downloadpdfMárcio Júlio da Silva Mattos [3]
Departamento de Sociologia – Universidade de Brasília (UnB)
mjmattos@gmail.com e marciojulio@unb.br

Resumo: Nesta comunicação, pretendemos discutir o controle social durante a Primeira República, a partir da análise do sistema coronelista brasileiro, informados pela ética da cordialidade na identidade nacional. Para tanto, apresentaremos características do sistema político, conforme descrito por Leal (1948), a partir de um quadro analítico construído por meio da noção de figuração de Elias (1993). Nesse sentido, destacamos a configuração do regime político, em que surgem como aspectos centrais a matriz econômica agrária, a decadência dos grandes proprietários de terras, a fragilidade do poder público e a mudança do regime político, por meio da implantação do modelo representativo que amplia o sufrágio. Por fim, a cordialidade será o recurso interpretativo das relações de controle social no interior do país, em oposição à ética da civilidade que a alteração modernista supunha à época, conforme descreve Holanda (1936).

Palavras-chave: Coronelismo. Controle Social. Cordialidade. Identidade Nacional.

Abstract: In this paper, I propose to discuss social control during the First Republic from the Brazilian coronelism system of analysis. In this sense, the notion of a cordiality ethic is informing the national identity comprehension. Thus, I will present some characteristics of the political system, as described by Leal (1948), using a specific analytical framework built from the Elias’s concept of figuration (1993). The configuration of the political regime is marked by the agrarian economic matrix, the decline of large landowners, the weakness of the government and the implementation of the representative model that extends suffrage. Finally, the notion of cordiality is a key interpretative feature for social control relationships, as opposed to the ethics of civility that modernist changes assumed at the time, as described by Holanda (1936).

Keywords: Coronelism. Social Control. Cordiality. National Identity.

 

Introdução

Desde os estudos sociológicos clássicos, o tema do controle social é objeto de discussão e, não raro, de pouco consenso conceitual. Émile Durkheim, conhecido sociólogo francês, apresenta a sociedade como uma intrincada rede de relações amparadas por uma dada ordem social, reificada pela coletividade, e que dota a vida em sociedade de relevância moral (Durkheim, 1999). O compartilhamento de valores comuns, aprendidos por formas de socialização, como família, escola, igreja, é decisivo à própria concepção de integração social, em que a consciência coletiva, espécie de substrato moral edificante de uma dada sociedade, realiza-se em relações específicas de solidariedade. Em casos de violação das regras sociais, como nos crimes, o componente moral da sociedade é aviltado, ofendido, e é a ele que se deve restaurar a confiança. É própria da interpretação funcionalista representada por Durkheim a constatação de que à ordem social subjaz a função de controle social desempenhada pelo conjunto da sociedade, mas especializada e expressa em certas instituições, como escolas, polícias, tribunais, hospitais etc. Mas o que é controle social?

Como vários conceitos nas Ciências Sociais, o termo invoca diferentes interpretações e usos que refletem as construções e os caminhos, metodológicos e epistemológicos, que informam sua trajetória. Fadada à inevitável imprecisão acadêmica seria a tentativa de estipular uma definição para controle social, mas é necessário contextualizar a forma como será empregado nesse trabalho e, mais do que isso, estabelecer os limites da sua operacionalização. Na tradição funcionalista, como discutido inicialmente, o controle social se dirige a promover a integração social, na medida em que busca reiterar os valores morais compartilhados socialmente e expressos pela consciência coletiva. Sempre que a integração social é falha, é como se a sociedade estivesse adoecida, indicando disfuncionalidades que caracterizam contextos de anomia. Nesse sentido, o controle social é analisado a partir de um contexto geral, em que a ordem social é tida como uma espécie de indicador da qualidade da vida em sociedade, cujos agentes são deslocalizados e defendem um conjunto de valores morais representativos da consciência coletiva.

Nessa linha, outra contribuição é oferecida por Norbert Elias, que analisa o processo civilizador como forma de constituição psicológica dos indivíduos e de composição do tecido social (Elias, 1993). Para o autor, os mecanismos próprios da convivência social, como vergonha e vexação e também alegrias e vicissitudes, limitam as condutas individuais, convertendo-as com o tempo em autocontrole. Assim, a ordem social é erigida por meio do entrelaçamento de planos e ações individuais isolados, mas que dão origem a uma ordem cuja influência é irresistível aos indivíduos. As relações de interdependência resultantes do convívio social conformam uma dada ordem que se lhes impõe de forma a suplantar os desígnios passionais e racionais dos indivíduos. Nessa perspectiva, o controle social se dirige à integração social de uma forma geral, em que o indivíduo se realiza na vida em sociedade, mas a análise está localizada nos processos sociais que possibilitam a divisão e a interdependência de funções, assim como a internalização do autocontrole, particularmente por meio da racionalização (Elias, 1993). No sentido do controle externo para o autocontrole, Elias destaca a prevalência desse último com o avanço do processo civilizador, indicando que a normalização dos comportamentos sociais é, antes, operada nos próprios indivíduos.

Entretanto, a tradição liberal e, de certa forma, conservadora inspirada na sociologia weberiana centra sua análise nas relações de poder e dominação que caracterizam as sociedades modernas. Para Edward Ross, “há razões para acreditar que nossa ordem social (…) parece mais ser uma construção do que um desenvolvimento” (Ross, 1959), em que a conservação da sociedade está associada à ordem social e à sua manutenção, conferindo centralidade ao controle social como categoria sociológica. Nota-se a preocupação com as instituições envolvidas na “adequação dos comportamentos individuais às necessidades do grupo”, em que o Estado é comumente objeto de análise (Ross, 1959). Dessa forma, o controle social é novamente mobilizado como forma de manutenção da ordem social, como instrumento de normalização de condutas e submissão do individual pelo social, contudo com ênfase nas burocracias envolvidas em sua realização.

