre outros. Esta teoria enfatiza a relação de desigualdade entre os países do norte (ricos) com os do sul (pobres), havendo uma estrutura – estruturante –fazendo com que os países do sul se mantivessem subdesenvolvidos e pobres: “a estrutura das relações econômicas vigentes entre os países do centro e da periferia tendia a reproduzir as condições de subdesenvolvimento e, mais ainda, a aumentar a assimetria entre os países desenvolvidos e os periféricos. A chave principal para a explicação do desenvolvimento desigual estava na ideia de ´deterioração dos termos de troca´” (Jatobá, 2013, p. 64). De fato, a relação de intercâmbio desigual, na qual as exportações de bens primários dos países latino-americanos recebiam um valor muito reduzido, ao passo que as exportações de produtos manufaturados dos países centrais eram muito apreciadas, favorecendo estes últimos em suas relações de troca. Cardoso e Faletto (apud Jatobá, 2013) acrescentam que a dinâmica doméstica, por meio de sua organização político-social, contribuía para tal dependência e subdesenvolvimento. “Eles identificam a existência de vínculos entre as classes sociais de países distintos, com interesses comuns” (Jatobá, 2013, p. 65).

[2] Wallerstein inicia sua trilogia analisando o estudo da mudança social na história e aponta duas marcas divisórias: a primeira mudança marcante na humanidade foi a revolução neolítica ou agrícola e a segunda foi a criação do mundo moderno, um sistema socioeconômico-político, como será abordado mais adiante. Com relação a esta, assinala que (i) foi o centro dos debates das Ciências Sociais (“o grande debate”); (ii) há desacordo sobre os motores desta mudança; e (iii) há acordo que grandes mudanças estruturais ocorreram nas últimas centenas de anos (Wallerstein, 1974a, p. 15).

O autor aponta que, com relação à disputa em torno da criação do mundo moderno, ou seja, do que o caracteriza e quais são suas variáveis de análise, e seu “itinerário intelectual”, há dois debates que estão interconectados: o primeiro – estritamente marxista – que é a concepção material da história, ou o materialismo histórico, parte do princípio de que “toda história é a história da luta de classes” (Wallerstein, 1974a, p. 15-16). Com relação a este, o autor se pergunta se são somente as classes as únicas unidades operacionais significativas nas arenas sociais e políticas ou se seriam uma trindade conforme posto por Marx Weber: classes, grupos de status e partidos, cujas interações explicam o processo político. Já o segundo debate se dá sobre valores presentes, dominantes ou ausentes na sociedade e se pergunta se os homens justificam suas ações por preferência à ideologia ou desenvolvem uma linguagem comum e uma visão de mundo comum.

[3] O autor é enfático nesta questão: “Não estou a defender aqui o clássico argumento da ideologia capitalista segundo o qual o capitalismo é um sistema baseado não na interferência do Estado nos assuntos econômicos. Antes pelo contrário! O capitalismo baseia-se na constante absorção das perdas econômicas pelas entidades públicas, enquanto os ganhos econômicos se distribuem entre mãos ‘privadas’.” (Wallerstein).

[4] Na definição de Caws, “um sistema é um conjunto de entidades mutuamente inter-relacionadas e interdependentes, operando juntas em um nível determinado de organização” (1974, p. 3). Um sistema social é um conjunto de partes ordenadas através do próprio sistema, no qual o interesse de um é o interesse de todos, segundo a Teoria Geral dos Sistemas de Ludwig Von Bertalanffy que concebe um sistema como um organismo vivo, dentro da lógica funcionalista. Na definição de Caws, “um sistema é um conjunto de entidades mutuamente inter-relacionadas e interdependentes, operando juntas em um nível determinado de organização” (1974, p. 3).

[5] De acordo com Thiry-Cherques (2006), o estruturalismo trata os objetos de análise enquanto posições em sistemas estruturados e não como objetos existentes independentemente de uma estrutura. Essa estrutura é relacional e condiciona a ação desses objetos ou sujeitos e pode ser abstrata (formada por ideias, ideologias, sistemas simbólicos) ou concreta. Quando a estrutura é concreta, já faz parte de um sistema, como no sistema-mundo de Wallerstein. Da mesma forma a noção de história concebida por Wallerstein na TSM ou pelos teóricos da Teoria da Dependência, esta não é concebida em etapas em progresso contínuo como na visão hegeliana como um eterno aperfeiçoamento. Aqui a história não é concebida por elementos ou fatos isolados, mas por seus nexos e como noção operacional (Ibd., p. 142-3). Assim, as sociedades não são etapas de um desenvolvimento progressivo, mas são resultados de uma estrutura de mundo concebida e posta em prática pelos países do centro.