De forma geral, as principais críticas às noções de controle social nas Ciências Sociais dizem respeito a dois pontos centrais. Em primeiro lugar, a ideia de integração social (e suas reinterpretações, como a coesão social, por exemplo) é importante na análise social, mas parece carecer de referenciais que possibilitem operacionalizações adequadas e abrangentes. De certa forma, como lembra Alvarez (2004), ao centrar no componente moral e edificante da integração social, recai-se numa instrumentalização excessiva do controle social, em que a manutenção da ordem social é um fim em si mesmo, deslocada da complexidade que o mundo social representa.

Ora, se a ordem social funciona como uma espécie de a priori cognitivo e social, não requer racionalidade, pois é amplamente (re)conhecida e vivenciada na sociedade e reproduzida nas diferentes relações sociais. Mas ocorre, como se sabe, que não há consenso sobre “o que é”, “como se realiza” e, particularmente, “como se vivencia” essa dada ordem social. Por exemplo, na atuação do sistema de justiça criminal, pode ser que exista, como defende Paixão (1988) , antes uma normalização de valores e crenças de classe média que se confunde com legalidade, desencadeando usos distintos de ordem em suas práticas cotidianas. É dizer: quem é o suspeito em uma abordagem policial? Como esse suspeito é construído? Como deve se portar? E ser tratado? Tais indagações indicam que a discrepância entre as concepções de ordem ocorre tanto em virtude das assimetrias de poder na sociedade quanto devido às diferentes hierarquias de renda, estima, credibilidade, que situam as pessoas em diferentes posições na sociedade. Em última medida, a noção de ordem social em sociedades democráticas se baseia em pressupostos, como a legalidade e a igualdade perante a lei, mas que não levam em consideração as diferenças que informam os indivíduos em sociedade, inclusive a respeito do que é a legalidade e a igualdade, assim como a violência e a não violência.

Nesse sentido, a contribuição de Michel Foucault (2014) representa uma ruptura importante na ambivalência por vezes instrumentalista de funcionalistas e liberais. Em grande medida, o autor francês apresenta a noção de poder como produto e como algo imaterial, isto é, o poder que se realiza nas relações sociais não é uma propriedade atribuída a sujeitos como um objeto. Assim, o poder possibilita a construção de relações, inclusive de submissão ao controle da sociedade, não apenas supondo a ascendência de instâncias de poder e a simples assimilação delas.

Em segundo lugar, corolário da crítica anterior, a realidade social é mais complexa do que supunham as análises clássicas, e a verificação do teórico no empírico deve se respaldar em abordagens que compreendam processos tanto gerais quanto específicos. O emprego de dados coletados em diferentes fontes e trabalhados por técnicas elaboradas possibilita a interpretação do social de forma mais consistente. Acredito que essa fronteira deva ser vencida pelas Ciências Sociais de uma forma geral e não específica para os estudos sobre controle social, o que não impede que aqui se faça essa consideração metodológica. Ainda no exemplo sobre a atuação do sistema de justiça criminal, a utilização de dados provenientes de fontes como tribunais, prisões, polícias, ministério público e redes de saúde e assistência social permitiria a composição de diagnósticos epidemiológicos e, também, etiológicos a respeito da atuação de instâncias formais de controle social e de aplicação da lei. Entretanto, parecem ser estanques tanto a atuação dessas organizações na sociedade, em nível público e privado, quanto as formulações conceituais e a imaginação metodológica que se lhes destina compreender.

Em suma, trabalharemos com a ideia de controle social como referente às relações sociais, aos recursos materiais e simbólicos, às vivências e aos afetos que estabilizam e normalizam os comportamentos individuais em relação aos valores compartilhados socialmente pelo grupo social, em que os processos de “(re)produção” do controle são mediados por relações situadas de formas social e politicamente assimétricas no contexto social. Nota-se, portanto, que, antes de conferir um aspecto normativo ao controle social, busca-se privilegiar sua configuração dinâmica e multidimensional. Neste trabalho, portanto, pretendemos problematizar particularmente como as mudanças do regime representativo propiciaram alterações nos mecanismos de controle social no Brasil, assim como aspectos culturais da sociedade brasileira, em particular a ética da cordialidade, possibilitam interpretar o desenvolvimento dessas relações.

O sistema coronelista: 1890-1930

a) A noção de figuração: notas sobre uma sociologia processual

A análise da configuração política da Primeira República é, especialmente, realizada a partir de um cenário de modificações políticas ditas de cunho modernizante à época, em contraste com o período do Império que lhe antecedeu. Por isso, é necessário, desde logo, situar histórica e metodologicamente a construção da argumentação que se seguirá. Descreveremos o regime coronelista a partir da noção de figuração de Norbert Elias, face ao ganho heurístico em duas perspectivas centrais. Por um lado, a noção de figuração não busca estabelecer relações de causalidade entre variáveis que compõem um fenômeno. Antes disso, estabelece dinâmicas entre relações sociais que configuram um estado de coisas na vida social, as quais são provisórias e sujeitas a mudanças constantes, dessa forma evitando reduzir processos a estados de coisas[4] e, ainda, enfatizando a dimensão histórica de fenômenos sociais.

Por outro lado, as relações de interdependência entre as partes que compõem o sistema são centrais para a compreensão do regime coronelista “como um todo”. São nós de uma corrente que, a despeito da materialidade da analogia que utilizamos, não possuem a substância que o todo resume, mesmo que existam características e comportamentos particulares a partir de cada parte sobre o todo. Como Elias assinala, ao falarmos do todo, é provável que sejam projetadas abstrações desde cada parte que não contém a substância suposta a ele (1999, p. 142).

Dessa forma, buscamos centrar a análise na relação entre as partes ambivalentes que permitem interpretar o sistema coronelista como uma figuração entre um fato político (mudança do sistema representativo) e uma conjuntura econômica (declínio das monoculturas de exportação) (Carvalho, 1997). Mais do que isso, o coronelismo é resultado de um arranjo político entre a capital e o interior e representa, ao mesmo tempo, uma figuração do controle social em nível local. Como se conforma o modelo interpretativo dessas figurações? Para tanto, é necessário destacar três aspectos importantes à sociologia processual eliasiana. O primeiro está relacionado à intencionalidade dos processos derivados do coronelismo (este por si também é um processo) e que são construídos em torno do coronel no interior do país. Os processos são engendrados por diversas ações individuais, que, a despeito de isoladamente serem informadas por desejos e aspirações, não podem ser consideradas como explicativas de processos sociais como um todo, em grande medida por se tratarem de processos de longo prazo. Como também discutiremos, as mudanças no regime político são caracterizadas por movimentos anteriores (processos) que buscaram conferir à recente democracia brasileira ares liberalizantes, como o sufrágio universal, amparados por uma Constituição modelada no exemplo do Velho Continente, particularmente no caso da França e dos Estados Unidos. Supor que essas alterações tenham sido conduzidas por atores, em particular, com domínio (ou mesmo expectativas) sobre o resultado final nos parece equivocado.

Em segundo lugar, as figurações são manifestações da interdependência dos indivíduos, cuja concomitância e recorrência permitem o desenrolar da vida social por meio de modelagem que se projeta de forma transcendente aos próprios indivíduos. Em outras palavras, as figurações se referem aos indivíduos em sociedade e somente fazem sentido nessa teia de relações. Situando no exemplo das mudanças políticas da Primeira República, o coronelismo enquanto fenômeno se refere às decisões tomadas por indivíduos em relação a outros indivíduos, por meio de motivações próprias que não encerram a racionalidade da figuração do fenômeno em si. Ora, se a intencionalidade de ações individuais não caracteriza os processos figuracionais, a racionalidade dessas mesmas ações também não o faz.

Em terceiro lugar, mudaremos a ilustração para tratar da característica de produção do conhecimento a respeito dos processos figuracionais. A economia cafeicultora de exportação encontra na Primeira República um período de decadência, com a crescente competição de outras culturas, o cenário de crise internacional e a pressão interna por manufaturização da economia, entre outros aspectos. A busca em períodos históricos anteriores, de maneira diacrônica, pelas razões profundas de cada um dos aspectos que conformaram o cenário econômico do surgimento do coronelismo, enquanto parte integrante das peças que compõem essa teia interpretativa, configura-se como procedimento metodológico necessário. Não é possível supor que tais condicionantes tenham surgido repentinamente e, mesmo que tivessem, não podem ser interpretadas isoladamente em relação aos demais processos. Essa metodologia é do tipo processual e caracteriza os estudos inspirados na sociologia de Elias. Há, ainda, um quarto aspecto, na verdade uma hipótese cultural, que será discutido adiante. Por ora, nos deteremos à caracterização do sistema coronelista.

b) Características do sistema coronelista

Inicialmente, Victor Nunes Leal destaca a alteração do regime político para o federalismo de sufrágio amplo. Ainda de forma incipiente, o Estado brasileiro se formava e interiorizava encontrando dificuldades em “conseguir funcionários capazes, por isso mesmo improvisando técnicos em tudo da noite para o dia” (Leal, 1948, p. 60). Mesmo em relação à manutenção de serviços públicos nas cidades, o Estado era marcado por precariedades institucionais e financeiras, em que a diferenciação e a independência dos poderes eram marcos a serem defendidos e buscados, em sintonia com os valores reformistas liberalizantes. Diante das limitações do poder público, a convergência com os chefes locais realizou-se segundo uma lógica utilitarista, baseada em necessidades mútuas que avizinhavam pelos processos anteriores de fragilização de lideranças da cidade e do interior. Em troca da manutenção do protagonismo na política local, com decisões sobre nomeações de toda sorte de indicados para serviços públicos locais, a chamada dádiva do poder coronelista (Leal, 1948, p. 69), os coronéis propiciavam os votos necessários à legitimação dos seus aliados no governo estadual e central, ou seja, à própria estabilidade da ordem política e social.

Na política local, os coronéis eram “onipresentes”: ocupavam o legislativo, estavam no executivo e ajudavam a criar e a compor o incipiente judiciário. Inclusive, as expectativas em torno de melhorias de serviços são, em grande medida, oriundas do esforço dos chefes locais. Em parte, a liderança e a legitimidade dos chefes locais são marcadas por essas benfeitorias. O coronel que não atendesse aos seus poderia perder poder, depor contra si e em desfavor do sistema que centralizava localmente[5] e, se assim o fizesse, seria fatalmente substituído. Com efeito, mais do que justos ou injustos, os coronéis eram atores políticos num sistema que incluía, de igual maneira, tantos outros em nível estadual e federal: engrenagens que operavam processos de um sistema que os antecedia e ultrapassava. Em outras palavras, o coronel era parte de um sistema político vinculado a estruturas econômicas e sociais, em que suas características pessoais, se tacanhos ou desprovidos de ideais políticos, não representavam, definitivamente, a questão central.

O trecho a seguir evidencia a organização do sistema no município e demonstra a ascendência dos chefes locais:

Recordo-me de como ouvi, pela primeira vez, na minha meninice, falar desse grande seridoense (Seridó, Rio Grande do Norte). O seu nome soava como uma nota de clarim, vibrando nas quebradas das searas e dos vales, como defensor da honra alheia, dos limites da propriedade privada, da moça ofendida, do pobre que apelava para a sua proteção, inimigo da prepotência, defensor dos hábitos e dos costumes do seu povo, transformados por uma sedimentação de vários séculos em norma de vida ou código de lei. No seu município predominou por muito tempo o regime do Estado sou eu. O município era ele. O juiz, o delegado, o padre, era ele. Tudo isso, é lógico, dentro do decoro, da prudência, da polidez, da cordura que o seu nome de homem superior, inteligente, experimentado, abrangia, sem dizer que estava mandando (De Melo, 1985, p. 11).

Ao demonstrar tal figuração a partir do chefe local, é marcante a posição do coronel como chefe político, mas também representando uma instância de controle social em nível local. Como destaca Leal, o coronel resume instituições sociais, tamanha a sua centralidade na vida municipal do período analisado (1948, p. 45), algo que se processou particularmente ao longo do Império. Como será discutido adiante, a administração de conflitos, a regulação e a transação de serviços passava e era mediada pelo coronel. Com efeito, era ele quem arbitrava, decidia e representava o vértice de relações hierárquicas reminiscentes da tradição agrária do Império e da Colônia. No esquema figuracional, o coronel era uma peça importante que não era apenas politicamente situada.