[6] Observamos que a partir do início do século XXI a OMC está perdendo força e preponderância em ser o timoneiro do comércio internacional. Exemplo disso é o fato da Rodada de Doha instaurada em 2001 na capital do Qatar com o objetivo de obter maior liberalização do comércio mundial não ter conseguido ter sucesso devido à falta de acordo entre os blocos que se formaram no interior da OMC: os países ricos não querem abrir mão do subsídio agrícola e outras formas de proteção aos seus agricultores e fazendeiros, nem levantar barreiras à importação de produtos agrícolas de países pobres e emergentes. Outro fato relevante para o esvaziamento da OMC é a multiplicação e o fortalecimento dos blocos econômicos e a sua consequente integração regional. Já está em fase avançada o mega acordo de livre comércio entre Estados Unidos e a União Europeia, conhecido como TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership). Além desse, os Estados Unidos conduziram a negociação de outro mega acordo, a parceria Trans-Pacífica (TTP), com as principais economias asiáticas e países da América Latina da costa do Pacífico (Chile, Peru, Colômbia e México), excluindo, ou melhor, isolando, a China. Por sua magnitude e a concentração do PIB mundial em apenas dois acordos de livre comércio, esses acordos são considerados nocivos aos princípios da OMC. Tais acordos bilaterais colocam em xeque a política preferencial por acordos multilaterais, especialmente por causa de sua magnitude: PIB americano está em torno de EU$ 90 bilhões, PIB da União Europeia é de EU$ 120 bilhões e o PIB do resto do mundo é cerca de EU$ 100 bilhões, conforme dados da União Europeia (http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ttip/about-ttip/). Finalmente, observa-se pouca ênfase dos Estados Unidos em levar adiante os ideais da OMC (por isso sua preferência por mega-acordos de comércio) visto que na OMC cada país-membro tem um voto e todo e qualquer membro pode levar outro membro à “corte” interna da instituição. Tais prerrogativas não agradam aos americanos, já que são frequentes suas condenações.

[7] O artigo de Paulo Nogueira Batista (1994) é esclarecedor para uma boa compreensão dessa problemática: O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos, disponível em: <http://www.fau.usp.br/cursos/graduacao/arq_urbanismo/disciplinas/
aup0270/4dossie/nogueira94/nog94-cons-washn.pdf >.

[8] Segundo Carlos Salm (2010), o volume de excedente bruto da economia brasileira – que é basicamente o lucro – em relação ao PIB é de 44%. Já o nível de investimento é de 18%. Isto significa que o nível de excedente da economia do Brasil é de 26%, sendo que parte desse total é enviada aos paraísos fiscais (cerca de US$ 55 bilhões por ano). Com relação à China, a taxa de investimento é de 40% do PIB, fato que explica o crescimento anual de dois dígitos da economia chinesa.

[9] No afã de retomar o crescimento econômico e atrair mineradoras e petrolíferas estrangeiras, em julho de 2014 o Congresso do Peru aprovou lei, enviada pelo presidente Omala, reduzindo as multas e exigências ambientais às estas mineradoras e petrolíferas. (Fonte: http://www.institutocarbonobrasil.org.br/noticias6/noticia=737731). Por outro lado, o governo do Equador vem aumentando as exigências ambientais e as políticas de proteção da diversidade ambiental. Contudo, por tais políticas o país vem perdendo investimento estrangeiro, pois essas medidas de maior proteção ao meio-ambiente não são “amigáveis” ao capital externo, já as do Peru são.

[10] Nesse sentido, é fato marcante que no Brasil temos pouco mais que duas variedades de banana, três de batata, duas de feijão, uma de milho e assim por diante. Essa concentração em número de empresas e em diversidade põe em risco a segurança alimentar da humanidade. Já no Equador, por exemplo, onde as empresas de sementes e do agronegócio não são preponderantes, os consumidores podem se beneficiar de uma grande diversidade de alimentos com maior segurança em termos de saúde (sem transgênicos): são mais de 70 tipos de batata, 30 de milho e de banana, etc.

[11] Os debates de televisão, por exemplo, são realizados sem o contraditório. Ou seja, convida-se pessoas para debater assuntos relacionados à política, economia e sociedade apenas de visão majoritariamente conservadora. São exceções os casos nos quais assiste-se a um debate televisivo que possui convidados de opiniões progressistas e conservadoras. Faço tal assertiva baseado na observação empírica da programação da Globo News nos anos de 2013 e 2014, especialmente nos programas Globo News Painel e Entre Aspas (além de outros programas de “debates” da emissora”). Foi sintomático o programa Globo News Painel de 28/12/2013 apresentado por William Waack que tinha como pauta “Direita e Esquerda no Brasil” (http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news-painel/t/todos-os-videos/v/convidados-debatem-o-padrao-da-politica-brasileira/3046926/). Nenhum dos três “debatedores” possuía posicionamento de esquerda. Este caso não constitui-se em exceção mas na regra dos debates televisivos da televisão aberta. O telespectador, por sua vez, não conhecendo uma opinião heterogênea ou alternativa, acredita no que é apresentado como sendo realidade objetiva.

[12] É esclarecedor o livro do cientista político norte americano Robert Kagan: “The World America Made” (2012). O autor destaca que, a partir de suas crenças, como o liberalismo, “os Estados Unidos construíram um mundo à sua imagem e semelhança”, do qual se beneficiam, sobretudo suas empresas.

Para citar este artículo: Martins, J. R. (2015). Immanuel Wallerstein e o sistema-mundo: uma teoria ainda atual? Iberoamérica Social: revista-red de estudios sociales (V), pp. 95-108. Recuperado de https://iberoamericasocial.com/immanuel-wallerstein-e-o-sistema-mundo-uma-teoria-ainda-atual/

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