Outro aspecto que destacamos é a inserção dos chefes locais no contexto econômico do país. Ao tratar da concentração da propriedade rural, Leal argumenta, a partir de referências como Caio Prado Júnior e Costa Pinto, que era evidente a decadência das monoculturas exportadoras, mas que o cenário econômico do país ainda era eminentemente agrário e concentrado. Entre as razões, destacam-se as formas de cultivo predatório das principais lavouras, como café, algodão e cana de açúcar, crises internacionais e o desenvolvimento da pecuária, além das dificuldades de financiamentos aos pequenos produtores (Leal, 1948, p. 48–50). Dessa forma, o cenário era de decadência econômica das oligarquias latifundiárias, de onde descendiam os coronéis, mas cujas precariedade e pobreza ensejam os contornos da dependência das populações do interior em relação aos chefes locais. Enquanto classe social, os mecanismos de defesa dos interesses dos coronéis articulados às condicionantes políticas pavimentam a utilidade instrumental dos chamados votos de cabresto. Às condicionantes políticas, soma-se a decadência econômica típica de um período de transição entre matrizes produtivas que se processaria décadas mais tarde.

A manutenção (ou o refreamento da perda) do poder político motivou o engajamento dos coronéis no sistema de compromissos com o poder público. No sentido conferido pelo autor, essa articulação é, antes de tudo, estimulada pela decadência dos chefes locais (e não por sua pujança), cuja relevância residual estava diretamente relacionada à fragilidade da população que controlava por meio de dádivas clientelísticas. Mais do que isso, as relações familiares e de compadrio em torno do coronel, com dependência em relação ao trabalho, à alimentação, à moradia e à proteção, são incentivadas pela submissão dos municípios imposta pelo poder central desde a Colônia até o Império e a República. Ora, destacamos além dos processos políticos e econômicos, características burocráticas da administração pública que, por óbvio, se relacionavam com as condicionantes já citadas, mas compuseram o enquadramento interpretativo que propiciou o desenvolvimento do coronelismo.

Em suma, a arquitetura do sistema coronelista envolve o avanço do poder público e a mudança do regime político para o federalismo, marcado pelo sufrágio amplo, cuja condição, ainda insuficiente para alcançar o interior do país, impulsiona a conformação de um sistema de compromissos com os chefes locais. Esses, por sua vez, são oriundos das oligarquias latifundiárias em decadência, mas que mantêm relações de ascendência sobre seus agregados, familiares e demais associados, os quais representam os necessários votos à legitimação dos governos estadual e central.

Cordialidade como princípio orientador de condutas

A descrição sobre a formação social brasileira de Sérgio Buarque de Holanda, que nascera clássica[6], é referência necessária à interpretação da identidade nacional no século XX. Certamente pela condução elegante do texto, mas sobretudo pelas possibilidades que a obra desvela ao construir, por meio de categorias que se relacionam dialeticamente, as raízes da formação nacional. É o que buscaremos realizar a partir da noção de cordialidade como característica à conformação do sistema político e social da Primeira República. Além disso, a cordialidade nos parece parte dos processos culturais que caracterizam a figuração do coronelismo brasileiro desse período histórico.

Ao descrever o período colonial, Holanda salienta a prevalência de relações pessoais, afetivas e passionais, na composição de um todo “incoerente e amorfo”, marcado por lutas entre facções, o que as distanciava das “qualidades ordenadoras, disciplinadoras e racionalizadoras” de uma organização política (Holanda, 1936, p. 36). Em grande medida, o autor retrata a oposição entre duas éticas distintas: a da cordialidade e da civilidade (Avelino Filho, 1990; Esteves, 1998). Por um lado, a partir da tradição ibérica e da escravidão, a cordialidade informa uma ordem marcada pelo rural como prática econômica, em que a vida doméstica é soberana e predominam as relações pessoais ou pessoalizadas (De Souza, 1999). Enquanto tipo ideal, o homem cordial representa a aproximação entre indivíduos, e também com um pacto político liberal, de uma forma peculiar, com um modus afetuoso e parcial, típico de relações familiares. Para Holanda, a cordialidade se refere ao quadro em que:

A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível onde prevalecem sempre e necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, (sic) deixou vestígios patentes em nossa sociedade, em nossa vida política, em todas as nossas atividades. Representando (…) o único setor onde o princípio da autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens (Holanda, 1936, p. 96).

Particularmente, o modelo da família patriarcal oferece uma ética específica, espécie de “lei moral inflexível superior a todos os cálculos e vontades dos homens” que emana da mentalidade doméstica para as relações sociais de uma forma geral (Holanda, 1936, p. 101). Como foi central na Colônia, o princípio da autoridade patriarcal caracteriza a cordialidade como categoria sociológica: no mundo dos negócios, assim como na sistematização religiosa, a pessoalidade é realizada como forma padrão de sociabilidade, verdadeiro princípio orientador que torna distante a adoção de regras precisas e impessoais. Como afirma Avelino Filho (1990), “herança ibérica, ruralismo e cordialidade são coisas que andam juntas”.

Todavia, a civilidade é apresentada por Holanda a partir da noção ritualística e procedimental da vida, baseada notadamente na impessoalidade. É o extremo oposto ao tipo ideal do homem cordial. A ordenação da vida social não se submete aos critérios morais da vida doméstica, porquanto se revele no seio social. É certo que o autor apresenta a civilidade como tipo ideal em contraste com a cordialidade, ao qual os registros de Raízes do Brasil permitem desvelar quando são analisadas as propostas do liberalismo político. Assim, o homem cordial opõe-se ao homem treinado “no ritualismo da civilidade, cujas paixões foram treinadas no limiar da passagem do Antigo Regime” (Avelino Filho, 1990).

Além disso, Holanda também analisa as modificações políticas, incluída a ampliação do regime representativo, da Primeira República. Para o autor, a hierarquia entre desiguais baseada na assimetria do poder do pater familias não teria sido alterada. A modificação representou, antes, uma “inútil e onerosa superafetação”, por estar desconectada da realidade da vida social, “ao mundo de essências mais íntimas” que caracteriza as relações sociais. Em outras palavras, uma mudança desnecessária, impressionista e iludida. Nesse sentido, revela-se a imposição de alterações legais em descompasso com a realidade social, o que ajuda a informar o debate entre o país legal e o país real travado à época[7]. Em suma, Holanda descreve o cenário desta forma:

O trágico da situação está justamente em que o quadro formado pela monarquia ainda guarda seu prestígio, tendo perdido sua razão de ser, e trata de manter-se como pode, não sem grande artifício. O Estado brasileiro preserva como relíquias respeitáveis algumas das formas exteriores do sistema tradicional depois de desaparecida a base que as sustentava. Uma periferia sem um centro. A maturidade precoce, o estranho requinte de nosso aparelhamento de Estado, é uma das consequências mais típicas dessa situação. (Holanda, 1936, p. 110).

Nesse sentido, sugere-se que o desajustamento entre a implantação política da democracia, em especial o federalismo de voto amplo, e a ausência das práticas pensadas à vivência democrática (Avelino Filho, 1990) permite a figuração de um sistema em que a ética da cordialidade surge como pano de fundo. Mais do que isso, é por meio das relações de pessoalidade que o sistema, em nível pessoal, se realiza. Com efeito, cabe retomar a distinção que Holanda estabelece entre cooperação e prestância, num extremo, e competição e rivalidade, noutro. Enquanto cooperação e competição se unem em torno de um objetivo material, prestância e rivalidade se dirigem a causar o mal ou algum dano ao outro (Holanda, 1936, p. 70). Como o autor assevera, é próprio do comportamento “afetivo, irracionalizado, passional a rivalidade entre facções ou pessoas”.

Em suma, a ordem legal democrática pensada em termos de civilidade distancia-se da realidade social em que a centralidade da família patriarcal, mesmo que decadente, ainda é marcante. Tal centralidade, como no conceito de tradição weberiano, é realizada segundo a figuração do sistema coronelista, ao que se soma a ética da cordialidade como princípio cultural ordenador adicional. Assim, “a boa harmonia do corpo social” equivale à ordem velada pelo coronel por meio dos instrumentos de controle social de que dispunha, segundo uma “lei moral inflexível” (Holanda, 1936, p. 105). Com efeito, se a apropriação da descrição de Sérgio Buarque for coerente, é o caso de destacar a configuração do sistema coronelista por meio de formas específicas de controle social baseadas na cordialidade.

Controle social e a ética da cordialidade: aplicando o modelo figuracional

Cordato com a violência, desde que não atinja os seus, sejam amigos ou familiares. A cordialidade é, antes de tudo, um mecanismo de defesa perante o social (Holanda, 1936, p. 177). É como se o comportamento social fosse de tolerância ao mal alheio e à preservação do próprio bem-estar. Ora, não é esse o significado profundo da expressão: “aos amigos se faz a justiça, aos inimigos aplica-se a lei”? Ou seja, a explicação de que a justiça não atinge aos amigos do poder reflete uma acepção de controle social específica, em que se aliar ainda mais ao chefe local era mecanismo de garantir a própria existência. A cordialidade, assim, é assaz em demonstrar a desigualdade social que opõe as pessoas no país (De Almeida, 1997), de maneira situada historicamente, mas com possibilidades interpretativas em sentido diacrônico. Mas em que sentido se aproximam o sistema político coronelista e as relações sociais baseadas na cordialidade?

Inicialmente, a manutenção da cordialidade como princípio orientador de condutas nos parece ter sido um dos elementos que conferiram estabilidade ao sistema político e social. Em termos políticos, a ascendência dos chefes locais se realizava por meio de relações personalistas, pela realização de favores e concessão de benefícios, na esfera de influência do coronel. Como enseja o dito político que intitula esse texto, a “impessoalidade” era reservada para o relacionamento[8] com os adversários políticos, os opositores ao governo. Na verdade, não se trata da impessoalidade no sentido que emprestava a doutrina liberal, antes disso, compunha-se como reforço da pessoalidade das relações no âmbito da família estendida do chefe local.

Sob o ponto de vista daqueles que serviam aos coronéis, a cordialidade exigia uma contraprestação evidente: a obediência. O sistema de compromissos coronelista era articulado em torno da manutenção de condições de vida, inclusive de segurança, em troca da obediência traduzida em votos. Essas são, pois, as engrenagens por meio das quais operavam o controle social durante a Primeira República. A administração de conflitos era parte dos compromissos dos chefes locais, em que a alteração política lhes conferia, ainda mais, meios de instrumentalizar a polícia e o judiciário na manutenção do poder. A esse respeito, Victor Nunes Leal, citando Otávio Tarquínio de Sousa, destaca o movimento que denominou de policialismo judiciário[9] durante a Primeira República (1948, p. 187).

Por sua vez, a instrumentalização da polícia e da Justiça representa importante mecanismo de dominação no contexto coronelista, sendo decisivo na manutenção de vitórias políticas e na aplicação da lei e da ordem (Costa, 2004). É relevante, ainda, a característica instrumental que Leal apresenta, antecipando aspecto da percepção produtiva do poder de Michel Foucault (2014), como mecanismo que serve tanto a liberais quanto a conservadores, em última medida, à manutenção do poder em si. Nesse sentido, o controle social extrapola as relações com o Estado e se apresenta como organizador e regulador de práticas face à manutenção da estabilidade das relações, por assim dizer, de uma ordem social.

Com efeito, é a dimensão produtiva do controle social que buscamos destacar, não como estrutura, mas antes como complexos mecanismos que articulam, negociam e transacionam aspectos da vida social em favor da estabilidade das relações (Alvarez, 2004). Assim, se, por um lado, não parece adequado discutir o “sucesso” do regime em termos históricos; por outro, o distanciamento de uma análise diacrônica permite a compreensão do modelo de controle social que o regime coronelista propiciou durante os 40 anos da Primeira República.

Dessa forma, o coronel não era apenas bem-sucedido em propiciar os necessários votos aos seus aliados do governo central. Seu papel se ampliava ainda para a administração de conflitos sociais e a contenção de revoltas. É evidente que a manutenção do sistema político passava pela conivência da polícia, pela tolerância do promotor, encontrava respaldo na atuação útil dos advogados locais e findava no caráter parcial dos julgamentos. Mas também a ordem social era informada pela atuação do coronel e dos seus capangas, normalmente impunes e a serviço da moralidade oriunda do próprio oligarca (Leal, 1948). Nesse sentido, o relato de Leal sobre o tribunal do júri é ilustrativo:

O tribunal popular, durante o longo período que precedeu ao decreto-lei nº 167, de 1938, sempre foi um dos setores de atuação da política local. A relativa impunidade dos capangas dos “coronéis” encontrava sua explicação na influência que os chefes políticos locais exerciam sobre o júri. Pôr na rua ou fazer condenar quem tivesse cometido algum crime tem sido, tradicionalmente, problema importante para a política local, sobretudo quando o criminoso, ou seu mandante, ou a vítima têm atuação partidária de relevo. (Leal, 1948, p. 198)

Com efeito, o papel dos coronéis no sistema político da Primeira República é destacado não apenas por Leal, mas também por diferentes intérpretes da sociedade brasileira que o sucederam. O destaque do autor está em evidenciar, de maneira exaustiva, a forma como o sistema político se articulava com condicionantes econômicas e ideológicas do período, com relevância para as mudanças burocrático-institucionais da época. Há interpretações equivocadas a partir dessa perspectiva, como é a associação entre o mandonismo e o coronelismo, sendo aquele característica de relações políticas de natureza tradicional, diverso do sistema que conforma o coronelismo (Carvalho, 1997). E o modelo figuracional é novamente apropriado: a alteração de uma das partes ou das características modifica toda a figuração, todo o jogo. É dizer: o coronelismo é caracterizado pelo mandonismo, inclusive pela decadência dos grandes proprietários rurais como aspecto importante de sua figuração. Entretanto, o mandonismo está presente em outros períodos históricos e sistemas políticos, não apenas no coronelismo que marcou a Primeira República no Brasil.

Noutro sentido, gostaríamos de sugerir que a utilidade dos coronéis nesse sistema social é caracterizada, ainda mais, pelo controle social que exercem em nível local. E isso se realizava por meios específicos de poder, como a formação dos bandos de capangas, a indicação dos delegados e subdelegados[10], além dos juízes de paz e da ascendência sobre o restante do aparato estatal local, como escolas e hospitais. Corolário à lógica de saber-poder de Foucault, essas relações não se referiam à racionalidade do chefe local, mas à figuração do sistema coronelista do qual se alimentava e que propiciava a ordenação das relações. Dito de outra forma: argumentamos que, além do sistema de trocas políticas, das relações econômicas e produtivas e da mobilização ideológica que informa as reformas liberalizantes, o sistema coronelista realiza funções de controle social em nível local, ou seja, exerce papel de normalização e adequação de condutas em consonância com o sistema geral e seus valores morais e o faz por meio da ética da cordialidade como pano de fundo.

Em termos simbólicos, a dependência das comunidades locais em relação aos coronéis nutria o respeito pela sua autoridade, que, acompanhado pelo temor das punições, contribuía com a disciplina e com a edificação do seu papel nas relações sociais nesses grupos[11]. Nesse contexto, aproximar-se do coronel e garantir-lhe obediência era antes uma forma de inserção social do que um cálculo político desencadeado numa trama maior. Para a vida cotidiana no interior, a figura do coronel representava, por vezes, a instância última de poder acessível às pessoas. Como buscamos destacar, a centralidade do coronel servia também à estabilidade do sistema político como um todo, em que conflitos e revoltas eram contidos e, se não o fossem, tinham no coronel o primeiro anteparo antes de acionar outras instâncias formais. Essa regulação das trocas e dos conflitos cotidianos representa o exercício do controle social em sua forma primária, na crueza das relações diárias que resumem como a ordem social se realiza. O protagonismo nessas relações é exercido pelos chefes locais no sistema coronelista, manejando interpretações da lei e da ordem de acordo com valores, costumes e regras do grupo, particularmente atravessados pelas relações de compadrio, informalidades e obediência, em suma, embevecidos pela ética da cordialidade.

Considerações finais

O exercício proposto, conforme descrito no início do texto, é de interpretação do sistema político coronelista, cuja estabilidade repousava ainda no controle social desempenhado de formas específicas. Sem buscar reminiscências de um passado preditivo da realidade atual, algo que demonstre uma espécie de infantilidade democrática do Brasil (Carvalho, 1997), a compreensão da configuração social do período da Primeira República é, antes de mais nada, reveladora de possibilidades acerca da realidade social brasileira.

Com isso, não se trata de propor o coronelismo como modelo, mas de destacar a efetividade de um sistema que administrava conflitos cotidianos em nível local. O vínculo que a referenciação local propiciava, afinal os chefes locais conheciam e eram conhecidos, demandavam e eram demandados, surge como elemento explicativo. O distanciamento que a burocracia estatal impõe, com seus prazos, gargalos e recursos que alimentam desigualdades sociais, contrasta com os princípios mais bem elaborados do Estado de direito. Ora, em termos relacionais, a adequação axiológica ou moral da administração de conflitos, por exemplo, deve igualmente informar a adequação institucional, ou seja, ser teleologicamente resolutiva. Em última medida, para as pessoas envolvidas em disputas, a inexistência de elementos reais de mediação de conflitos, aplicáveis aos seus problemas concretos, pode representar (e o é com frequência) o veredito entre a vida e a morte.

Além disso, a relevância da cordialidade como traço identitário do brasileiro merece ainda profundas reflexões. Parece existir uma percepção comum que associa a cordialidade do brasileiro com uma espécie de aversão à violência (De Almeida, 1997). Quando, de fato, como buscamos distinguir, a oposição da cordialidade se realiza em relação à civilidade, que se associa à ideia do Estado de direito, caracterizado pelo livre exercício de cidadania (Paoli, Benevides, & Pinheiro, 1982). Essa questão parece central por dois pontos.

Por um lado, é preciso operar a necessária distinção heurística entre a “violência” enquanto categoria sociológica e as manifestações da sociedade em termos de “violências”, porquanto específicas e historicamente localizadas (Da Matta, 1982; Mattos, 2012; Porto, 2010). Há, ainda, outra perspectiva que privilegia a sua utilidade, ou seja, o mecanismo da violência como instrumento de poder e de manutenção da ordem social exercendo controle social. Buscando caminho distinto daquele propiciado por categorias morais, como justo ou injusto, correto ou incorreto (a despeito de não existir razão para crer que tenham sido menos aviltantes as violências coronelistas), dedica-se atenção à configuração do sistema político e social que emoldura e informa as relações em análise.

Nesse sentido, antes de ser avessa, a cordialidade é atravessada por violências que compõem o espectro social de que toma parte e das quais faz uso como instrumento de poder. Conforme descrito por Leal, a impessoalidade das relações com os adversários no sistema coronelista é, antes de tudo, dirigida a causar dano. Não há, nesse plano de análise, diferença em relação à vingança ou à justiça com as próprias mãos. Assim, a cordialidade não se opõe à violência, pelo contrário.

Por outro lado, e decorrente da hipótese anterior, salientamos a hipótese da violência como forma de sociabilidade, a qual orienta condutas a partir de uma ordem distinta daquela do Estado de direito burocrático-legal. Nesse sentido, coexistiriam na sociedade brasileira duas ordens distintas: de um lado, o ordenamento jurídico formalmente constituído e, de outro, o modelo da violência urbana naturalizada como constituinte das interações sociais (Machado da Silva, 2004). Sob esse ponto de vista, a violência seria desconcentrada em relação ao Estado rumo à organização legitimadora de determinados grupos sociais (Machado da Silva, 1993).

Convém destacar que a convivência dessa ordem projetada e reproduzida a partir da violência não é apenas socialmente orientada, nos parece também espacialmente situada em determinados espaços preferenciais da cidade. Enquanto mecanismo de interação, essa ordem parece informar relações entre classes sociais distintas, em que a violência opera como verdadeiro elemento distintivo em favor da assimetria entre os sujeitos em suas relações, como decorrente de contextos em que a violência se legitima (Paoli et al., 1982). Como assinala Paixão (1988), a violência policial e o elitismo do sistema de justiça criminal são indicadores de uma “ordem social e política extremamente hierarquizada, desigual e hostil à implementação dos direitos civis das classes populares”, e esse também parece ser o enquadramento das diferentes formas de violência cotidianas concentradas em determinados bairros, com vítimas e autores preferenciais.

Ora, a sociabilidade violenta é um mecanismo interpretativo das relações que envolvem a sociedade brasileira como um todo, entretanto deve possuir especial potencial quando aplicada a certos espaços (periferias e favelas), vivenciados por certos grupos (população pobre) e em determinados contextos (relações de poder assimétricas entre classes e violência endêmica). Em suma, a sociabilidade violenta se inspira na vivência das favelas e das periferias brasileiras, em que a recorrência de violações de direitos e o recurso à violência como mecanismo rotineiro de interação social informam e produzem a maneira como os indivíduos constroem suas trajetórias e, em última medida, como negociam as circunstâncias da vida em sociedade.

É marcante, nessa interpretação, a perspectiva que observa no uso da força como princípio ordenador e rotineiro um instrumento de validação de práticas violentas, as quais, em última medida, requerem formas de dominação específicas que, na concepção weberiana de poder, possibilitem sua reprodução. Dessa forma, no cenário das violências urbanas naturalizadas, grupos de pessoas usando drogas nas ruas de uma cidade podem deixar de destoar na paisagem, na medida em que o argumento legitimador da exclusão como violência é incorporado. Nessa perspectiva, os indesejáveis constituem grupos para os quais podem ser relevados os princípios morais democráticos e impingidas outras marcas inspiradoras de condutas pouco toleráveis. Mesmo vivendo num contexto social marcado pela busca da universalização dos direitos, esses sujeitos têm seus direitos interditados o que seria informado com contornos distintos, entre outros fatores, por um processo de modernização tardia (Tavares dos Santos, 1997).

Se for coerente considerar a formulação da violência como forma distinta de sociabilidade, a compreensão da configuração do sistema político da Primeira República propicia um exercício relevante por pelo menos três aspectos. Primeiramente, a arquitetura do sistema envolve aspectos políticos inspirados por alterações legais de modelo democrático. De forma detalhada, Leal e Holanda se aproximam na descrição dos mecanismos por meio dos quais essas alterações foram realizadas no Brasil: importação de modelos de leis de outros países, implantação dissociada das realidades das relações e necessidades sociais e postura autoritária (intelectualística, nos termos de Holanda) na prescrição de “soluções” à modernização do país. A descrição do contexto econômico é, ainda, central à configuração do poder localmente, destacada a relevância das propriedades rurais face à precariedade da vida no interior do país. Os contornos socioeconômicos de dependência em torno do coronel formam espaços de exclusão, periferias de um centro também amesquinhado do qual se alimenta. Assim, as formas como se articularam e realizaram as alterações políticas no país durante a Primeira República demonstram o desenvolvimento institucional do país.

Em seguida, a relevância da instrumentalização do poder público para a manutenção do sistema político encontra na Primeira República um momento privilegiado. A conjuntura de decadência dos chefes locais e a alteração legal do federalismo propiciaram a configuração de um sistema que quase institucionalizou a extensão do ambiente doméstico coronelista sobre o poder público. Com o decorrer do tempo, percebe-se que a distinção entre público e privado é peculiar no país, permitindo a configuração de espaços em que as relações sociais acontecem com códigos e éticas específicos, nos mundos da casa e da rua (Da Matta, 1982).

Por fim, o desenvolvimento institucional do Estado brasileiro no contexto da Primeira República ocorreu em meio a um cenário rural e não urbano. Certamente, a urbanização trouxe condicionantes à configuração política e social brasileira, entretanto o início do século XX foi profícuo em formulações sobre os modelos e caminhos a serem seguidos. Não à toa, a herança dos intelectuais de 1920-1930 se faz tão presente ainda nos dias atuais. Em particular, as formas de controle social que o período coronelista utilizou são, pela instrumentalização do poder público, pelo contexto rural e pelas relações de cordialidade, objeto de estudo ainda a ser melhor discutido e analisado.

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Notas

[1] Gostaria de agradecer as sugestões recebidas no CEISAL 2016, e também ao Dr. Arthur Costa pelos comentários em versões anteriores deste texto. Além disso, os próprios editores desse dossiê contribuíram com úteis comentários. Todos eles estão eximidos de erros remanescentes. Este trabalho contou ajuda da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF).

[2] Expressão utilizada por Victor Nunes Leal para descrever os recursos utilizados pelos chefes locais na manutenção de seu poder político durante a Primeira República. Segundo o autor, a expressão era frequente entre políticos do período, sendo empregada, ainda, como: “para os amigos pão, para os inimigos pau”. Ver: Leal (1948:60 e 249).

[3] Doutorando e Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília. Pesquisador Visitante na University of Massachusetts Boston (Fulbright/CAPES).

[4] Numa palavra, Ribeiro resume a dimensão temporal da perspectiva figuracional de Elias: “um tema presente possui uma história, ele é produto de um processo contínuo; portanto, há um passado a ser considerado. A sociologia processual reconstrói o passado, problematizando-o de forma sociológica e não histórica” (Ribeiro, 2010, p. 166).

[5] Sobre a atuação dos coronéis em nível local, o relato de Domingos Velasco citado por Leal é especialmente ilustrativo: “seria impossível formar o eleitorado, se não houvesse o chefe municipal que alicia o eleitor e paga-lhe as despesas (…) Chegadas as eleições (…) presencia-se o espetáculo. Os chefes municipais organizam meios de transporte, preparam nas povoações os alojamentos e cuidam da alimentação das centenas e, às vezes, milhares de eleitores” (Domingos Velasco apud Leal, 1948, p. 248).

[6] Conforme assinalado por Antônio Cândido no prefácio à edição de 1967 de Raízes do Brasil.

[7] A formulação país legal versus país real motivou o debate entre intelectuais dos anos 1920-1930. O problema central é, decerto, que o país real não se reconhece no país legal, dando origem a um quadro de profunda heteronomia. A esse respeito, ver Esteves (1998).

[8] Como informa Leal (1948, p. 149), a lista de hostilidades com os adversários políticos variava desde gestos de acinte, como festas comemorativas e mudança dos nomes de logradouros, até o rigor policial, com atos de sabotagem, chegando a formas de violência física e crimes mais graves.

9] Sobre a imiscuidade entre as funções judiciais e policiais nos municípios, Victor Nunes Leal utiliza a citação de J. Mendes para ilustrar essas relações: “A polícia, no Brasil, foi, por assim dizer, criação da lei de 3 de dezembro. Essa lei, criando as autoridades policiais, cometeu dois graves erros: o primeiro foi conceder às autoridades policiais a atribuição de processar e julgar (…) O segundo erro foi o de não dar aos delegados e aos subdelegados, que se espalharam por todo o país, nenhuma estabilidade no cargo, nenhuma independência, pois eram obrigados a aceitar a nomeação, não percebiam vencimento algum, sendo demissíveis ad nutum.” (Leal, 1948, p. 310).

[10] Sobre a percepção acerca da atuação das polícias, a análise de Brito sobre a literatura de autores como Aluízio Azevedo e Machado de Assis indica a instrumentalização da polícia a serviço da reprodução de desigualdades, cenário que compunha à época e que, em alguma medida, informa o processo de desenvolvimento das instituições. Vejamos: “Há com clareza a percepção de duas polícias: a dos gabinetes (que também atua nos cárceres) e a das ruas, que policia a cidade e que reprime crimes e contravenções. São, em linhas gerais, a polícia civil e a polícia militar. A primeira surge como mancomunada com os poderes locais, bajulando os que sobre ela poderiam ter alguma influência, em especial a imprensa e os detentores do poder. E a segunda é apresentada como uma polícia sem métodos e violenta (no fundo parecendo ser uma realidade, consequência da outra)” (De Brito, 2007, p. 125).

[11] Ao tratar das formas de disciplinarização da vida social dentro e fora das fábricas, Margareth Rago se vale da perspectiva foucaultiana para interpretar as relações sociais no contexto industrial incipiente do ambiente urbano da Primeira República. Para a autora, a empresa moral conduzida pela burguesia se realizava, por exemplo, em estratégias sanitárias para “instaurar uma nova gestão da vida do trabalhador pobre e controlar a totalidade dos seus atos, ao reorganizar a fina rede de relações cotidianas que se estabelecem no bairro, na vila, na casa e, dentro da casa, em cada compartimento” (Rago, 1985, p. 163). Ora, supomos que a atuação dos coronéis na gestão diária e microssocial dos conflitos locais tem efeito normalizador de condutas, é referente a uma moral específica e permite, em última medida, controlar condutas e comportamentos.

Para citar este artículo: Mattos, M. (2016). Controle social no sistema coronelista brasileiro (1890-1930): “aos amigos se faz justiça, aos inimigos se aplica a lei”, Iberoamérica Social: revista-red de estudios sociales, número especial Vol. 1, pp. 70 – 88. Recuperado en https://iberoamericasocial.com/controle-social-no-sistema-coronelista-brasileiro1-1890-1930-aos-amigos-se-faz-justica-aos-inimigos-se-aplica-lei2/

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